Elim, El, YHWH El — Elohim

Do desenvolvimento da religião mosaica

Natanael Pedro Castoldi
7 min readJun 15, 2024

Particularmente, acredito na hipótese do monoteísmo primevo — não apenas para os hebreus. No caso dos hebreus, três fontes podem corresponder à tendência primitiva ao monoteísmo (cósmico): a matriz sumeriana, influência cultural caldaica sobre Abraão (todos os deuses eram expressões de uma espécie de Mana, ou fonte universal); a matriz cananita (os baalins eram emanações da substância divina, manifestações de Baal); a matriz propriamente semítica, a qual permeia as duas outras (os elim como expressões ou singularizações de El, ou Elohim). A precedência do Todo é defendida por Cassirer no Linguagem e Mito, porque a impressão divina do Céu antecede a singularização de suas partes, transformadas, então, em divindades menores, todas agrupadas na categoria do Divino, que é Uraniana. O mesmo princípio primitivíssimo é apontado por Kerényi entre os gregos, à semelhança do Mana: Theós, ou Zeus, como o genérico para a manifestação luminescente do Divino — não por outra razão o Olimpo, o Céu, Zeùs Ouránios, se manteve entre eles como a expressão do Divino per se, do qual cada divindade seria um aspecto. O termo Zeus (Diu — Diaus), pois, é desdobrado do indo-europeu Dyeu, acompanhado de Pater para o Deus Pai Dia — Júpiter e o Tyr germânico, de Teiwaz, uma variação de Deywos.

Um evento divino provavelmente será saudado como ‘Ecce deus! Theós!’, no nominativo, mas não invocado no vocativo. — Kerényi, A Religião Antiga

Convém observar que o significado específico de “El” é igualmente elucidativo. Vem da raiz ‘ll, de “ligar” — como Aquele que “constrange”, “obriga” — Ele impele o homem para Si. Ou vem da raiz ‘lh, “ser forte”, ou da raiz ‘ly, com sentido de “aproximar”. El será, então, “aquele ao qual alguém se aproxima para o culto”, ou: “aquele para o qual se caminha, a meta de toda a busca e de todo o esforço do homem” (Martins Terra). Mais: da preposição ‘el, “para”, como o objeto das orações e quem se busca para proteção; da raiz ‘wl, esta com dois sentidos possíveis: “ser forte” e “estar diante” — o mesmo que “chefe”. A definição mais apropriada dentre as disponíveis será aquela que põe El como Aquele que atrai para Si — aqui temos um sentido que O aproxima de Theós e Zeus (nos termos de Kerényi) como o Divino, a Luz Celestial que pode resplandecer numinosamente em qualquer particular sensível, atraindo irresistivelmente o adorador, porque é o Sagrado por excelência.

El se torna sinônimo de Divino, o indicativo da presença ou da qualidade divinal…

Em todos os casos, à exceção de Baal, teremos uma divindade de tipo Uraniano, ligada ao Céu, ao Dia e à Luz, regente cósmica e o Divino propriamente dito — donde referirem-se todas ao mesmo Theós, que, neste momento, está mais para a radiância da natureza e se manifesta em tudo aquilo que apresente características excepcionais, qualidades ímpares, potência singularizante. Theós, Zeus, El… correspondem à matriz do Cosmos e se apresentam em “pontos quentes”, como que qualificando como divino ou numinoso um local, seja um rochedo, uma cascata, uma montanha… daí esses lugares, ou fenômenos análogos em termos de sublimidade, serem qualificados como “Theós” ou nomeados como “El” — Betel é o exemplo mais óbvio. Como se vê, El se torna sinônimo de Divino, o indicativo da presença ou da qualidade divinal — o que quer que apresente essa qualidade, será “_El”, Sua morada ou morada de uma Sua expressão, de um eloá.

Noss e Grangaard falaram dos elim como espíritos habitantes de locações singulares, de teor sacral, quer benévolos, quer malignos, ou de marcos significativos nos itinerários das caravanas nomádicas. Qualquer espaço dos ermos poderia ser habitado por um eloá, ou uma expressão particular de El dentre outras incontáveis. O conjunto dessas expressões, ou a plenitude delas, poderia ser chamado Elohim — a fonte divina de todos os singulares, de todos os elim. Por isso há, também, vários tipos de “El” — El Shadday, ou “El Montanhês”; YHWH El, ou “El Faz Ser” / “El Cria”; El Olam, ou “El Sol Eterno” / “El Oculto”. Cada designação expressa uma das qualidades ou “materializações” de El, segundo os diferentes locais de Sua habitação no ermo.

Pode-se identificar claramente El Shadday com o Monte Moriá, o Monte da Visão, em cujos Altos Ele era cultuado por Melquisedeque. YHWH El está nitidamente ligado ao Monte Horebe, ou Monte do Sol Poente, também chamado Monte Sinai, ou Monte da Lua. Isso significa que todas as qualidades vulcânicas do Sinai eram atribuídas à manifestação de El em sua expressão genesíaca chamada YHWH, ou Faz Ser, e era a YHWH El que cultuavam os midianitas sob o sacerdócio de Jetro. Não surpreenderá, portanto, que El Olam tenha sido ligado na tradição sacerdotal a YHWH El e ao Seu Monte do Sol Poente — El Olam, O Oculto e Sol Eterno, manifestado pelos fogos ínferos do interior da Montanha, tal como presenciado por Moisés na Sarça Ardente no fundo da Fenda, ou da Caverna, o lócus teofanias da ocasião da entrega das Tábuas da Lei e da Visão hierofânica de Elias, quando o profeta ali se refugiou.

