Deus na Israel Antiga

Sobre a “evolução” da “personalidade” divina nas Escrituras

Natanael Pedro Castoldi
6 min readMar 5, 2024

A passada rápida pelo livro Deus: Uma Biografia, de Jack Miles, enquanto passeava numa livraria, ajudou-me num insight, que é a conclusão clara de certas intuições e caminhos que andei trilhando nos últimos meses. O tratamento de Deus como personagem literária, que Harold Bloom já havia me apresentado, e a ênfase no desenvolvimento da “personalidade” de Deus ao longo do Antigo Testamento e das diferentes tradições que compõem as Escrituras Hebraicas, leva à inevitável compreensão de que sempre e necessariamente houve uma certa assimetria entre o Deus da cultura ou da vida histórica hebreia e Aquele que é conhecido na Bíblia — com isso, não se afirma exatamente contradição, mas diferenças que são de natureza modal, por assim dizer, porque o modo da Fé pública e cultural é, em essência e em fenômeno, de alguma maneira diverso daquele que se apresenta no Texto Sagrado.

O ponto é que, na vida cúltica e na sua expressão popular, esse “desenvolvimento” da “personalidade” de Deus é imperceptível, ou mesmo impossível, e isso se dá pelo simples fato de que a Escritura nos apresenta o panorama de milênios de redação do Texto Sagrado e da vida do Povo Santo, segundo centenas de mãos e como obra “coletiva”, por assim dizer — síntese, pois, do progresso ou do amadurecimento do Povo e de sua relação com o Divino -, enquanto a Fé, em sentido concreto, sempre foi vivida em um tempo e em um lugar, e, por essa razão, raramente se expressou com a consciência lúcida e em ato do processo histórico pregresso — principalmente porque a clareza última a respeito do lugar do Povo diante de Deus e de Quem é o Deus do Povo só pôde ser verdadeiramente instalada no espírito hebreu quando do fechamento de sua história veterotestamentária no Exílio, pelo qual, sob a direção espiritual de certos profetas e líderes, reinterpretou todo o seu passado. Ainda assim, ninguém se engane ao deduzir que a autocompreensão judaica vertida no fechamento da Escritura jazia no mesmo nível de entendimento em todas as mentes e em todos os corações, até porque sempre deve ter havido uma distinção qualitativa entre o tipo de fé do popular, sempre carregada de folclore, de naturalismo e matiz cósmico, e sempre dada a um individualismo mágico, focado no suprimento de necessidades materiais e existenciais em vigor, e aquela de tipo esclarecido, da elite palaciana, sacerdotal e profética, impregnada de senso civilizacional, histórico e verniz coletivo, muito menos naturalista e muito mais abstrata, e até rival do popularesco e folclórico — é necessariamente essa a que compõe a Escritura, expressando muito mais a Grande Tradição hebreia, que é a autoconsciência dos dirigentes do Povo, do que a consciência massiva do Povo mesmo, enquanto insemina gradual e tenazmente, por meio do Culto formal, do ensino público, da aplicação pública da Lei e das medidas proféticas e reais contra a idolatria, alguns dos elementos fundamentais da Fé na consciência e no inconsciente coletivo da Nação, embora essa assimilação obrigatoriamente ocorra em termos menos intelectualizados e mais carismáticos, em experiência de tipo sensorial e emocional (como o morticínio dos profetas da Baal por Elias, que causou amplo frenesi nas conversações populares, servindo como motivo pedagógico).

… é [essa classe] que compõe a Escritura, expressando muito mais a Grande Tradição hebreia […] do que a consciência massiva do Povo mesmo…

Em suma: a Fé, tal como deve ter existido nos tempos e nos locais concretos da Israel antiga, não acompanha literalmente os desenvolvimentos internos da consciência e os debates esclarecidos sobre a natureza de Deus e a natureza do Povo — uma porção considerável desses problemas não era exatamente um problema consciente ou claro para os populares, embora o pudessem sentir como uma espécie de desconforto, de inquietação, de angústia, experimentando-o a partir de suas expressões mais concretas, como as fomes, as pestes e as injustiças, perante as quais reagiam como que instintivamente, recrudescendo apelos idólatras para supressão do sofrimento incompreendido, sem necessariamente o abandono do culto a YHWH nos santuários, muito dos quais sincréticos, que insistiam em proliferar nos interiores (talvez a maior evidência desse estado de coisas era o abandono expressivo das peregrinações anuais dos israelitas para o Culto no Tabernáculo e, depois, no Templo, evidenciando um relaxamento nas obrigações cúlticas formais e uma tendência à acomodação vulgar às “fés” próprias e locais).

