Falta apenas ensino à Igreja? Não. Falta Poder!

Uma resposta à polêmica ao redor da “miss língua bífida”

Natanael Pedro Castoldi
9 min readAug 7, 2024

Tenho evitado o tanto quanto possível a participação no polemismo ~gospel. Todavia, há dois pontos observáveis no e após o pronunciamento da “miss língua bífida” sobre seu interesse em fundar uma igreja própria. O primeiro é a impressão que causa, depois de toda a degeneração que se seguiu à sua saída de uma certa denominação, a demonstração de seu conhecimento doutrinário; o segundo é o “beco sem saída” em que aparentaram ficar muitos dos ~teologuinhos~, na medida em que a afirmativa doutrinária parece correta — a implicação é de que toda a degeneração presentemente praticada vale o mesmo que nada em face da Graça. Há um ardil aqui, uma armadilha a qual o apóstolo Paulo combatera já na Igreja Primitiva, e que merece ser exposto, porque expõe uma brecha crescente na ética evangélica, decorrente de uma perspectiva soteriológica que tem apenas “aparência de piedade”. Fica patente, pois, que Satanás sabe teologia e que também é capaz de ensiná-la. O problema, parece, não é exatamente a falta de ensino — tanto de quem disse, quanto de quem foi impelido a aderir ao que foi dito -, mas uma falta que está noutro lugar.

… Satanás sabe teologia e é capaz de ensiná-la.

O supracitado ardil parasita um espírito farisaístico que era velho conhecido de Cristo e que jaz incipiente na tendência excessivamente sistematizadora e teologizante dos conteúdos da Fé, a qual desloca os seus proponentes da estrutura da realidade em direção a um território de abstrações cada vez mais sofisticadas — eis as famosas “discussões bizantinas” sobre a quantidade de anjos que cabem na cabeça de um alfinete, por exemplo, enquanto Constantinopla jazia sitiada pelos islamitas. O sistematismo teológico tem valor, é claro, mas nós sabemos que todo o sistema pressupõe um método e parte de posições axiomáticas, que são proposições a partir das quais todo o resto se desdobra, com a tendência de se evitar pontos contraditórios — a depender do método e do pressuposto, praticamente qualquer sistematização teológica pode ser produzida, e mesmo que sua forma lembre algo de enciclopédico, o “conjunto da obra” propõe um cabedal doutrinário de fundo que não será imparcial de maneira alguma. Com isso não quero dizer que a “miss língua bífica” tenha formação sistemática, mas que a captura de sua fala por mentes “sistematizadas” foi encarada de uma maneira que não permitiu outra coisa que não a concordância — uma concordância que implica, ao fim e ao cabo, o imperativo do reconhecimento da menor importância da vida ímpia levada por ela.

… a captura de sua fala por mentes “sistematizadas” foi encarada de uma maneira que não permitiu outra coisa que não a concordância…

Em vista do já discorrido e considerando a afirmação de que não parece faltar ensino, o que, pois, parece estar em falta? Falta Poder, falta o Espírito (1 Co 1:17–18). Esse aspecto carismático da Fé, não é novidade para ninguém, é sempre subestimado e negligenciado em todo o sistematismo teológico de larga influência — isto é assim, pois as igrejas históricas precisam se valer, para a sua estruturação pública, de confissões bastante sólidas, que priorizem a vida coletiva e congregacional em lugar da abertura profética à liberdade espiritual do indivíduo. Todos nós devemos reconhecer o risco que é para um corpo congregacional a anarquia carismática — é contra a desordem disso decorrente que o apóstolo Paulo se coloca em sua Primeira Epístola dos Coríntios. Todavia, a solução paulina não está na extinção das manifestações carismáticas, mas na sua inclusão ordenada dentro da estrutura do culto cristão, que terá espaço para a manifestação dos dons espirituais, os quais vão da palavra profética até a imposição de mãos em vista da cura dos enfermos. Ademais, um princípio cristão basilar, instituído já por Jesus Cristo, é o da busca pessoal e solitária por Deus no âmbito da intimidade doméstica. O espectro místico da devoção pessoal e do carisma espiritual, ou da medida de Poder dispensada pelo Espírito Santo a cada um, tem valor na Igreja ao ponto de ter sido protegido institucionalmente — uma proteção que impede a sua aniquilação pelo peso institucional, mas que protege a instituição do perigo representado pela sua desproporção. Principalmente porque o culto comum tem sempre em vista a edificação do Corpo.

