Do Escândalo do Legado Cristão
A intelligentsia evangélica conseguiu transformar o avesso da Fé em sua expressão pública
Como bem descrito por Edward Edinger, o fim de um Éon, ou da Era, e o limiar da morte de uma civilização, uma vez que acompanham a exaustão dos desdobramentos internos e diurnos de seu motivo fundacional, conduzem à eclosão de seu inverso, daquela contraparte noturna que fora submetida ao exílio, todavia que se manteve ativa enquanto potência ctônica legitimadora dos valores apolíneos. Porque todo o sistema de ordem civilizacional se legitima não apenas pela razão inerente aos seus valores positivados (como se o fato de serem razoáveis garantisse a sua perduração), mas pelo que esses valores rejeitam ou aquilo que eles combatem — cuja sombra deve ser mantida no horizonte distante, para que se conservem pertinentes.
Quando, contudo, o cerne autoritativo do qual irradiam esses valores, o aspecto positivo do motivo fundacional, desgasta-se, os valores nele justificados perdem eficácia e já não mais parecem seguros para a contenção da Anomia. Uma civilização, enquanto cultura, é nascida e conservada sob um culto, sob um aspecto do Sagrado, e é do Sagrado que o motivo fundacional se conserva vitalizado. Vê-se no Divino o Auctor (Cacciari), a Fonte de toda a ordem legítima e de toda a justiça, e é por meio da reta justiça que o Nomos sobrevive e se mantém apelativo à vida pública. Uma crise espiritual, uma crise direta no eixo sacral que se assenta no trono da civilização, na medida em que torna a Fonte uma fonte amarga, já não mais sustenta os mecanismos burocráticos dentro do espectro de legitimidade e fá-los perder a autoridade justificadora e retribuidora — repete-se, a Anomia, então, terá vez. Quando assim é, o turbilhão de vícios, de perversidades, de violências, todos vinculados aos demônios ancestrais que foram suprimidos pelo éthos olimpiano, eclodem e dominam os meandros citadinos, infundindo um misto de frenesi hedonista e de desespero existencial.
É isso que Edinger vê nos séculos derradeiros do Mundo Antigo e do Império Romano. A proliferação da imoralidade e dos assassínios, assim como de cultos selvagens, como resposta a uma crise generalizada no espírito romano, devida à pressão barbárica ao Norte, ao culto oficial, extremamente burocrático, e aos pavores da Ekpyrosis Universal, deram margem à popularização de filosofias e éticas moralmente severas, mas igualmente às religiões de mistério, mais intimistas e efusivas, mas nem um milhar de ofertas de ressignificação da vida foi capaz de superar o cristianismo, com seu traço moralista judaico e seu universalismo carismático e redentivo. O motivo fundacional cristão, com seu rigor ético e seu carisma, deu novo lugar às imoralidades, vinculadas às divindades politeístas, todas associadas à ignorância idolátrica, senão às entidades demoníacas primevas, e, portanto, assentadas no espectro escatológico das hostes de Satã, em função dos novos valores positivados, bem estabelecidos no monoteísmo trinitário — há apenas Um Deus e Jesus Cristo é o único Senhor e Salvador. Um dos movimentos espontâneos mais elucidativos no período inicial da Igreja é o eremitismo dos desertos, movido por um extremo ascetismo, também motivado pelos combates, intensos e contínuos, contra os demônios.
Christopher Dawson, na sua leitura do declínio da Cristandade, enfatiza o que transcorrera nas antigas últimas fronteiras do Império Romano, a Europa Setentrional, muito tardiamente e pouco profundamente afetada pela civilização latina e cristã da Europa Meridional, que fora tão completamente dominada pelo espectro cristão, ao ponto de praticamente expurgar todos os traços do antigo paganismo, na medida em que tudo quanto existira fora, de maneira bem completa, assimilado por categorias cristãs, sejam eruditas, sejam populares. O Norte não o experimentou nessa medida. O paganismo antigo fora apenas domado, silenciado, desterrado para dentro das florestas escuras, e a aderência à fé cristã veio como uma acomodação relativamente pacífica, sobretudo no período medieval, uma vez que considerável parte do apelo das velhas divindades havia sido dissipado por conta própria (Dumézil), num processo interno de deterioração que, todavia, não solicitou um cristianismo exótico como compensação, mas ingressou num carismatismo telúrico, num espiritualismo mais obscuro, que encontrou canais próprios em vertentes da mística alemã medieval, e pôde expressar sua mais completa ojeriza à pressão estranha de sentimentos latinos para além do Danúbio na Reforma — fundada ainda, é claro, em uma miríade de outros fatores.
