Depressão
Vazio e Renascimento
Por Natanael Pedro Castoldi
Há um interesse crescente em nossa sociedade no que diz respeito aos variados tipos de sofrimento mental. Constato isso pelo número substancial de indivíduos que têm se preocupado com sua saúde mental e que estão procurando por apoio profissional, mas também na quantidade daqueles que têm questionado sobre sintomas, características e causas de uma pequena diversidade de adoecimentos psíquicos que se popularizaram, porque se tornaram mais comuns. Todavia, quando coisas dessa natureza se popularizam, sempre há a possibilidade de desentendimentos circularem e se generalizarem, como é o caso da chamada “depressão”. Nesse ínterim, não falta quem se autoavalie a partir de alguns conhecimentos prévios, às vezes não bem esclarecidos, e conclua estar depressivo no sentido psicopatológico. Essa leitura de si mesmo é importante quando ajuda o sujeito a procurar por auxílio profissional, mas é, também, arriscada, porque pode atribuir adoecimento a processos que não são patológicos. Muitas pessoas, por exemplo, atribuem a si mesmas ou a outros “bipolaridade” apenas porque oscilam rapidamente de humor, indo de alegria para tristeza ou raiva rapidamente, sem atentarem para o fato de que a bipolaridade não é meramente a oscilação entre alegria e tristeza, mas a intercalação de ciclos, que podem durar dias ou até semanas, entre depressão e euforia, sendo a euforia muito diferente da alegria comum, mas um estado de agitação constante associado a uma percepção distorcida de si mesmo e do mundo, no sentido de um excesso de impulsividade e de autoconfiança às raias da autodestruição. Similarmente, muitos se pensam depressivos porque estão tristes há algum tempo, embora depressão não seja exatamente tristeza.
Antes de tudo, para que eu possa ajudar o leitor no esclarecimento sobre a depressão, é importante sustentar que esse texto não promete explicar tudo de maneira sistemática e exaustiva, mas auxiliar na correção de alguns entendimentos populares e também, em caso de suspeita, na busca por acompanhamento profissional. Agora podemos prosseguir.
É importante considerarmos as coisas desde a sua base elementar. O ser humano sente e pensa a partir de um substrato material constituído pelo seu organismo que, por sua vez, interage com o meio derredor. Nossos órgãos internos possuem um modo ótimo de funcionamento e quando padecem de alguma dor ou disfunção, alteram nosso metabolismo, nosso humor e a natureza de nossos sonhos e de nossos pensamentos. Nunca esquecerei de uma noite em que, antes de acordar com uma dor na região do fígado, estava sonhando com uma imensa pedra, pesadíssima! Uma sensação de peso, de languidez, pode estar associada a um sofrimento orgânico. Evidentemente, essas alterações podem envolver desequilíbrios no sistema endócrino, responsável pela produção de hormônios diversos, que viabilizam sensações como prazer e alegria, por exemplo, mas que, em desequilíbrio, podem reverter em inquietação e angústia. Também devemos considerar o aspecto metabólico em geral, que determina a capacidade que o organismo tem de processar as toxinas que o trabalho celular, dos órgãos e dos músculos produz ao longo do dia. Isso significa que uma respiração curta e insatisfatória, uma alimentação inadequada, uma péssima qualidade de sono e uma parca rotina de exercícios interferem no metabolismo e, portanto, tornam o corpo mais inflamado, mais indisposto e mais suscetível de sofrimentos orgânicos capazes de interferir nos humores e nos pensamentos (COLBERT, 2013).
Enfim, e mais importante para nosso estudo, deve-se observar o cerne energético, por assim, dizer, do corpo: o sistema nervoso. Esse sistema, que coordena os movimentos do organismo desde os órgãos até a musculatura, reage ao sofrimento orgânico acima referido, mas pode, também, intensificá-lo a partir de seu próprio desordenamento. Deve-se, contudo, considerar que cada pessoa nascerá com uma predisposição nervosa, a partir de como esse sistema está estruturado, de maneira que alguns demonstram, desde bebês, uma maior disponibilidade energética para atividade motora, enquanto outros mostram, muito precocemente, uma menor quantidade de energia disponível (ARON, 2021). É nítido, e isso não se deve necessariamente aos estímulos ambientais, que existem bebês naturalmente mais calmos do que outros. Essa estrutura nervosa conduzirá, provavelmente, ao temperamento chamado introspectivo, porque a “energia”, nesse caso, está mais voltada para dentro, já que menos exuberante e transbordante para inundar o ambiente — nesse caso, teríamos o temperamento extrovertido (VON FRANZ & HILLMAN, 2016). É aqui que podem começar alguns desencontros, porque há pessoas naturalmente mais lentas e mais sensíveis à pressão do ambiente, que atentam e reagem mais aos estados emocionais interiores e que tendem à melancolia. Essas pessoas, porque se encontram mais corriqueiramente em situações de tristeza ou com necessidade de passar um tempo sozinhas, podem ser chamadas por outros de deprimidas ou pensarem sobre si mesmas nesses termos, quando na verdade são simplesmente introvertidas. Num contexto no qual esse temperamento não seja visto como um problema, talvez tais pessoas não pensariam a si mesmas como disfuncionais, mas infelizmente é o que tende a acontecer em nossa sociedade baseada no consumo acelerado e na qual todos precisam mostrar alegria enérgica o tempo inteiro.