Para isso é que foram estabelecidos critérios apostólicos para que as manifestações carismáticas tenham a sua procedência espiritual testada — que o oráculo seja avaliado segundo o seu cumprimento, que a fala de “línguas estranhas” tenha interpretação imediata, que não desordene o culto, que sejam vistos os frutos… A respeito da postura implacável dos apóstolos quando da evidência da fraude, peguem-se os caso exemplares de Ananias e Safira (embora não tenha matiz carismático [exceto na morte instantânea decorrente de seu atentado contra o Corpo]) e de Simão, o Mago, que pede aos apóstolos algo que não soa mal — de que eles lhe dessem Poder para que ele pudesse infundir o Espírito Santo nas multidões através da imposição de mãos. Os apóstolos conheciam os seus antecedentes, por isso Pedro pôde repreendê-lo, discernindo por detrás de seu apelo o interesse oculto (o “pensamento do seu coração”) de fazer dinheiro com o dom que procurava, e foi com base no conhecimento dos antecedentes e no discernimento da motivação que Pedro o exortou ao arrependimento (At 8:18–24).

… por isso Pedro pôde repreendê-lo, discernindo por detrás de seu apelo o interesse oculto..

Um terceiro caso, que me parece o mais emblemático (At 16:16–18), é o da mulher possessa por um espírito de adivinhação, e sobre quem o evangelista Lucas e o apóstolo Paulo haviam tomado conhecimento — ela trabalhava para outros, gerando-lhes lucro por meio de suas adivinhações. O fato é que ela passou a segui-los, bradando uma grande verdade: “Estes homens, que nos anunciam o caminho da salvação, são servos do Deus Altíssimo.” Como um demônio poderia falar a verdade a respeito dos apóstolos e do Evangelho? E como Paulo soube que era um demônio quem falava por meio dela? Que era um demônio, ele poderia sabê-lo por dois motivos: ela ainda não havia sido tocada pelos apóstolos, nos termos de conversão e de infusão do Espírito Santo, donde o seu uso como vidente, previamente conhecimento por Paulo, só podia significar que seu discurso era demoníaco. Mas como o discurso seria demoníaco, se falava a verdade? O Diabo conhece o Evangelho e reconhece os seguidores de Cristo (At 19:13–16) e poderá, travestido de “anjo de luz”, pronunciar partes da Palavra com finalidades de escândalo público, afastando muitos da Fé ou instigando doutrinas desviantes (“doutrinas de demônios” — 1 Tm 4:1), que não impliquem em arrependimento e em mudança de vida, conservando os “crentes” distantes da Graça, e para a dissuasão e esmorecimento dos crentes individualmente, enchendo-lhes de dúvidas e inseguranças. Foi isso que Satanás pretendeu com o uso da Escritura contra Cristo, no Deserto (Mt 4:1–11), e foi aquilo que Satanás intentou ao perturbar o e atrair excessiva atenção ao ministério paulino, colando-o, ainda por cima, a trambiqueiros notórios.