… “ecos de Atlântida” invadiram os sonhos e a vida noturna alemã…
Não é sem razão que, mediante o tenebroso agravamento da crise da Cristandade no contexto do Iluminismo, principalmente com o Romantismo Alemão e, do cenário de após a Primeira Grande Guerra, no n4z1sm0, que a Alemanha se apresentou como um dos primeiros e mais potentes canais de eclosão dos aspectos noturnos da Civilização Ocidental, expelindo-os numa terrível torrente de neopaganismo. Por detrás do n4z1sm0 há todo um substrato ocultista, teosófico, germanófilo e indomaníaco que remonta ao Séc. XVIII, catalisando todos os elementos viáveis para recrudescer uma posição anticristã e revolucionária em sentido apenas parcialmente anacrônico — o sentimento não era exatamente o de tão somente recuperar tradições suprimidas, mas o de restabelecer uma Era de Ouro, supostamente associada à supremacia global hiperbórea. O que quer dizer, noutros termos, que “ecos de Atlântida” invadiram os sonhos e a vida noturna alemã, adentrando pelas frestas das portas dos fundos como ventos frios do Norte profundo, fazendo pressão no caldeirão do inconsciente coletivo e vindo à luz em interesses de substituição da antiga e monoteística Unidade Espiritual da Cristandade, ainda parcialmente eficaz, por uma Nova Ordem, que se queria impor, primeiramente, nos termos de sua própria linguagem, enquanto manifestação dos ínferos: por frenesi 0rg1ást1co, místico, sanguinário.
Jung anteviu a tempestade nórdica dos inícios da Segunda Guerra depois do contato com a vida onírica germânica de após a Primeira Guerra. Um desses sonhos ele encontrou numa visão apresentada no livro Reich ohne Raum, de Bruno Goetz, conforme segue:
Desde a época em que foi publicado, considerei esse livro como um prognóstico da atmosfera alemã e jamais o perdi de vista. Ele percebeu a oposição entre o reino da ideias e o reino da vida do deus da tormenta e da meditação secreta, que desapareceu quanto teve seus carvalhos derrubados e reaparece quando o deus dos cristãos se mostra demasiado fraco para salvar a cristandade da matança fraticida. Enquanto o Santo Padre de Roma, destituído de todo poder, lamentava perante Deus a causa do grex segregatus, o velho caçador [Wotan] ria no bosque germânico e selava seu corcel Sleipnir. — Aspectos do Drama Contemporâneo (Wotan — 1936), p. 18
É interessante observar que a prontidão com que Wotan retorna ao seu cavalo veloz, assim que Deus parece enfraquecido, fala do modo de perduração ou de sobrevivência do antigo paganismo no inconsciente alemão. Diferentemente do que se conheceu noutras partes da Europa, os velhos demônios não retornaram disfarçados em termos folclóricos de matiz cristão ou mesmo em abstrações de philosophes, mas vieram com seus rostos descobertos e com solicitações claras. O que significa que não se tratou exatamente da manifestação de um literal oposto dos valores cristãos positivados na vida alemã, mas de um “empurramento” horizontal e de um expurgo de Deus para fora da “fronteira” — não foi necessária, noutros termos, a subversão total do legado cristão, porque o legado cristão não parecia indispensável ou um fardo irremovível, tal como parecera às nações latinas.
Nesse ponto, me remeto ao exemplo judaico. Uma nação fundada e todo articulada na e pela Torá simplesmente não pode dispensar ou expurgar a Lei para fora de si — o movimento não será horizontal, mas deverá ser vertical. A Lei é o alicerce e o fardo dos judeus. Paulo o reconhece bem em Romanos 11, quando argumenta que Israel se conservará endurecida e com a Lei incompletada (sem o Cristo), até o final — a Lei incompleta é uma herança pesadíssima, porque impraticável, e sempre redunda em falha e fracasso, e na quebra da Aliança com Deus. Uma nação que não pode simplesmente prescindir daquilo que a constitui infraestruturalmente, do contrário deixaria de existir, deve encontrar outras vias de libertação de sua sina. Daí a descida verticalizada para o exato oposto daquilo que a Lei é em termos positivos, dilema esse exposto já na véspera da inauguração do estado israelita, no livro de Juízes, capítulo 17, versículo 6: “Naquelas dias não havia rei em Israel; cada qual fazia o que parecia bem aos seus olhos”.