Muito provavelmente, portanto, enquanto o antiquíssimo poema de Jó, de motivos conhecidos pelos babilônios já em 1.750 a.C., servia aos espíritos mais esclarecidos e sensíveis às crises do Povo, que as viviam em seus corações, antecipada e inflamadamente, muito antes de se tornarem inquestionáveis e altamente perceptíveis na vida comum, de pretexto para especulações a respeito de Deus e de Sua relação com a Nação, entre os populares devia aparecer sob a forma de conto, de parábola, para dar sentido imediato a situações muito locais e muito palpáveis, talvez servindo à pedagogia geral do povo no contexto do Exílio, quando traduzido em poema e em Escritura e instilado no ensino público nas redes sinagogais criadas na experiência babilônica — é desde a sinagoga e do ensino geral aos meninos judeus que o quadro supracitado começa a mudar. A mesma diferença deve ser encontrada entre a forma popular do “conto” do profeta Jonas, engolido pelo Grande Peixe, e a sua forma escrita e oficial enquanto Escritura — uma diferença entre contos espetaculares, de tipo folclórico, com aplicação imediata e pessoal (ou devocional) e aquela de exortação pública e mais geral. Na prática e mais comumente, isso aparece nas distinções entre o montante everéstico, que é quimérico, de contos e lendas hebreias, radicados em tradições muito locais, eventualmente desenvolvidas a partir de motivos antigos e estrangeiros (até como a folclorização de Mitos sagrados primitivos), e a tradição culta radicada nas Escrituras e nos documentos de corte, dos sacerdotes e dos sábios, ou mestres, que dão as bases de compilações tais como os Talmudes.

É dessa maneira que o Deus da Fé em seu sentido pontual, localizado espaço-temporalmente, é Aquele tal como conhecido e vivido pelo fiel e pelo oficiante do culto, no ato mesmo do culto e no contexto da vida comum. O fiel, e não tão diferentemente do oficiante, provavelmente não participava da vanguarda do espírito israelita e de suas crises, às quais não vivia com consciência lúcida, e o Deus a Quem cultuava era uma forma fixa, talvez bastante flexível em expressões e desdobramentos — compatíveis com os diversos meandros da jornada cotidiana e de motivos diuturnos tênues -, mas rígida em um sentido evidente: Centro do Cosmos e Sagrado por excelência, potencialmente desprovido de todos os antropomorfismos e de todas as relatividades baseadas na ignorância do homem, já e em potência aquilo que se tornará finalmente no Exílio, quando a consciência monoteística, em todos os seus desdobramentos, terá atingido o zênite e alcançado os escrúpulos até mesmo dos mais símplices.

Para o fiel e para o oficiante, YHWH não estava em “desenvolvimento”…

Para o fiel e para o oficiante, YHWH não estava em “desenvolvimento”, ao contrário do que fica patente desde a visão global da Escritura e em termos de “evolução” da personalidade enquanto personagem literária, e mesmo que algo de Sua verdadeira natureza ainda não tivesse sido descompactado na consciência do Povo, e nem mesmo dos dirigentes da Nação, já era, em potência, tudo o que viria a ser em ato — não em termos de realidade metafísica, mas de objeto da consciência judaica. YHWH já era Deus Criador de múltiplos Nomes, o Grande Elohim, o El que é Todos os Elim, embora conservasse uma miríade de imperfeições e de resquícios cosmológicos popularescos relativos à imperfeição do entendimento de seus adoradores. Por esse motivo, o das limitações do entendimento, aquilo que posteriormente foi percebido em termos de contradição e de polêmica não era sequer notado pelo adorador em seu próprio tempo — para ele, YHWH, a Quem adorava, era tal como o seu horizonte de conhecimento e o seu modo de conhecê-Lo — os elementos cosmoteístas e certas superstições não eram, portanto, percebidas ainda como problemas teológicos (embora já pudessem sê-lo para certos representantes da elite profético-sacerdotal e cortesã [que, todavia, ainda assim sabiam adorar ao mesmo Deus do israelita médio]).

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 4 de março de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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