Escatologia como Condensação, não Expansão

A Igreja como Lugar Ontológico

Natanael Pedro Castoldi
7 min readJun 1, 2023

A mentalidade escatológica não trabalha com com uma perspectiva dualizante mais do que de um lócus dialético. Quando o apóstolo Paulo orienta aos cristãos de Corinto (1 Co 7:24) que fiquem, cada qual, dentro da vocação da ocasião de seu chamamento, dizendo-o no contexto do Tempo Escatológico, que é o Tempo que Resta (7:29), está traduzindo a tônica escatológica.

Diante do Eschaton, todo o mais é, efêmero e particular, pura nulidade — o Absoluto, a Verdade expressa no Corpo Glorioso de Cristo, torna toda a obra humana “trapo de imundícia”. A ideia de vocação aqui expressa, klesis, funciona se autonegando: o servo é livre (em Cristo), o livre é escravo (de Cristo) — isso significa que, do ponto de vista da Verdade, ser servo e livre são uma e mesma coisa, e o mesmo que nada. Daí o famoso “como não”, hos me: o que chora, chore um não-choro; o que folga, folgue um não-descanso; o que compra para si, compre como não para si. Nada, desde a perspectiva do Eterno, é substancialmente importante.

A vocação messiânica é a revogação de toda vocação. … Não se trata, naturalmente, de substituir uma vocação menor autêntica por uma mais verdadeira: em nome do que se decidiria por uma de preferência à outra? Não, a vocação chama a própria vocação, é como uma urgência que a trabalha e escava do interior, nulifica-a no próprio gesto no qual se mantém nela, habita nela. Isso — e nada menos que isso — significa ter uma vocação, viver na klesis messiânica. — G. Agamben, O Tempo que Resta, p. 37

Eis o que é a klesis messiânica: a vocação suspensa. Não falamos em termos de opostos polares: que o choroso se alegre, que o alegre se torne choroso. Falamos do choro em suspenso, da alegria em suspenso — o que é um choro não-choro? Certamente não é “alegria”, mas a negatividade lógica do choro mesmo. A vocação escatológica é o permanecimento no choro em si mesmo, ou na alegria em si mesma, na folga em si mesma, ou no ofício em si mesmo, autocontidos em seus próprios termos e aprofundados dentro de seus próprios limites, até serem percebidos e sentidos visceralmente, e serem notados como a nulidade que são. O choro não-choro é aquele que se permite ser, nada mais e nada menos — chora-se por chorar, mas é um choro autocontido, que não lança raízes desesperadas em frustrações de expectativas e de fracassos em projetos, em vilanias alheias, em injustiças contra si. O choro não-choro é o choro que não decorre da perda da alegria, porque não é o seu contrário, e, portanto, não é consequência de uma perda noutro lugar, uma oscilação entre opostos que se situam no mesmo nível ontológico de horizontalidade. O choro não-choro não é a fuga da alegria, mas o inverso do choro mesmo — a descoberta de que não há razão substancial, no mundo da efemeridade e da decadência, que em breve terminará e que nada é diante do Eschaton, para chorar e lamentar. Similarmente, a alegria não-alegre é aquela que não decorre apenas da superação do choro e de seus motivos, como um mero alívio ou evitação do sofrimento — que tem relação, pois, com a obtenção de um bem desejável -, mas a alegria que sobe ao seu próprio contrário interno, dialético: indo fundo em si mesma, chega à própria nulidade, porque aquele que não deposita todas as esperanças neste mundo e na evitação do sofrimento não vê nas coisas boas que acontecem mais do que elas de fato são — efemeridades. Ele se alegrará, e se alegrará muito, e permanecerá na alegria até visionar a sombra da não-alegria, o seu negativo, radicada na insubstância das coisas que hão nesses tempos do Fim. Na mesma medida em que não há diferença substancial em estar choroso ou alegre, não é certo e nem errado chorar ou alegrar-se, e chorar um não-choro, e alegrar-se numa não-alegria, é permanecer no momento do choro e da alegria em si mesmos, sem pender para os lados — é alegrar-se sem esquecer que isso não é nada. Que libertador!

