Do Ethos “Coach”
As deventuras de um desvio espiritual
A nova onda feiticeira que se desdobra no Ocidente, sob pretextos de “desenvolvimento pessoal” e com base, principalmente, no panteísmo de uma versão pasteurizada e delirante de “física quântica”, tem apresentado todas as características do “sagrado selvagem” acusado por Bastide nos movimentos contraculturais da metade final do Séc. XX, com a diferença de que agora vem servir ao massivo imperativo “empreendedor”, “prosperitista” e “eficientológico”.
Quantas queixas me têm chegado de jovens que se sentem esmagados por esta “positividade” teatral, este ludismo fantasioso que se tornou moeda de troca social e afetiva, este imperativo hedonista pelo “bem-estar” e pelo “parecer bem”, pelo “ser inspirador” — para tal, sobejam incontáveis “passos”, “receitas”, cursos… e é demandando um “mindset” todo preparado para nutrir otimismos infantiloides e um tipo de convicção no “sucesso” que chegue às raias da materialização dos desejos — o ridículo da Lei da Atração. O montante de obrigações sociais e de fingimentos, de autoenganos e de farisaicas demonstrações públicas de eficácia tem tornado a vida extremamente ingrata, artificiosa, frustrante em níveis astronômicos, ao ponto de as queixas sobre “viver estar sendo sobremaneira trabalhoso” não poderem mais ser entendidas de todo com aquele olhar de antanho e julgadas como “preguiça” — porque, realmente, ter que viver num tempo tão frenético e tão sobrecarregado de fingimento é extremamente enfadonho, além de venenoso para o espírito. É notável a quantidade de culpa que se obtém da incapacidade de satisfazer ao publicamente desejável, além da culpa mesma pelo senso interior de falsidade e ilegitimidade — a consciência invariavelmente acusa o fingimento. Ademais, a mensagem é sempre de que o fracasso decorre da falta de “fé” e da falha no desenvolvimento do “mindset” adequado — falta de empenho e de dedicação, portanto -, enquanto, do outro lado, se fomenta um fatalismo astrológico paradoxal, que só pode produzir uma síntese esquizofrênica, que sobrepõe aspirações por potência com um inflexível senso de impotência, de predeterminação astral.
… parece ser socialmente relevante gritar mais forte, pular mais alto, marchar mais firmemente, vibrar mais descontroladamente.
Um tal estado de coisas não pode gerar se não desespero e angústia, com o reinvestimento neurótico, quando não psicotizante, no mesmo itinerário, aquele socialmente afirmado e que se tornou moeda corrente na via pública, de “progresso pessoal” — porque a culpa da não obtenção, da não atração para si dos objetos de desejo, deve ser atribuída à insuficiência pessoal, a qual demanda um recrudescimento na busca pelo desenvolvimento dos instrumentos adequados, além da crônica mentira para si mesmo. Daí a coleção de cursos, de leituras, de métodos que os incautos acabam ostentando e a qual apresentam como se fossem troféus e “certificados” de valor pessoal, do autossacrifício dedicado à “nova espiritualidade” pública e, portanto, do patamar “espiritual” em que cada um se encontra. O valor do autossacrifício e da entrega de si fica mais patente nos verdadeiros cultos de massa, de multidão, que assistimos transcorrendo em “ritos coach”, nos quais presenciamos uma verdadeira competição de frenesi — parece ser socialmente relevante, até para agradar ao líder, gritar mais forte, pular mais alto, marchar mais firmemente, vibrar mais descontroladamente. O contágio do grupo torna tudo isso especialmente deprimente de se ver.
Proliferam, ora e em meandros tais, alternativas cúlticas cada vez mais paganizadas, com cerimoniais de tipo orgiástico e militarista, procurando entregar o indivíduo a um estado de excitabilidade altamente primitivo, que os próprios antigos temiam e contra o qual se guarneciam de diversas maneiras. Ao invés de se elevarem, então, os partícipes se põem em condições cada vez mais bestiais e se rebaixam, enquanto engatinham e rastejam pelo chão, enquanto fazem o “haka”, enquanto tremem sob o solo, em transe, ou atravessam brasas ardentes… a um nível animal. Daí a natureza satânica, demoníaca mesmo, desse tipo de culto.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 31 de maio de 2024.