El Olam, O Oculto e Sol Eterno, manifestado pelos fogos ínferos do interior da Montanha…

Por conter os Altos cúlticos dos semitas de Midiã, razão pela qual pastoreava na sua proximidade, o Sinai, “casa” de YHWH El, atraiu atenção especial de Moisés. Foi através de YHWH El que Moisés recebeu a comissão de libertar os hebreus do Egito e foi enquanto profeta de YHWH El que ele apareceu a Faraó, uma vez tendo sido eleito por Ele. Não por outro motivo que a Congregação do Deserto fora conduzida, após a Libertação, para o Horebe, junto do qual acampara e firmara uma aliança com Deus. Foi nos pés do Horebe que a reforma mosaica na religião hebreia, que acompanhou a fundação da própria Nação, se efetivou, tendo sido entregues as Tábuas e a Lei, além de todo o esquema arquitetônico do Tabernáculo, vinculado à Visão da Cosmogonia. Ali o Tabernáculo em si fora confeccionado e a partir dali, do Monte Santo, a Congregação marchara carregando o Santuário, o qual passava a conter, na Pedra Angular do Santíssimo, um éctipo do Sinai (“O Senhor está entre eles, o Sinai está no santuário” — Sl 68:17 [Trad. Stein Jr.]). Ethel Nelson (Em Busca da Montanha Sagrada) verá a miniatura Monte Santo no Altar do Santuário.

Uma vez que a reforma mosaica está relacionada à eleição de Moisés por YHWH El, o que será um resgate do culto patriarcal do tempo abraâmico, quando um eloá, ou uma expressão particularizada de El, se revelava ao Patriarca, o elegia e se tornava o Deus tutelar de sua família, assim como seu protetor, a religião dos hebreus dará especial destaque à qualidade mais ativa, mais pessoal, mais próxima de El, dessa vez como o estandarte de toda a Nação. Ainda assim, Moisés pudera reconhecer na teofania de envergadura cósmica do Sinai, quando toda a Montanha tremeu, fendeu, ardeu em chamas, se envolveu em nuvens negras e cheias de relâmpagos e retumbou a Voz do Altíssimo, uma manifestação da plenipotência de El — YHWH El era, então, o próprio Elohim, na medida em que de antemão não era outro se não uma Sua expressão. É como Elohim, pois, que El Se apresenta quando Se anuncia à Nação.

… El é recuperado da condição de “deus otiosus” na qual os cananitas e semitas O haviam colocado…

Teremos, pois, na reforma mosaica o resgate do monoteísmo primevo, na medida em que El é recuperado da condição de “deus otiosus” na qual os cananitas e semitas O haviam colocado — Uraniano, foi sentido como demasiado distante e impessoal, ao ponto de acabar esquecido na economia religiosa, virando apenas um indicativo impreciso de numinosidade. Por meio de Moisés, os hebreus reencontram El na condição anterior ao dos sincretismos pagãos, que chegaram a alçar Baal a um patamar de superioridade com relação a Ele, após retirar-Lhe o posto de Deus Único em favor da constituição de uma corte divina na qual Baal era o primogênito. Sequestrado pela mitologização, ao El cananeu se reservou a mesma sina de Urano, o Céu: castrado pelo campeão dos deuses, perdeu a agência direta sobre a Terra.

Nessa reforma El é revitalizado pela ênfase na Sua expressão enquanto YHWH, e como através de YHWH é o próprio Elohim que se manifesta, também por ela fora possível imunizar a religião mosaica da tendência politeizante ligada à hiperênfase nas expressões individuais de Elohim, a qual havia acabado por tornar os elim pouco mais do que meros espíritos poderosos autônomos. O empreendimento abraâmico já havia sido uma reversão desse quadro em favor da recuperação do culto de seus ancestrais a El, na medida em que o patriarca revisitou, sob a tutela de El Shadday, os antigos Altos de El e estabeleceu novos, segundo o regime de Sua manifestação patriarcal. Ali já vemos, da rejeição aos terafins, a supressão de toda a sedução baalista em favor de El, O Chefe. Ademais, com Moisés e a recuperação da religião patriarcal através de YHWH El, houve um desenvolvimento teológico do primevo monoteísmo cósmico, ou cosmoteísmo ligado a El enquanto Pai Dia no sentido daquela potência genesíaca análoga ao Mana, a Theós ou Zeus — Ele é reafirmado como Deus Criador, mas agora em sentido Pessoal (Gn 2), embora tenha conservado a dimensão Totalmente Outra do Todo Poderoso (Gn 1).

Porque eu, o Senhor [Yahweh], teu Deus [Elohim], sou Deus [El] zeloso. — Dt 5:9

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 15 de junho de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em antropologia e crítica literária. Casado com Gabrielle Castoldi.