A mentalidade escatológica, na realidade, é uma condensação num mesmo ponto

Isso nos faz ver a mentalidade escatológica, conforme antecipado, como não radicada num dualismo de opostos fundados no nível da horizontalidade, na mesma camada ontológica. A mentalidade escatológica não está restrita a uma oposição Interno x Externo (Crente x Mundo / Igreja x Anticristo), que funciona na tensão entre pares opositores equivalentes. Se assim fosse, tudo se resumiria a um jogo logístico de multidões e de forças, para ver qual lado pesaria mais, quantos saltariam de uma margem para outra do rio. A mentalidade escatológica, na realidade, é uma condensação num mesmo ponto, a geração de uma pressão tão potente num único lugar, ao ponto da ruptura da trama horizontal e do aprofundamento vertical, para o limite de si mesmo. É uma crise interna, que visa uma mudança de status ontológico.

O cristão é chamado, veja só, para permanecer no mesmo lugar (no sentido de klesis, ou vocação), e a intensificar a presença nesse lugar. O servo não-servo é aquele que fechou para si as portas da libertação jurídica, e não a buscará (embora aceitará essa bênção, se lhe for concedida). O servo não-servo, que é livre em Cristo, continuará no mesmo lugar do ponto de vista da horizontalidade, e terá que lidar com isso dentro de si mesmo. Não podendo simplesmente fugir para outra margem na hora da crise, para evitar o sofrimento, ele está constrangido a permanecer no mesmo lugar e é impelido a seguir por um único caminho: mais para dentro de si e de suas questões — ele simplesmente não pode ignorar sua condição, não pode ignorar seu sofrimento, não pode ignorar suas demandas, e, ao mesmo tempo, não pode saná-las magicamente, por meio de uma fuga exterior. Ele vai descendo ao fundo de si mesmo, até se sentir convencido de que é na realidade livre, porque a condição de servidão humana é nada do ponto de vista da Eternidade, e lá na profundeza de suas angústias existenciais, encontrar-se-á com o Salvador, com o Senhor Jesus, e verá o inverso da servidão — assim, ele continuará servindo, mas como não-servo, porque o faz desde uma potente raiz de vontade, que é o Cristo em seu coração, e porque sabe que a servidão exterior é nada, já que viu-a desde sua total nulidade. Isso quer dizer que o servo não-servo foi transformado substancialmente, e seu status ontológico, mudado por Cristo, assumido em sua consciência vígil — isso, todavia, só foi possível porque não pôde fugir para a outra margem.

Continue o injusto fazendo injustiça, continue o imundo ainda sendo imundo; o justo continue na prática da justiça, e o santo continue a santificar-se. — Ap 22:11

É aproximadamente essa a imagem que Leo Strauss apresenta para descrever o sentido da escatologia judaica, herdada pelos cristãos primitivos: não é tanto uma horizontalidade Igreja x Mundo / Crente x Ímpio, mas uma sobreposição vertical, porque o Eschaton, a Verdade, o Reino, se deita sobre o Mundo Perecível e começa a pressioná-lo sobre si mesmo e contra os seus próprios pilares, expondo-o às próprias contradições e à nulidade de todos os seus empreendimentos e de todas as suas aspirações. A Igreja e sua klesis devem ser vistos dessa maneira: a Igreja é a ponta de lança da Nova Criação, que pressiona contra a superfície do Pó, se adensando cada vez mais, porque sempre mais investida em si mesma e na obstinada insistência no Evangelho, ao ponto de fender a superfície da Terra e fazê-la, a Terra, encarar as próprias vísceras, seus abismos tenebrosos e o Vazio sobre o qual está suspensa e diante do qual é Nada. E isso a Igreja realiza se saturando, se espessando, se impregnando de si mesma, sem se perder em fugas do tipo Dentro x Fora, que dariam em respostas e compensações fáceis para suas angústias e seus sofrimentos. Sem ter como fugir de si para fora, só lhe sobra o caminho vertical: mais para dentro e mais para o fundo. E ali, recolhendo e comprimindo suas contradições, sem poder escapar para uma ou outra das partes, vai se matando e vai revivendo a morte e a vida de Cristo, enquanto aguarda a Sua Volta.

É assim, sobretudo assim, que a Igreja impacta o Mundo. É assim que é tomada por Pedra de Escândalo, porque escandaliza os titânicos e seus ímpios projetos, e é assim que, pela sua própria presença, sempre mais intensificada, obriga os homens a encararem suas vilanias e venalidades, não lhes dando opção de fugirem de si e do Mundo e de suas questões e de suas angústias para outro lugar, que não o lugar do amargo arrependimento e da liberdade, que sucede à fixação do olhar e à descida nos infernos seus e na Sombra sua.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 31 de maio de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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