O sistema nervoso, como vimos, determina o nível de energia disponível. Há pessoas que possuem uma estrutura nervosa menos densa e que tenderão a viver num ritmo menos acelerado e mais prudente, porque percebem, consciente ou inconscientemente, que não têm tantas reservas para explosões de excitação ou esforços físicos e emocionais muito prolongados. Em tempos pregressos, quando a lógica da aceleração não impregnava toda a cultura, pessoas assim tinham garantidos lugares nos quais seu temperamento pudesse ser maximamente construtivo para a sociedade: ocupavam postos de sábios e de conselheiros reais, tornavam-se monges, eruditos, filósofos e artistas, professores, cientistas e artesãos (ARON, 2021). Penso que os introvertidos, hoje mais do que nunca, em função das suas qualidades mais críticas, observadoras e ponderadas, são fundamentais para estabelecer um ritmo mais saudável à vida comum, porque, por sua própria natureza, impõem aos que os cercam o imperativo da espera, da paciência e da fruição. Especialmente em nossos dias, de doentia demanda por produção e prazer imediatos, quando os mais melancólicos são tratados como inadequados, as qualidades da melancolia são importantes.
Mas, fique atento, leitor, porque há uma linha divisória, embora não muito clara, entre a saúde e a doença. A melancolia pode ser pensada enquanto depressão quando o indivíduo começa a sofrer verdadeiramente, tendendo cada vez mais ao isolamento, com prejuízos concretos na saúde física, na saúde emocional, na saúde social, na saúde profissional e na saúde material em geral. Nessas horas, quando os pensamentos começam a se dirigir à realidade com pessimismo mórbido e se começa a alimentar uma desesperança crescente com relação ao futuro, já estamos no campo do adoecimento mental. É importante, por conseguinte, que a observação de mudanças nesse sentido seja levada a sério e que se procure ajuda antes do agravamento, para uma menor redução de danos e a evitação de uma progressão perigosa, porque sobretudo a perda de esperança com relação à vida e ao futuro sinaliza que o indivíduo já está correndo risco.
Veja bem: melancolia não é necessariamente depressão, porque o melancólico, ou introvertido, não é obrigatoriamente pessimista com relação à vida e ao futuro — aliás, ele pode, na verdade, ser até muito otimista, embora não tenha predisposição expansiva frente à realidade derredor, preferindo resguardar sua intimidade e não se expor em excesso. A depressão pode vir de um agravamento nesse temperamento, mas também pode acometer o extrovertido, porque se trata muito mais de uma reação defensiva do sistema nervoso a um excesso crônico de estresse e de ansiedade, frente a qual o organismo opta por reduzir a oferta energética, para que o sujeito, sem esperança clara de sair do vórtice do estresse e da ansiedade, simplesmente sinta menos — essa é, também, uma medida protetiva do próprio sistema nervoso, para evitar uma danosa sobrecarga energética, que pode danificá-lo, assim como ao cérebro e ao organismo em geral (ANDRETTA & OLIVEIRA, 2012). A diminuição da oferta energética do sistema nervoso o torna menos resiliente a certos estímulos ambientais, porque desprovido de maiores recursos, e por isso o deprimido não é apenas triste (aliás, ele pode sentir-se alegre com alguma frequência), mas alguém irritável e impaciente, às vezes hostil e reativo à menor perturbação. A baixa energética no sistema nervoso é uma constante na depressão, mas existem outras causas a serem consideradas: histórico familiar, disfunções hormonais, excesso de peso, sedentarismo, vícios… Por isso é importante, para trabalhar com a depressão, primeiro observar o próprio estilo de vida e ver se, eventualmente, essa baixa funcional, que afeta o emocional e o pensamento, não puxa raízes de uma série de desequilíbrios na rotina, o que nos informa da importância do autocuidado, mas, principalmente, para evitar seguir “achismos” pessoais, de se procurar pela competência de profissionais adequados, desde nutricionistas e neurologistas até psicólogos e psiquiatras.
