Do Desenvolvimento da Mitologia Grega
E uma ideia geral sobre o desenvolvimento da mitologia universal
Eis uma suma de Grimal, Graves, Stein Jr., Burnet, Campbell e Otto a respeito da mitologia grega: o panteão e as histórias dos deuses e dos heróis sem formam por uma via de amalgamento cultural decorrente de todo o tipo de contato entre os povos da bacia oriental do Mediterrâneo (conquista militar e política, comércio, migrações…), por assimilação política e religiosa (na medida em que as cortes aquéias se firmam sobre os autóctones) e pela projeção folclórica do mundo mental dos gregos nos novos territórios, como formas, também, de explicar ou justificar sua presença. No segundo caso, os grandes sistematizadores do panteão são os poetas, os bardos, estruturando-o de maneira que corresponda às necessidades das cortes indo-europeias, assimilando os deuses antigos em uma cosmologia regida pelos seus próprios deuses — os atos divinos e os grandes eventos da mitologia dão o mito e o fundamento pré-histórico das colônias, das suas cidades e das suas cortes, tomando de empréstimo o modelo arquetípico das narrativas míticas aborígenes, além daquelas trazidas nas levas migratórias e nas invasões. Enquanto mitos, fornecem a infraestrutura ideacional capaz de ordenar a vida em comum, tal como ordenam e legitimam os ritos e as liturgias do Culto — são esses os ritos que conservam, ao redor do Sagrado, o Mundo, a sociedade e o indivíduo, renovando-os segundo a manutenção da economia cósmica, a qual busca nos elementos genesíacos as forças cosmogônicas regenerativas de toda a realidade.
Neste ponto, a mitologia grega, conquanto dotada de elementos estrangeiros e de um espírito notavelmente distinto do autóctone, mantém e atualiza em seus próprios termos certos motivos e mitologemas aborígenes originários do caldeirão do Mediterrâneo Oriental, do Crescente Fértil, do Levante e do megalitismo insular. Essa infrestrutura que se preserva, atualizada em superfície conforme determinados interesses políticos e militares, conserva em si a substância do mito agrícola, de estirpe naturalista, indígena. Neste caso, o “mundus” do pelasgo, altamente emocional, porque pautado na experiência primitiva diante dos fenômenos atmosféricos e dos dramas do grão e de seus processos de preparo, é estruturado existencial e afetivamente, e refletido, num primeiro momento, em simbolizações de altíssimo teor afetivo e, portanto, segundo a superabundância de referenciais cruentos da existência humana nos seus termos baixos e viscerais. Este “mundus”, pois, jaz vertido antropomorficamente nas histórias dos deuses, que se desenrolam, por conseguinte, em tramas analógicas, como símbolos dos dramas do mundo natural e da cultura dos campos, que são replicados ritualmente nos santuários para as melhores garantias dos favores divinos na colheita e nos demais empreendimentos da sociedade.
… o “mundus” do pelasgo é estruturado existencial e afetivamente…
É por essa razão que os mitos clássicos guardam em si exemplos dos maiores absurdos, de todas as devassidões e das mais sangrentas violências, pouco e nada compatíveis com o que se espera do Divino quando divisado teologicamente: esses mitos são representações simbólicas dos dramas do ambiente natural e cultural das sociedades neolíticas e das civilizações do Bronze, e cumprem a função de codificarem, em tramas de notória simplicidade e de alta intensidade, os processos fundamentais da experiência humana dentro do regime agrícola. Não são, portanto, histórias cotejadas segundo pretensões morais e com intenção inaugural de atribuir qualquer significado ético e de matiz subjetivo à vida pessoal, mas tramas exemplares da forma mental da psique coletiva dos povos autorais, como códigos míticos para os rituais e para as liturgias básicas da sua sociedade. Assim, quando os deuses irmãos coabitam e geram filhos, são realidades opostas trazendo à luz e fundando novas realidades, pelas quais o Cosmos é explicado — na origem e na sua economia interna -; e quando o filho dos deuses é morto, esquartejado, enterrado e ressuscitado, é uma divindade vegetal e primaveril, ligada ao ciclo do grão e regente de certos cultivos e de suas operações laborais, que ali está. Nos ritos os participantes, corriqueiramente mascarados, representarão essas e outras divindades, repetindo rigidamente todos os seus gestos, para que as realidades a elas associadas sejam revitalizadas — nos tempos mais remotos, sacrificava-se homens como éctipos do deus da vegetação, por exemplo.
O ponto é que, com o esmorecimento das civilizações do Bronze e com a passagem dos séculos após a instalação dos aqueus sobretudo na Grécia e na Ásia Menor, foi se afastando do campo da inteligibilidade a razão originária de muitas das narrativas primitivas sobreviventes e integradas na mitologia grega, porque o sistema societário que progrediu a partir do espírito indo-europeu e do seu modo de fixação nos territórios, com elementos particulares desde o princípio, não soube justificar ritualmente muitos dos mitos herdados, que foram se revestindo cada vez mais do folclórico e do feérico, preservando a aparência, embora já sem uma forma facilmente compreensível — donde a sua disponibilidade para usos estéticos e literários de gênio. Com o desenvolvimento das poleis e, desde a militarizada sociedade grega, da sofística e da filosofia, essas narrativas cruentas e obscenas, expressivas dos dramas do cosmos e da alma dos seus autores, se tornaram um crescente incômodo, muito bem expressado nas famosas tragédias.
O fato é que em um regime social de tipo axial e não mais cosmológico, portanto sobremaneira ético, olimpiano ou citadino, mais apegado às abstrações e à razão, ou às formas, uma narrativa dramática do “mundus” naturalista dos agricultores antigos não era suficientemente apelativa aos espíritos mais elevados. A abstração estabilizou o Mundo em uma estrutura cosmológica estável e racional a partir dos desdobramentos lógicos do Arché. Os sábios e filósofos buscaram, então, uma Imagem para pensar o Mundo — e essa Imagem é algo diferente daquela impressão agônica de um Mundo vivo, pulsante, cheio de deuses e de “daemons”, que são princípios ativos e inteligentes, livres, irritáveis e potencialmente arbitrários que regem os fenômenos visíveis. Há aqui, é claro, uma certa “imagem” de Mundo, mas não o Mundo exatamente como Imagem, como um Cosmos propriamente dito, rigidamente concatenado no Ser, que é imóvel, e proporcionalmente ordenado segundo toda a severidade do Clássico.
… essa Imagem é algo diferente daquela impressão agônica de um Mundo vivo, pulsante, cheio de deuses…
Neste patamar, chegando-se a uma espécie de monoteísmo cósmico, as tramas viscerais dos deuses, ainda que animadoras dos sentimentos da plebe, não podiam mais ser encaradas com a naturalidade de antanho. Por essa razão, já não mais podendo cumprir o mesmo papel que cumpriam na justificação dos ritos agrícolas, foram tomadas por abstrações e tornadas alegorias das fórmulas e das conclusões lógicas duma cosmologia teológica altamente racional. São vistas, então, de símbolos das impressões almáticas dos antigos agricultores diante das exultações hierofânicas da natureza, como símbolos de realidades transcendentes e das operações da Inteligência. Há, todavia, um nexo sutil entre as pontas do primitivo e do teológico-filosófico, do pandêmio e do urânio, do extrovertido e literal e do introvertido e espiritual.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 27 de janeiro de 2025.