Do Tratamento Literal do Espiritual

Um diagnóstico para nosso tempo

Natanael Pedro Castoldi
7 min readJul 24, 2024

O estudo de um dos casos do Dr. Fierz (Psiquiatria Junguiana) lançou-me luz sobre uma questão que eu já havia encontrado em Eliade: os antigos, conquanto alçassem aos mais elevados patamares do Sagrado simbolismos tais como o do Andrógino, tendiam a ser implacáveis quando do nascimento de bebês hermafroditas — uma aparente contradição que facilmente se resolve quando compreendemos o quão severamente nossos ancestrais consideravam legítima a modalidade de existência no espírito, uma modalidade de “lógica” distinta da profana, e com qual gravidade guarneciam a circunscrição daquelas coisas que só deveriam existir espiritualmente, para que cumprissem funções de ordem transcendental ou espiritual.

O caso, sendo altamente sintético, é o de um jovem que foi de tal maneira arrebatado por uma bela moça, que chegou à psicopatologia, com perda severa de vitalidade e com sobressaltos de angústia e de agitação maníaca quando tentavam dissuadi-lo de sua paixão e quando ele cogitava seriamente ir ao encontro da sua amada. Chegou à internação psiquiátrica, porque seu quadro se agravou em todas as intervenções anteriores, sejam psicoterapêuticas, sejam familiares — os analistas sempre tentavam incentivá-lo ao abandono do empreendimento amoroso, assim como seus familiares, e mesmo quando um psiquiatra tentou incentivá-lo a correr atrás da moça de uma vez por todas, sucumbiu da mesma maneira, e colapsou.

Ocorre que o arrebatamento pela “moça inatingível” correspondia a uma demanda psicológica que se exteriorizou, projetada na figura daquela mulher, e foi literalizada, culminando em uma exaltação extrovertida e em inflação — uma parte de sua “alma” se lançou e se instalou naquela figura de carne e osso, levando-o a recaídas introvertidas e alienantes, como se tivesse “perdido a alma”, em sua própria descrição. É impossível, para que se tenha progresso em um caso assim, uma vez que parte da “alma” está materializada na “moça inatingível”, forçar uma dissuasão no paciente, argumentando com ele sobre a insanidade e a ilegitimidade de sua obsessão, porque ele, nessa circunstância, é absolutamente incapaz de saber e de conseguir viver sem a esperança da conquista. Dr. Fierz, em sua intervenção, inicialmente sustentou a loucura do jovem, mas não fê-lo como ao outro psiquiatra, com um reforço literalista — ele entrou na mente de seu paciente e trabalhou com ele empaticamente, a partir do ínfero. Tal vínculo empático acalmou o jovem, que se permitiu ser convencido de que não era psicologicamente forte, ou maduro o suficiente para suportar um encontro real com aquela moça, submetendo-se, então, à perspectiva de uma jornada interior — uma vez que a exterior não convinha para aquele momento.

O simbolismo de união mística entre irmãos sempre funcionou entre os antigos e nunca deveria ser buscado externa e literalmente…

O processo de interiorização foi acompanhado de evidências crassas de que ele portava uma falha profunda na autoimagem, sobrecarregado de um senso de desvalor e de inferioridade, de cujas raízes se afastava através de uma extroversão defensiva à sua natureza temperamental introvertida, impedindo o contato e o aprofundamento com sua vida emocional. Em certo momento crítico de sua biografia, a necessidade de interiorização e de assimilação da Sombra, da Anima (da vida emocional), despontou na imagem da “donzela”, vindo com a potência de uma manifestação numinosa, divinal. Evidentemente, exteriorizado, assumiu aquele encantamento de forma literal — daí o caminho para seu enlouquecimento. Porque a carga afetiva e psíquica depositada na moça, ao ponto de ela roubar-lhe uma parte da alma, a tornou algo mais do que uma mulher desejável, acessível pelo interesse e pela aproximação erótica — ela virou algo Sagrado, insuportável e intocável. Mais: como contraparte exteriorizada de seu próprio Self, aquela contraparte que demandava interiorização ou conscientização, assumiu as qualidades da “participation mystique” — um ímpeto de fusão entre o sujeito e o objeto (e o que se objetificou foi a Anima). No simbolismo alquímico medieval, sabemos, a Anima aparece mais como Irmã do que como Esposa do homem, na medida em que é sua contraparte interior, a cisão da “totalidade andrógina” primeva — uma exteriorização e uma literalização dessa demanda psíquica seria o mesmo que empreender relação de irmão com irmã. O simbolismo de união mística entre irmãos sempre funcionou entre os antigos, por conseguinte, como um canal de transformação espiritual, interior, e nunca deveria ser buscado externa e literalmente — porque esses mesmos antigos, em todos os lugares, ergueram as mais sólidas barreiras contra qualquer tipo de relação incestuosa. Todavia, essa união mística de qualidade fraterna e com conotação erótica representa uma necessidade humana real, de modo que, não sendo possível de ser realizada exteriormente, “na carne”, deve encontrar satisfação de seu apetite na vereda do espírito.