Quando o sujeito é incapaz de atribuir importância para a própria existência, dificilmente terá como ver a realidade de maneira positiva
Quando falamos a respeito do estilo de vida e consideramos que a depressão está relacionada à falta de esperança com respeito ao mundo e ao futuro, entramos numa vereda de fundamental importância, mas que é muitas vezes ignorada em favor de uma visão meramente fisiológica da psicopatologia: estamos falando de uma neurose noogênica. Na logoterapia se entende que a depressão nem sempre está relacionada a uma causa primeira de ordem patogênica, no sentido de ser física e tratável apenas com medicação, mas pode emergir de uma fonte primeira de matiz existencial (FRANKL, 2016). A depressão pode emergir de um trauma severo, que revira toda a visão de mundo do indivíduo, pondo em questão suas certezas prévias. Uma traição de alguém próximo poderá atingir e desordenar tudo aquilo que outrora a pessoa acreditou a respeito de confiança, de amizade e de amor, causando um desnorteamento traumático que a faz suspeitar da real natureza de seus relacionamentos anteriores e a leva a perder a esperança, nesse quesito, com relação ao futuro, e, uma vez que somos sociais e que construímos nossa autoimagem a partir da qualidade de nossos relacionamentos, poderá também ter abalada a própria ideia de si mesma, de seu valor pessoal e de seu lugar no mundo. Frustrações e baques assim dão naquilo que se chama de depressão reativa (HOLLIS, 1998). Há, contudo, uma vereda mais sutil, que não identifica a eclosão da depressão a partir de eventos de maior magnitude, mas do alastramento contínuo de frustrações existenciais baseadas na carência de uma base de sentido satisfatória para a vida. Quando o sujeito é incapaz de atribuir importância para a própria existência, não sabendo que lugar ocupar no mundo, ou mesmo que é esse “Mundo”, dificilmente terá como ver a realidade de maneira positiva, porque este Mundo, desprovido de significado, se transforma numa massa aleatória de eventos impessoais, tão pesada e brutal a ponto de causar terror, angústia e desespero, donde se chega à desesperança (BECKER, 1995). E mesmo que se possa afirmar uma base através da qual o Mundo adquire unidade, previsibilidade e sentido, nem sempre o indivíduo consegue identificar com clareza sua missão dentro desse espaço, e então se sentirá ilegítimo e impregnado de culpa.
Segundo Frankl (2016), os aspectos biológico e psicológico de nossa constituição só podem colaborar entre si se, pelo aspecto espiritivo, encontrarmos um sentido maior do que nós mesmos, uma base de valor que nos dá uma jornada significativa para seguir durante nosso tempo vital. A isso ele chama de autotranscendência, que é o imperativo que todos têm de se entregar a algo maior do que os próprios apetites carnais e os meros desejos da psique elementar. Quem se encontra inserido num projeto maior, liga a própria vida a um Todo, impregnando-a de relevância existencial, e, ao assumir esse caminho, verá como, do espírito, o corpo e a psique são harmonizados para colaborar com a demanda — quer dizer: deixa de estar preso à mera satisfação de apetites e da competição entre eles, para usar seu corpo e seu aparato cognitivo como instrumento para algo mais do que a animalidade. É a ausência de narrativas significativas maiores, que quase não são mais ofertadas em nossa sociedade, que tem levado à explosão nos casos de depressão, porque as pessoas ficam sem opções claras e significativas para o empreendimento da autotranscendência, mantendo-se restritas a vidas sem profundidade, alienadas do Todo, e conduzidas pelo saciamento imediato das necessidades e dos vícios mais vulgares, que servem ainda como entorpecimento mental para que não precisem encarar o vazio das próprias existências (DAHLKE & DETHLEFSEN, 2007). Todavia, nem sempre esses entorpecedores estão disponíveis, às vezes perdem a eficácia, noutras vezes a realidade se impõe e os esteriliza, e noutras, ainda, a própria pessoa fica exaurida do frenesi dessas distrações intermináveis. É nessa hora, sem mais recursos, fatigada e combalida, que ela será obrigada a encarar seu vazio existencial — e aí a depressão, da frustração profunda, pode finalmente encontrar lugar.
