Do Espírito da Profecia

O Mundo não pode piorar antes do Juízo

Natanael Pedro Castoldi
4 min readJul 6, 2023

uma sutileza no espírito profético hebraico que muitas vezes nos passa despercebida. Desde o início da monarquia de Israel, quando o Povo de Deus foi advertido sobre os perigos de desejar se assemelhar às nações vizinhas, tem-se a tensão entre a complexidade da vida política, que pede por suas concessões, e a vontade de Deus. Tendo se enveredado na semelhança dos povos vizinhos, Israel se viu pressionada ao seu modus operandi: para sobreviver, do ponto de vista humano, no cenário do Médio Oriente, deveria quebrar o regime do templo único e, pela aderência palaciana às divindades tutelares da região, tecer alianças políticas e militares estratégicas. No contexto de Acabe, as aproximações com a Síria e com Judá intentavam resistência à expansão da Assíria. Com outros santuários competindo com o Templo — inclusive porque, nesse ponto, Jerusalém estava em Judá — e com um culto sincrético, uma numerosa, rica e potente classe de profetas e sacerdotes pagãos ligada ao Estado garantiria a integridade política e social, além de fortalecer a economia. De um ponto de vista pragmático, toda a ação de Acabe era altamente favorável, e até indispensável, para a perduração de Israel.

Veja bem: é aqui que o Profetismo faz sentido. Se as ações do Estado não parecessem humanamente corretas, se não trouxessem algum nível de paz e de prosperidade, se tudo, em resumo, estivesse no limiar do colapso, a palavra do Profeta seria quase dispensável e, naturalmente, não sofreria o mesmo nível de resistência. A polêmica de sua operação estava justamente na contestação dos caminhos assumidos pelo complexo Templo-Palácio, ocupados com seus próprios negócios e com a sobrevivência nacional, ao custo do abandono do dificílimo, e quase impraticável, caminho escolhido diante de Deus pela congregação do Êxodo. Elias, como os demais profetas, defende o retorno do arcaico, da Aliança, da simplicidade nomádica, assentada no Único Deus e na Sua Revelação. Todavia, voltando-nos aos hábitos médio-orientais da época, esse retorno ameaçava Israel de todas as formas. Mas, eis o ponto: abraçar a Revelação significava confiar no cuidado de Deus, o Senhor dos Povos, o Criador, e depender d’Ele como guardião do Povo Santo.

Considere, aqui, que a maior parte das maldições que recaíram sobre a Israel unificada e sobre Judá e Israel foram, antes de tudo, juízos de Deus pela transgressão da Aliança. Ou seja: fulminações perpetradas pelo Senhor em função da quebra da Sua vontade e, portanto, do Pecado. Dessa perspectiva, a maior parte das desgraças experienciadas por Israel não foram consequência natural de más escolhas políticas, mas da resposta divina ao significado espiritual dessas escolhas. O caminho de Acabe provavelmente teria dado certo, do ponto de vista humano, mas não deu, apesar de sua lógica interna, porque Deus não o permitiu, e a Assíria varreu o Reino do Norte como juízo de Javé. Veja só: sem a interferência de Deus, as coisas seguiriam sua lógica interna e tenderiam a culminar em determinado ponto desejável ao homem, mas Deus quebra a lógica humana, desfaz a obra da criatura e desvia o curso de suas intenções. Ele é quem dá a vitória ao Seu Povo, também Ele, e nenhum outro, tem poder de causar-lhe mal, quando este passa a acreditar em sua própria inteligência e na sua força criatural.

… o Reino do Anticristo realmente será um tempo de excelência técnica e política, de paz e de ampla prosperidade

Se continuarmos nessa lógica quando lermos o Apocalipse, deveremos compreender que o Reino do Anticristo realmente será, sob o olhar dos homens, um tempo de excelência técnica e política, de paz e de ampla prosperidade. Precisa ser assim para que a vereda profética seja nele atualizada. Visto que todos os juízos descritos no Apocalipse são lançados do Céu, do Trono de Deus, não podemos atribui-los ao poder humano — não são eles consequência lógica e natural da ação da criatura. A consequência lógica e natural do que será feito no Reino do Anticristo, à semelhança do reino de Acabe, irá na direção contrária daquela dos juízos, porque o ser humano não tem esse poder sobre a natureza, sobre a Criação, que pertence ao Senhor. Isso significa que o Reino do Anticristo será, em um de seus aspectos, o clímax de toda a engenhosidade humana para a resolução dos problemas da humanidade, mas ignorando que o poder e a suficiência vêm de Deus. As inúmeras moléstias que se abaterão sobre a humanidade serão meios de o Senhor ir frustrando as intenções e as operações do homem incréu, para que ele tenha meios de se arrepender antes da destruição do Mundo e da descida da Nova Jerusalém, que contrastará com Babilônia sob todos os ângulos: a prosperidade, a paz, a glória eterna da Nova Jerusalém emanarão diretamente do Senhor, rodeado de adoradores. Ao fim e ao cabo, apenas n’Ele, o Criador, é que a intenção do homem poderá se perenizar, caso esteja alinhada à mente de Deus.

Talvez aqui caiba bem a doutrina do Milênio, como um contraste direto entre o Reino de Cristo e o da Prostituta, antes da consumação derradeira da Teogonia.

E, como foi nos dias de Noé, assim será também a vinda do Filho do Homem. Porquanto, assim como, nos dias anteriores ao dilúvio, comiam, bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, e não o perceberam, até que veio o dilúvio, e os levou a todos, assim será também a vinda do Filho do Homem. — Mt 24:37–39

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 11 de setembro de 2022.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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