Da Vida Pessoal Enquanto Processo
Alguns insights sob o vulto deste ano
Na vida há momentos de inflexão e momentos de inflação, de uma concentração — isto é: de verticalização — e de uma expansão — isto é: de horizontalização. O que nos cabe, para uma vida bem vivida, é o discernimento do que nos pede cada momento, um discernimento que se vale dos sinais interiores e exteriores, e do compromisso responsável com a vida. Como diz o Cristo no Evangelho, sabemos que o verão está chegando quando percebemos brotos novos na figueira. A capacidade de discernir as estações pelos seus sinais característicos, e de nos adequarmos ao que ora desponta, é sabedoria. Nada é existencialmente mais danoso do que insistir sempre no mesmo modo de proceder, que é a atitude característica do homem massificado, cuja vida se resolve sempre em buscas exteriores, do reino da quantidade, e se frustra, e se angustia, e se deprime amargamente quando esse tipo de operação recorrentemente fracassa. Essa, que seria a hora da cotenção, uma descida invernal, se perde em inflamadas dissipações, até ao colapso.
Nada é existencialmente mais danoso do que insistir sempre no mesmo modo de proceder…
O fluxo natural da existência, que é adequado à natureza da psique, não suporta um mesmo ritmo diuturnamente, um continuum de extravasamento eufórico, que desrespeita as fronteiras e as medidas do que se assenta num substrato orgânico e que se move metabolicamente. Desilusões e felicidades são eventos internos, via de regra correspondentes a estímulos externos, e, como tais, se servem de cargas de “energeia” que progridem e se dissipam de modo gradual, mais rápida ou mais lentamente, se o considerarmos num contexto de relativa normalidade, porque, na mesma medida em que se servem de uma estrutura física que “aquece” e que “esfria”, seus canais expressivos e dispersivos são limitados. Querer estar sempre bem, ou se apavorar com a ideia de que um afundamento na melancolia será um caminho sem volta, são intenções e pensamentos equivocados per se, porque, via de regra, um alegrar-se e um entristecer-se são atos que possuem um início, um meio e um fim, e se resolvem melhor se vividos segundo suas próprias prerrogativas, ou assumidos consciente e completamente, porque têm legitimidade na proporção em que, quase invariavelmente, têm um porquê — ainda que as razões não sejam sempre transparentes, esse porquê há de ser melhor conhecido conforme se trava contato tempo suficiente com o que se está a sentir, evitando saídas fáceis e evasivas injustificadas.
O mesmo que se disse das emoções cotidianas se pode dizer dos tempos vitais, dos capítulos que se sucedem em nossas biografias. Perdas notáveis e conquistas louváveis, porque jazem prenhes de expectativas e de toda a sorte de interesses, e porque ressoam o e dissonam do curso pretendido e do norte de significado de nossas caminhadas, causam repercussões internas que, tendo mobilizado o corpo, os sentimentos e os pensamentos, solicitam ações comportamentais e mentais, enquanto veículos expressivos, catárticos e curativos da alma. Essas solicitações expositivas dão forma, realidade e valor aos eventos da alma e vêm para que nós mesmos possamos ser, já que nos perfazemos segundo a qualidade e a quantidade de nossos efetivos atos.
Saber viver os momentos é saber atuá-los, é saber desempenhá-los e dramatizá-los…
Saber viver os momentos é saber atuá-los, é saber desempenhá-los e dramatizá-los, o que significa: humanizá-los e, por conseguinte, torná-los hominizantes. Os desempenhos hominizantes são aqueles que refletem aos eventos internos e externos de uma maneira que é propriamente humana, respondendo à compulsão interna da sabedoria instintiva, que é da espécie, e da sabedoria típica da vida cultural humana, conforme simbolizada, esquematizada e atuada ao longo dos milênios — em geral estão nessas experiências típicas da humanidade as maneiras consagradas e à disposição geral para a satisfação das compulsões nativas da alma, nutrida, pois, pelo Espírito. Sente-o e o sabe quem aprendeu a passar pelos intercursos e pelas vicissitudes atento a si mesmo, ao que de fora e desde a profundeza ecoa nas paredes do próprio coração.
Eis o que se pretende dizer por “Individuação”, daquele empreender vital que percorre a jornada por dois caminhos sobrepostos, e sempre com maior lucidez, sentindo quando eles se alinham e quando se desalinham, e atribuindo cada vez mais importância à coerência do externo com o interno, porque se sabe sempre mais que a verdadeira realização no Mundo é aquela que transborda de sentido, que tem substância, que é extensiva, mas também intensiva, e que tem distância, mas também profundidade. Quem conquista esse senso de vocação ou de designação já não consegue estar no Mundo sem atentar para a consumação do “si mesmo”, sem impor a marca pessoal, sempre mais autêntica, em tudo quanto faça, e sem assumir sacrifícios pessoais em honra ao cumprimento de seu dever, de seu senso interno e pessoal de compromisso transcendental, vertical mesmo, com o Auctor que o chamou — porque, conquanto a todos o chamou, o escolheu dentre os muitos.
Quem desse modo vê e quem desse modo vive assume os fardos e se gratifica das benesses do Caminho. Ele tem motivos para acreditar, mesmo quando não entende, que deve viver as tragédias e as glórias do início ao fim e “do jeito certo”, já que não despreza a importância existencial de aceitar passar, e passar verdadeiramente, pelo que é inevitável ou necessário que seja vivido — resistir-lhe é como resistir à realidade, fugir de si e pecar contra a “vida”, a um preço que deverá ser pago no futuro e ao que a memória e a consciência acusarão insistentemente.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 31 de dezembro de 2024.