Digo isso considerando que os entorpecedores (entretenimento excessivo, barulhos intermináveis, prazeres alucinantes…) podem atuar como impedimentos da crise necessária pela qual o indivíduo precisa passar para reconhecer suas faltas e lidar com elas. A depressão, nesse caso, é um movimento natural de uma psique desprovida de nutrientes de que precisa, além de exaurida pelo bombardeio de hiperestimulação, e, portanto, não é de todo ruim. Os movimentos de inflação e de alienação, de alegria expansiva e confiante e de retraimento frustrado e doloroso, são parte integrante do funcionamento mental e meios pelos quais a psique pode amadurecer (EDINGER, 2020). Veja bem: um adolescente cheio de vitalidade, impelido pelos hormônios e pelas mudanças físicas e mentais, tende à inflação do ego, e vai, cheio de confiança, se expandindo no mundo ao redor, até que se bate contra os limites da realidade e percebe que não estava tão adaptado e que não era tão poderoso quanto imaginava, por isso se frustra e se retrai, para renascer posteriormente mais maduro, mais adaptado e mais consciente dos próprios limites, e voltará a inflar nesse novo patamar, até se frustrar novamente, porque esse novo território tem novos limites e outra complexidade. Alienar-se, frustrar-se, deprimir-se, sentir-se pequeno diante de uma vastidão hostil e não ter como se cegar a essa realidade, é fundamental para, pela crise, suscitar uma pulsão vital de reformulação da mente, de redefinição dos valores, de busca de um novo sentido, de uma vocação, de uma missão. Não é sem razão que os antigos gregos consideravam a depressão um momento sagrado na mente, porque entendiam que quem estivesse depressivo, deslocado do tempo e do espaço comuns, estava passando por uma jornada de descida ao Submundo, da qual retornaria renovado, com uma nova revelação e com uma nova compreensão a respeito da vida. Muitas vezes, por motivos assim, eles davam à depressão uma qualidade oracular (PEDRAZA, 2012).
À exemplo dos gregos, mas sem desconsiderar todo o entendimento recente das ciências psicológica e psiquiátrica, podemos olhar para a depressão com menos pavor e, por isso, com mais seriedade. Com um bom acompanhamento profissional, esse momento da vida da mente, que é legítimo por si só, pode ser a oportunidade de reavaliarmos nossas crenças, nossos valores, nosso estilo de vida e também o significado maior de nossa existência. Talvez tenhamos entrado nesse processo de alienação do ego, procurando nos isolar e nos proteger do mundo ao redor, porque nossos recursos prévios não eram mais adaptados à realidade presente, ao contexto atual de nossas vidas, ou porque estávamos nos entregado ao espírito de nosso tempo, dado à exaustão pelo consumo e pela velocidade, sem espaço para a psique descansar e se retrair, e sem qualquer oferta de um significado maior para o viver. Esse é momento, graças à oportunidade depressiva, de darmos a nós mesmos uma segunda chance e refletirmos sobre como nos afastamos de nossa vocação existencial em favor de demandas exteriores, baseadas no status e no apelo da cultura, procurando fingir uma impraticável felicidade constante, nos viciando num trabalho insalubre apenas porque isso é valorizado pelos outros ou procurando simular o acesso a bens de consumo apenas porque são a moda das redes sociais. Talvez não estivemos vivendo com autenticidade, conectados a um fundamento de sentido profundo e satisfatório, e por isso a vida se transformou num deserto vazio. Por isso a depressão, quem sabe. Por isso, pela depressão, temos a oportunidade de renascer.
ANDRETTA, I.; OLIVEIRA, M. da Silva. Manual Prático de Terapia Cognitivo-Comportamental. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012.
ARON, E. Pessoas Altamente Sensíveis. Rio de Janeiro: Sextante, 2021.
BECKER, E. A Negação da Morte. Rio de Janeiro: Editora Record, 1995.
COLBERT, D. Emoções Mortais. Rio de Janeiro: Central Gospel, 2013.
DAHLKE, R.; DETHLEFSEN, T. A Doença como Caminho. São Paulo: Cultrix, 2007.
EDINGER, E. Ego e Arquétipo. São Paulo: Cultrix, 2020.
FRANKL, Viktor. Psicoterapia e Sentido da Vida. São Paulo: Quadrante, 2016.
HOLLIS, J. Os Pantanais da Alma. São Paulo: Paulus, 1998.
PEDRAZA, R. L. Ártemis e Hipólito. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
VON FRANZ, M. L.; HILLMAN, J. A Tipologia de Jung. São Paulo: Cultrix, 2016.
Artigo de minha autoria publicado na 12ª edição da Revista Fé Cristã.