De Onde Vem a Religião?

Uma análise crítica das teorias modernas

Natanael Pedro Castoldi
5 min readMar 12, 2024

Da “compulsão” religiosa, o imperativo de explicar o homem e o Mundo não é a única raiz — se, é claro, tivermos em mente o tipo de explicação ao qual estamos habituados em nossa própria cultura, e mesmo em nossa cultura religiosa, a saber: a construção inteiramente voluntária e intencional de uma justificativa de tipo retórico e de verniz racional para satisfazer uma necessidade de sentido, que será vista como uma necessidade também racional (nos termos supracitados). Essa visão de coisas me parece ser um dos principais vícios do pensamento moderno — a de que a religião seria o produto primitivo de um pathos infrarracional, mitológico, que se desenvolveu naturalmente, conforme o desenvolvimento da civilização, na direção da filosofia / teologia e, enfim na “ciência”, e mesmo certas tradições filosóficas cristãs carregam características dessa distorção racionalista, impondo ao homem de todos os tempos a mesma compulsão racional do homem moderno, supondo que o homem, por ser dotado de razão, sempre procurará responder “racionalmente” ao Mundo e a si mesmo, só que em níveis progressivos de maturidade — como se ele necessariamente começasse num estado de confusão e de desconhecimento, se armando consciente e esforçadamente de todo o tipo de perguntas para, então, passar a empreender a busca por respostas, visando sanar a confusão inicial, e como se ele, de início destreinado, não soubesse como fazer as melhores perguntas e não tivesse chegado aos objetos de questionamento adequados, devendo se contentar com perguntas mal feitas e com respostas de tipo mágico e mítico.

É óbvio que o fator cognitivo está envolvido na compulsão religiosa, mas também é óbvio que, operando desde o espírito, ou do Intelecto, o homem primevo não estava confinado em um estado de turbidez mental e de confusão psíquica. Sendo quem é, assim que abriu os olhos da consciência ao Mundo e ao interior de si mesmo, viu a realidade em profundidade, porque não pode olhar para o horizonte sem deixar de ver um todo integrado e unívoco, uma totalidade que contém em si todas as individualidades — essa intuição, aparentemente sofisticadíssima, pois é revisada no zênite do desenvolvimento teológico das religiões clássicas e da filosofia, é, na verdade, o dado inicial e mais básico da mera presença do homem no Mundo, e de maneira alguma uma conquista racional radicada em um esforço visionário (como se começasse percebendo apenas as partículas ou as individualidades da paisagem e tivesse que montar mentalmente o quadro geral, concluindo, e devendo assentir à conclusão, que o Mundo é Cosmos e que se instala em uma unidade de fundo). Os desvios de entendimento, baseados em uma visão iluminista do que é o homem e de como ele “evolui” durante o processo histórico, acompanhando de perto certas teorias sobre a natureza da formação das imagens mentais desde a retina, partirão do equívoco vislumbrado para estabelecer, sobretudo no imaginário “científico” de curso comum, uma progressão integrativa de elementos que vai da máxima individualidade fetichista e “totemista” para a apreensão do Todo, após uma relação particularizada e hermeticamente fechada com cada elemento da paisagem — animista, portanto. O Todo (o Sagrado per se), pelo contrário e reiterando, é o pressuposto do resto, talvez distinguido inicialmente em duas totalidades que se casam no horizonte: o Céu e a Terra — como o demonstra Cassirer, primeiro vem a apreensão intuitiva do Todo, Celeste e/ou Terrestre, e, então, são conhecidas e nomeadas as suas particularidades, ou as individualidades neles contidas, indo até a minúcia de seus menores fragmentos discerníveis, nomeados como a divindades e segundo a relação emocional e funcional do homem com cada um deles — daí cada item e cada operação do processo agrícola, por exemplo, serem associados a uma divindade específica, cujo nome é sinônimo da coisa e da ação, que se dará como relação com algum aspecto da realidade global dos reinos vegetais e atmosféricos, da Terra e do Céu.

O Mythos não é uma invenção do homem, mas o próprio modo de a criatura humana existir no Mundo…

Logo, não se trata de os homens primitivos inquirirem sobre a existência ou não do Pai Dia ou da Deusa Terra — eram-lhes realidades dadas e automaticamente divinizadas. Tão pouco tinham a necessidade de levantar questões, que raramente se ocuparam, no cenário primevo, em desenvolver, do Nome, a personalidade dos deuses Céu e Terra, atentando para a circunscrição e a descrição dos fenômenos e das operações das divindades menores, começando pelos astros mais determinantes, governantes do Dia e da Noite, e passando pelos eventos climáticos e os ciclos dos tempos, das águas, da vegetação e da fertilidade humana e animal, todos intuitivamente interligados e bem concatenados, dentro das molduras da Totalidade, segundo suas relações causais, destrinchadas naturalmente ao longo de um vasto processo cumulativo de experiências — em substância tão antigo, remontando às centenas de milhares de anos, que se tornou a própria “infraestrutura” da imaginação humana e uma base interpretação espontânea para o ordenamento e a categorização de todos os novos elementos emergentes no horizonte de visão e de cultura humano.

O Mythos, por conseguinte, não é uma invenção do homem, não é uma criação ou um instrumento lapidado intencional e racionalmente para sanar uma suposta confusão mental primitiva, mas o próprio modo de a criatura humana existir no Mundo — um modo que não é gerado no contexto de uma necessidade material que precise de justificativas cognitivas, mas uma operação espontânea do espírito, a partir de uma lógica cosmicizante que vai absorvendo, engolindo e assentando todas as coisas dentro de um sistema de ordenamento do Cosmos (um sistema que não é criação humana, mas seu modo de ser e simbiótico na sua relação com o meio [o homem não o criou, mas o desenvolveu e o dominou]), mostrando-se útil e funcional a posteriori (não é como se os romanos tivessem pensado muito sobre como criar deuses ligados aos instrumentos e aos processos do trabalho agrícola por sentirem / saberem que isso era necessário). O Mythos, enquanto modo de ser, é, antes de tudo, expressão poética e criativa do espírito, movido por um impulso estético, pela Beleza, pelo Eros, desde o início impregnado de Logos, mas propriamente Mitológico apenas quando o sistema natural foi descoberto pela inteligência e tornado consciente, passando a operar sob controle e para cumprir finalidades cotejadas pela vontade conscientizada e meditada — assim será quando as sociedades primevas se desenvolverem em complexas redes citadinas de tipo agrícola e centralizadas ao redor de uma elite monárquico-sacerdotal.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 12 de março de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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