Do Desamparo de Cristo na Cruz

As razões profética, teológica e psicológica

Natanael Pedro Castoldi
5 min readNov 5, 2024

Tocou-me muito a elucidação apresentada pelo Reverendo Miguel Rizzo Jr. (Varão de Dores) para o clamor do Cristo Padecente — “Eli, Eli, lamá sabactâni / Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt 27:46). Além da razão profética, porque ali se cumpria o oráculo do profeta Davi no Salmo 22:1, há uma razão psicológica, porque todo o mártir, do judeu ao cristão, confiava no amparo de Deus na hora da grande aflição, isto é: na presença do Senhor, que era evidenciada principalmente na inibição da sensibilidade ao sofrimento físico, considerada uma dádiva ao martirizado e uma confirmação divina, de caráter também público, da sua obra. O exemplo mais intuitivo é o de Estêvão, descrito em Atos 7:54–60: imediatamente antes de ser ferozmente apedrejado, foi magnetizado pela visão beatífica do Cristo Entronizado, que o serviu de miraculoso conforto. A própria expectativa fervorosa do apóstolo Paulo pela ocasião do cumprimento de sua sentença está carregada da certeza do cuidado do Senhor no momento da descida do gládio.

Segundo Rizzo, a causa psicológica, por assim dizer, para esse anestesiamento físico na ocasião dos flagelos pode ser denominada “obsessão”,

e que se realiza, quando uma ideia empolga de tal modo todo o campo da consciência, que o indivíduo fica inconsciente até das maiores dores. […] No caso dos mártires a ideia empolgante seria a expectativa ansiosa de ver a Cristo, além da morte, no deslumbramento da glória celeste.
- p. 77

No entanto, bastaria uma distração para suprimir o fenômeno da “obsessão total”, abrindo uma brecha para que a atenção do padecente se voltasse para as excruciantes dores. Cristo Jesus, indicará Rizzo, não pôde desviar-Se das lancinações da pena capital, aflito que esteve, desde o começo, com o bem-estar daqueles que ficariam no Mundo após Ele. Já crucificado, Ele se dirige ao Discípulo Amado e à Sua Mãe Amada, dizendo: “Eis aí tua mãe” e “Mulher, eis aí o teu filho” (Jo 19:26–27). Antes disso, olhando ao redor desde o cimo do Madeiro, compadeceu-Se daqueles que O rejeitavam, dizendo: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23:34). Em seguida, para o malfeitor arrependido, crucificado ao Seu lado, entregou a promessa da Salvação, dizendo: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23:43). Quão lúcido, quão consciente, quão presente Ele estava! Agonizante, percebeu-Se sedento e pediu de beber aos carrascos, que Lhe deram vinagre, pelo que cumpriu o Salmo 22:15, morrendo em seguida. Note-se, todavia, que esta atitude não se performou de improviso, como que de última hora.

Quão lúcido, quão consciente, quão presente Ele estava!

Sabendo que chegava Seu fim, aproximada a Páscoa do ano fatídico, ocupou-Se em reunir ao redor de Si os discípulos, para cear com eles uma última refeição — porque “como havia amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13:1). Esta foi a ocasião para o Seu discurso final e para a tocante Oração Sacerdotal, transbordante de amor pelos discípulos, preocupado que Cristo estava com a sina que eles haveriam de padecer em função d’Ele, donde o Seu clamor ao Pai para que lhes guardasse, dizendo: “Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal” (Jo 17:15). Tendo orado, foi com os discípulos ao Getsêmani, e começou a entristecer-Se e a angustiar-Se muito (Mt 26:37), pois sabia que naquela mesma noite, e já durante a madrugada, a Sua Dolorosa Via se iniciaria. Por isso buscou ter consigo os mais íntimos, dizendo-lhes, antes de Se afastar a um “tiro de pedra” para orar sozinho: “A minha alma está cheia de tristeza até a morte; ficai aqui, e velai comigo” (Mt 26:38). Consolado por um anjo, suou gotas de sangue, e orou:

Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres.
[…]
Pai meu, se este cálice não pode passar de mim sem eu o beber, faça-se a tua vontade.
- Mateus 26:39 e 42

Por “cálice”, saiba-se “sina” ou “destino”, o que seria, em termos veterotestamentários e escatológicos, uma sina geralmente má e o cálice, pois, uma carga de Juízo Divino. Esta é a razão teológica das agonias de Cristo na Cruz, porque nela Ele estaria como Maldito (Gl 3:13) e como sacrifício vicário e propiciatório do “Mundo” (Jo 3:16), isto é: da humanidade da “oikumene”. O desamparo divino está associado, por conseguinte, à natureza específica da Crucificação do Filho e cumpre, como já vimos, um papel profético, para não dizer “cósmico”. Jesus sabia que o Seu sacrifício, como o do bode expiatório do Levítico, não poderia contar com o consolo, com o amparo do Pai no momento crucial, e que Ele deveria sofrer toda a intensidade e a completa extensão das dores previstas.

Neste sentido, portanto, o brado de Mateus 27:46, “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”, conquanto testemunhe da ocultação do Pai para além da Nuvem Escura, à semelhança da teofania do Sinai, no Êxodo, reforça o elemento psicológico da experiência de Jesus no Madeiro, sugerindo a dimensão de Seu sofrimento físico e emocional, imediatamente traduzível nos termos do Salmo 22. Nisto temos um elemento adicional para a compreensão da dor do padecimento do Salvador, multiplicada pela ausência do milagroso conforto concedido por Deus aos Seus mártires, também explicada pelo ardente amor do Senhor Jesus pelos homens.

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Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? Por que se acham longe de minha salvação as palavras de meu gemido?
Deus meu, clamo de dia, e não me respondes; também de noite, porém não tenho sossego.
Contudo, tu és santo, entronizado entre os louvores de Israel.
Nossos pais confiaram em ti; confiaram, e tu os livraste.
A ti clamaram e escaparam; confiaram em ti e não foram envergonhados.
Mas eu sou verme e não um ser humano; afrontado pelos homens e desprezado pelo povo.
Todos os que me veem zombam de mim; fazem caretas e balançam a cabeça, dizendo:
‘Confiou no Senhor! Ele que o livre! Salve-o, pois nele tem prazer.’
Contudo, tu és quem me fez nascer; e me preservaste, estando eu ainda ao seio de minha mãe.
A ti me entreguei desde o meu nascimento; desde o ventre de minha mãe, tu és o meu Deus.
Não te distancies de mim, porque a tribulação está próxima, e não há quem me ajude.
Muitos touros me cercam, fortes touros de Basã me rodeiam.
Contra mim abrem a boca, como faz o leão que despedaça e ruge.
Derramei-me como água, e todos os meus ossos se desconjuntaram; meu coração fez-se como cera, derreteu-se dentro de mim.
Secou-se o meu vigor, como um caco de barro, e a língua se me apega ao céu da boca; assim, me deitas no pó da morte.
Cães me cercam; um bando de malfeitores me rodeia; traspassaram-me as mãos e os pés.
Posso contar todos os meus ossos; os meus inimigos estão olhando para mim e me encarando.
Repartem entre si as minhas roupas e sobre a minha túnica lançam sortes.
Tu, porém, Senhor, não te afastes de mim; força minha, apressa-te em me socorrer.
- Salmo 22:1–19

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 5 de novembro de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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