Desde o princípio, a Não-Lei está ocultada sob a Lei. Explico-me com um exemplo objetivo: a maneira que parte substancial dos judeus históricos encontraram para lidar com a severíssima Lei, assumida nos termos de um absoluto, foi, através da mística, chegar ao seu exato oposto, ao ponto de a realização da Lei ser interpretada como a libertação de toda a Lei, ou como o seu próprio negativo. Extremos disso aparecem nas doutrinas heterodoxas de Sabbatai Zevi e Jacob Frank. De certa maneira, a culminação da Cabala e do esoterismo judaico é a elevação dos contrários e a imposição do Vazio e do Irracional. D’algum modo, é assim com todas as hermenêuticas místicas das religiões d’O Livro, porque os xiitas também acabarão em um universalismo religioso e, por conseguinte, em uma espécie de Não-Lei. E é em razão dessa fuga vertical para o fundo e para o inverso lógico daquilo que está positivado que a Israel endurecida se transforma, dentro da História Ocidental, em geratriz de desvios fundamentais na inteligência e na fé das próprias nações cristãs, uma vez que alquimistas e cabalistas judeus estiveram junto de muitas cortes cristãs, iniciando reis e nobres em mistérios ocultos e infundindo, desde cedo, uma espécie de sentimento milenarista e imanentista de unificação global, cristianizado sob a ideia do Império do Espírito Santo. Muitos elementos do universalismo globalista e do liberalismo moral, que é Anomia enquanto inverso lógico de Nomos, são produto dessa influência.
Então o cristianismo, eminentemente transcendental, assume-se como seu oposto dialético, inteiramente imanente…
Dentro do espectro cristão brasileiro vemos esse mesmo movimento vertical, para baixo e para o inverso, em diversas tendências hermenêuticas de matiz ideológico, que têm empesteado a vida e a inteligência das igrejas. Uma vez que supostos teólogos e intelectuais “cristãos”, enfeitiçados por seduções e vaidades profanas, não conseguem simplesmente expurgar o cristianismo para fora das fronteiras, em sentido horizontal, porque precisam, para fins pragmáticos e em resposta a certos escrúpulos, reter o fardo da fé que aparentemente confessam, resta-lhes conservá-la nominalmente, enquanto, desde dentro dela mesma, produzem inversão, fazendo-a ser e significar, através de instrumentais interpretativos e linguísticos ideologicamente motivados, seu exato oposto. Então o cristianismo, eminentemente transcendental, assume-se como seu oposto dialético, inteiramente imanente, e, soteriologicamente exclusivista, se perverte em um universalismo barato; de Mito, vira mera práxis, e o Sagrado é todo destruído pelo Profano e pelo Secular. Assim, da Fé temos a Apostasia, e a Apostasia é assumida como a Fé oficial, formal, acadêmica, de maneira que a Abominação acaba entronizada no Santuário, como se lê no Apocalipse.
Pudessem, esses sofistas e a canalha toda, rejeitariam o cristianismo pública e inequivocamente. Mas não podem, porque são obrigados a fazer alguma coisa com a fé que receberam, porque são zelosos de sua posição pública, ou mesmo porque estão tão adoecidos espiritual e intelectualmente, que nem ao menos percebem que, dizendo-se cristãos, desceram ao contrário interno da Fé, fazendo de si como que anticristos.
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A impressão que dá em muito do que vemos a respeito de fé cristã na internet não difere tanto daquilo que se sente com pais afetivamente ausentes, mas que se mantém oferecendo coisas e atividades porque, sendo os pais, têm que “fazer algo” com aquela criança. Da mesma maneira, como se é cristão sem saber o que fazer com o cristianismo? Na medida em que se ingressa num modo de vida dessacralizado, ou secularizado, a fé professada fica como que sobrando, já que desligou-se de sua função primordial, e, um estorvo, precisa ser reaproveitada de alguma maneira. Daí qualquer objeto ser bom pretexto: presta-se a tudo, menos à única coisa indispensável, e vai sendo colada a tudo quanto o indivíduo já gostaria de pensar e de fazer por si mesmo, independentemente da fé — donde uma roupagenzinha cristã nas maiores aleatoriedades parecer justificar a perduração do status de “crente” e criar a falsa impressão de que os apetites espirituais mais profundos estão sendo supridos e de que a religião está sendo cumprida.
Não é, pois, o “tenho que fazer algo com isso”, tão vinculado que está a uma fé ociosa ou tediosa, que jaz por detrás de parte substancial das teologias diversitárias e das hermenêuticas praxiológicas, militante e ideologicamente motivadas? Porque, nesses meandros, a fé cristã é totalmente dispensável, mas não é dispensada, uma vez que urge dar-lhe algum uso, qualquer que seja.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 24 de Outubro de 2023.