Estão evidentes, agora, as razões que tornaram a moça da obsessão do rapaz inatingível — todo o constrangimento de um crime contra a natureza e contra o espírito estava implícito em qualquer sugestão de aproximação efetiva. O rapaz ingressou no caminho da cura quando o compreendeu, entendendo que a jornada sugerida pela encarnação extrovertida da Anima era uma jornada de tipo interior — ele precisava entrar em comunhão com uma esfera do Self que estava quase que inteiramente imersa na Sombra e que, por isso, apresentava-se com sua face mais terrível e ameaçadora, inibindo quaisquer tentativas ou inclinações pregressas de tecer contato com aquele “feminino demoníaco”, ou com a vida emocional per se. Pôde, portanto, espiritualizar a imagem daquela moça, assumindo-a como fonte de inspiração de tipo cavalheiresco — uma fonte de vitalidade, não de morte, para que empreendesse as batalhas do porvir. O seu senso de inferioridade, desse momento em diante, foi sendo revertido, porque ele passou a se sentir virilizado.

Pôde, portanto, espiritualizar a imagem daquela moça…

Em sua discussão teórica sobre o caso, o Dr. Fierz apontou um exemplo que muito me chamou a atenção: a capacidade que os gregos tiveram de assimilar o sentido espiritual, ou simbólico, daquela inclinação homoerótica (atente para a etimologia da palavra) universal, em lugar de assumi-la literalmente, viabilizou, entre diversos outros fatores, a formação de uma cultura filosófica exemplar. Com isso não se quer dizer que a satisfação literal desse apetite fosse inexistente — pelo contrário, embora ela não fosse formal e publicamente apreciada. O que se diz aqui é sobre a tônica geral da questão e da riqueza de suas possibilidades de satisfação de tipo vertical, predominante na Hélade e culturalmente fértil.

Quando disse que a inclinação homoerótica é, de certo modo e em potência, universal, não recaí em engano: a compulsão fraterna entre homens, altamente prenhe de apelo, de afeto, de desejo por proximidade, e que aparece tão claramente na comunidade grega em seus meandros militares (que são a base da formação do éthos filosófico), se não for guiada por uma estrutura simbólica complexa e contingente e verter num literalismo, indo do ímpeto mimético pela excelência nas artes militares e retóricas, nas discussões eruditas e no compartilhamento de momentos mediados por objetos e tarefas significativos — o fumo, a bebida, a carne, o esporte, o colecionismo… com todas as suas preparações e liturgias -, para uma esfera mais puramente emocional, de afeto direto e da exteriorização imediata do senso fraterno, rapidamente redundará em conotação sexual. Em termos simbólicos, veremos uma demanda psicológica que estará presente em todos os homens e que responderá às necessidades de uma etapa no desenvolvimento da personalidade, correspondente principalmente ao arquétipo do herói e à fascinação pelas qualidades e virtudes masculinas típica do púbere e necessária de ser mimetizada dos pares para que seja assimilada — sobretudo internamente. Não irá embora jamais, contudo, e se suprirá nos clubes masculinos dos quais Perry Garfinkel tanto fala, herdeiros contemporâneos daqueles primitivos círculos iniciáticos de caçadores e guerreiros.

… [os] apetites atemporais da psique continuam aflorando, mas sem o suporte de um aparato “espiritualizante”…

Sem crer que aqui há ocasião para avaliar adequada e exaustivamente os exemplos supracitados, e nem qualificá-los, tampouco crendo que eles explicam a inteireza dos casos e das questões, acho pertinente assumi-los como casos exemplares de uma característica de nossa cultura pós-moderna, destituída que está de uma sólida herança simbólica, suficientemente contingente e social e institucionalmente sustentada e disponível para conservar a perspectiva espiritual e interior daqueles apetites atemporais da psique — eles continuam aflorando, mas, sem o suporte de um aparato “espiritualizante”, só poderão conhecer a vereda literalista, de tipo horizontal.

É evidente que uma vereda tal tem valor e lugar, e se, nos casos supracitados ela é legítima, caberá à avaliação de cada um — no que concerne à presente análise, tenho a pretensão de apenas oferecer a descrição, pondo meu pensamento pessoal em suspenso. Joyce Werres (Jung e os Desafios Contemporâneos), de todo o modo, asseverará meu ponto na sua descrição de nossa sociedade vigente, que é altamente exteriorizada e que impõe amplíssimo empenho extrovertido de trabalho pessoal para dela se participar efetivamente — há tantas obrigações sociais e burocráticas, que sobra pouquíssimo tempo para o cultivo da vida interior. Nem os produtos da cultura pop e nem os seus consumidores têm demonstrado abertura ao sutil, ao subentendido e ao simbólico, nota-se, e vê-se como isso é assim na qualidade narrativa e estética das obras cinematográficas, por exemplo, e como tem sido há várias décadas nas obras literárias, tal como denunciado por Harold Bloom.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 24 de julho de 2024.

--

--

Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

No responses yet