Elias e o Altar Autorizado
O Fogo Divino no Carmelo e no Pentecostes
Há um detalhe que sempre me passara despercebido na leitura de 1 Reis 18, que é o registro do conflito entre Elias, o Profeta de YHWH, e os Quatrocentos e Cinquenta de Baal, acompanhados pelos Quatrocentos de Aserá, os quais eram financiados pela corte do rei Acabe, diretamente da mão da rainha Jazabel. Elias, diferentemente dos profetas pagãos, repara um altar vandalizado que já existia no Carmelo (v. 30) — quanto aos seus rivais, é dito claramente que eles construíram um altar na e para a ocasião (v. 26).
Esse ponto é altamente pertinente, porque nós estamos falando o uso que Elias fez de um antigo altar a YHWH nos Altos do Carmelo, um altar de relevância, porque o Carmelo era reconhecido como Monte Sagrado até pelos egípcios, segundo se vê nos registros do faraó Tutmés III. Ali e na sua cordilheira se fixava a fronteira disputada entre Israel e a Fenícia e o ponto nodal do Carmelo fora escolhido por Salmaneser III para a coleta de tributos do rei Jeú, em 841 a.C. Consolidada a importância da Montanha Sagrada, evidentemente o altar de YHWH erguido ali deveria ser muito antigo e consideravelmente importante, razão pela qual a sua dilapidação deva ter sido obra das perseguições promovidas pela reforma pagã de Jezabel. A opção de Elias pelo Carmelo deve ter relação com o seu conhecimento, enquanto profeta do Norte, da existência daquele altar derruído e da ciência de que o mesmo era de conhecimento de seus algozes — uma provocação mediante a qual não poderiam recuar, confiantes que estavam na superioridade de Baal e no golpe terrível e final que poderiam desferir contra a autoridade de YHWH ao derrotá-Lo em um de Seus santuários. Ainda mais porque o desafio do fogo era compatível com os atributos tradicionais de Baal, divindade atmosférica da tempestade, dos raios e do fogo celeste — foi com fogo que Baal construiu sua casa.
A opção de Elias pelo Carmelo deve ter relação com o seu conhecimento da existência daquele altar derruído…
O fato de os profetas de Baal não terem um altar próprio no Carmelo é notável. Embora os Altos pertencessem também ao culto cananeu, provavelmente as reformas de Jazabel centralizaram a adoração oficial a Baal em templos de pedra, retirando-a da restrição dos cultos populares, ao ar livre, e impondo em Israel o formato cúltico presente nas cidades cananéias pagãs e fenícias — porque os reis de Israel haviam destruído os templos e recorrentemente desmantelado os altares tradicionais que existiram e existiam no território israelita. Essa centralização do culto a Baal e a Aserá é evidenciada pelo fato supracitado de seus profetas, aparentemente a cúria oficial e representativa de todos os sacerdotes de Baal e Aserá presentes no território de Acabe, comerem da mesa da rainha. Por isso, crendo terem matado todos os profetas de YHWH, à exceção de Elias, e entendendo que isso significava a vitória de seu deus contra o Deus do Profeta, fora-lhes intuitivo imaginar que Baal tomara posse de todas as terras e de todos os domínios internos da fronteira de Israel, e, como Jazabel era natural de Tiro, seria também dele a zona fronteiriça do Carmelo.
Distante do Templo de Jerusalém e asfixiado o culto a YHWH em Samaria, com o provável uso daquele santuário para os cultos de Baal e Aserá — por ser o santuário da corte real do Norte -, Elias deveria resgatar a adoração a YHWH desde suas bases mais primitivas. Nos pés do Carmelo, como fizera a congregação do Êxodo aos pés do Sinai, onde erguera o Altar (o culto dos Altos ocorria nos sopés dos Montes, não no topo, porque aquele território era restrito ao Divino), Eliseu resgatou o altar profanado e dessacralizado, o sacralizando pela repetição de uma tradição que remete ao período da Reconquista da Terra, à semelhança do feito em santuários de primeira ordem, como aquele de Gilgal, lócus primevo da coroação dos reis de Israel e onde Josué depositara Doze Pedras, como Doze Pilares representativos das Doze Tribos e dos Doze Filhos de Jacó — todas retiradas do leito do Jordão, pelo qual a Congregação atravessou milagrosamente. A edificação de pilares ou de altares de pedra bruta a YHWH corresponde ao costume patriarcal de Abraão, de Isaque e de Jacó, provavelmente remetendo à forma originária do culto semítico a El, conforme observado na Península Arábica, de onde os semitas vêm.
… era o Senhor que, nesses casos, acendia fogo no holocausto.
Elias, portanto, sacraliza um dos altares autorizados de YHWH, reposicionando ritualmente as Doze Pedras. Isso significa que o próprio Profeta compreendia que não se erguiam aleatoriamente altares ao Senhor e que os altares legítimos se baseavam na autoridade da tradição, remetendo aos pontos nos quais os Patriarcas edificaram os primeiros altares como marcadores de teofanias e de eventos significativos, sobretudo aqueles nos quais Deus se mostrara favorável aos Seus (em algum casos, provavelmente Abraão reformou antigos altares a El [o Monte Moriá deve ter sido um caso assim — há uma tradição que põe ali o altar erguido por Noé]), nisso incluindo os altares erguidos no tempo da Reconquista, como o de Gilgal. Razão pela qual Elias estava confiante na resposta do Senhor ao sacrifício ofertado no culto que ele realizaria — além da confiança obtida profeticamente, segundo os oráculos de Deus e as evidências de Seu cuidado, o Profeta evidencia conhecimento de como YHWH respondia ao culto santo e correto oferecido pelos Patriarcas e por Moisés, resposta que era, ainda, uma validação ou autorização Divina do altar, estabelecendo a sua sacralidade: era o Senhor que, nesses casos, acendia fogo no holocausto.
Os estudos do rabino Yisrael Ariel (O Templo Sagrado de Jerusalém) destacam a descida do fogo desde diante do Eterno na ocasião da dedicação do Seu altar no 1º do Nissan, um ano após o início do Êxodo — conforme Levítico 9:23–24, o fogo que acendeu o altar veio de Deus e consumiu o holocausto, e, conforme o rabino, este mesmo fogo perdurou, sem jamais apagar, até a fundação do Templo de Salomão, quando desceu do Céu um novo fogo no ato da dedicação do altar salomônico. No Monte Moriá, prosseguem os estudos de Ariel, o rei Davi teria reabilitado o autorizado altar no qual Abraão oferecera o cordeiro substitutivo de Isaque, o mesmo altar de Noé — outra ocasião de descida, desde o Trono de Deus, do Fogo Divino, desta vez sobre o holocausto de Davi. Também segundo as tradições rabínicas, o sinal da aprovação de Deus do altar e do holocausto nele disposto aparecia através do fogo — os fogos e fumaças de Caim não subiram aos Céus, enquanto os de Abel subiram.
Quando o Fogo Divino desceu, Deus deu sinal da aprovação tanto do altar quanto do holocausto…
Elias, o arquétipo do profetismo veterotestamentário, que Gunneweg entenderá como tradicionalista, voltado à santidade do culto do Êxodo, sem dúvidas sabia da descida do fogo celeste na dedicação do altar da Congregação do Deserto e de como o Fogo Divino se manteve até o Fogo Novo da dedicação do altar do Templo de Salomão, igualmente Fogo Divino, de maneira que sobejavam razões para aguardar o favor ígneo de Deus no altar autorizado que reformara e sacralizara. Quando o Fogo Divino desceu, Deus deu sinal da aprovação tanto do altar quanto do holocausto, atribuindo legitimidade ao culto de Elias. Os fogos profanos que tomaram forma no altar do templo samaritano foram superados pelo Fogo Divino, que é Fogo Eterno, aceso no altar do Carmelo, e a distância de Israel do Fogo Divino aceso em Jerusalém, de Judá, fora sobrepujada pelo Fogo Profético, o Fogo do Espírito, o qual arrebataria Elias, inflamaria Eliseu e voltaria na voz de trovão de João Batista e no Cristo, incontestável na teofania do Monte Tabor, da qual Elias e Moisés participaram.
Essa constatação é relevante por mais um motivo: aqui fica explícita a relativa independência do profetismo veterotestamentário para com o Templo Salomônico, a qual perdurará no profetismo cristão neotestamentário, na medida em que Deus autoriza um dos Seus altares no ermo, como uma forma de corroboração da preferência dos profetas pela pureza do culto tabernacular e itinerante do Deserto e de sua insistência, com base na santidade daquele culto inaugural, em exortar retificação e santificação no sacerdócio e no oficio sacerdotal da corte de Jerusalém — que deveria ser conforme o espírito da Lei.
O Fogo Divino voltará ao Monte do Templo na grande teofania das Línguas de Fogo…
Outro aspecto de interesse é que o Fogo Divino que recaiu no altar do Carmelo, de intensidade vulcânica, não perdurou eternamente em sentido literal — a intensa chuva que se seguiu o apagou. Fala-se, aqui, sobretudo de um Fogo Espiritual, que é um fogo que jamais apaga. A Presença de Deus, demarcada pela fumaça dos incensos, se retirou do Templo de Jerusalém em função de abominações idólatras e da perversão do culto (Ez 10), antecipando o destino da Cidade nas mãos dos babilônios, destruidores do Templo de Salomão. O primeiro ato dos judeus pós-exílicos em Jerusalém foi a reforma do altar, no qual ofereceram holocaustos sem a dependência da estrutura do Templo, mas aqui não há menção do Fogo Divino. O Fogo Divino voltará ao Monte do Templo na grande teofania das Línguas de Fogo, no dia do Pentecostes — um grande estalido nos ares e um grande vento genesíaco desceu nos cento e vinte de Cristo, sobre os quais se projetou o Fogo Divino, levando-os à ebulição profética. Estabelecidos Nação de Profetas, estavam sendo habilitados para inundar todas as nações da Terra com o Evangelho, dando cumprimento à Promessa Abraâmica. O Fogo Divino do Espírito Santo se instalou neles e nos três mil que se converteram naquele dia, tornando-os santuários ou o templos autorizados por Deus.
Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem. — Jo 4:23
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 31 de julho de 2024.