Como observado, palavras aparentemente corretas e verdadeiras sobre o Evangelho podem ser ditas pelo próprio demônio e magos, videntes e fraudadores podem demonstrar evidências de entendimento, ainda que parcial, da Verdade. Como dito, a questão não se reduz ao ensino, que é insuficiente quando da falta do Poder. A habitação carismática do Espírito Santo na congregação e no cristão se reconhece através da ministração de dons espirituais, além da proclamação pública do verdadeiro Evangelho, sustentado ousadamente em sua plenitude. Dentre esses dons espirituais, há o discernimento de espíritos, o qual vimos em atuação em todos os casos exemplares do livro de Atos, principalmente no combate de Pedro ao Mago, porque o apóstolo pôde ver o “pensamento do seu coração”. Esse discernimento não prescinde da consideração do histórico da figura que queira destacar-se dentro de determinada igreja ou que esteja pretendendo adentrar nos lares dos cristãos — se há motivo para desconfiar de intenções carnais na busca pelo Poder e por exposição através do Evangelho e se não houver evidências de arrependimento, de desligamento de velhos hábitos vis, e nem de submissão a um cuidado pastoral, então é recomendável aos líderes da congregação que impeçam o seu empreendimento. Naturalmente, isso implica num zelo pela congregação que desconfia de presenças carismáticas e que queiram se destacar, mas cuja procedência e cujo histórico não estejam devidamente esclarecidos.

… qualquer pessoa com um mínimo de discernimento espiritual sabe quem está falando por meio dela…

Quanto à “miss língua bífida”, não importa o que ela disse, o quão verdadeiras possam ser suas palavras sobre Salvação e Graça, pois qualquer pessoa com um mínimo de discernimento espiritual sabe quem está falando por meio dela, e simplesmente com base no seu histórico recente, que não traz nenhuma evidência de arrependimento, e pelas potenciais implicações escandalosas e desviantes de seu discurso. Isso se o discurso em si fosse de todo verdadeiro, porque sequer o é — Satanás não costuma apresentar o Evangelho inteiro. Na sua formulação sobre a Graça Irresistível e Irremovível de Deus através de Cristo, a “miss bífida” nada disse de arrependimento, que vimos ter sido o apelo que Pedro fez ao Mago. A confissão dos pecados e o arrependimento dos caminhos ímpios, indicativos da aderência à purificação pelo Santo Sangue de Cristo e como sinal de uma disposição profunda de conversão a um novo modo de vida, são pressupostos para a eficácia da Graça no coração do crente. Em nada, no discurso e na prática da “bífida”, percebemos isso.

Talvez em um primeiro momento, quando houve a busca por Cristo anos atrás, ela de fato tenha se arrependido e tentado ingressar numa vereda diversa daquela de seu passado — curiosamente até procurando por outros nichos de negócio, dentre os quais um salão de beleza que ela abriu aqui na cidade vizinha da minha. Nesse caso, foi mesmo como o Ladrão da Cruz, que confessou publicamente a Jesus nos últimos momentos e pôde ser salvo, não importando, em vista da eficácia da Graça, nada daquilo que fizera no passado. A diferença entre ela e o Ladrão da Cruz, é que aquela acabou retornando ao “próprio vômito” (1 Pe 2:22), recaindo da Graça pelo regresso a um sistema de vida pautado na prática deliberada do pecado (Hb 10:26), anulando com isso os efeitos da Cruz e do Sacrifício de Cristo em sua própria vida (Hb 6:4–6). De fato, em seu discurso ela propõe um sistema de crença que valida a libertinagem e a degeneração, ao invés de constranger à santificação — toda a vida que se vale da prática deliberada do pecado, ou seja, que é baseada na impiedade, acabará se sustentando em um tipo de doutrina. A dela será a da licenciosidade decorrente de um entendimento conveniente dos efeitos da Graça Salvífica, não porque ela não reconhece que é pecadora, mas justamente por reconhecê-lo e por pretender não parar de pecar.

… toda a vida que se vale da prática deliberada do pecado acabará se sustentando em um tipo de doutrina.

Num caso tal, temos a aplicação direta da Segunda Tentação de Cristo no Deserto, quando Satanás O desafia a testar os limites do favor divino com base em um trecho do Antigo Testamento — porque Deus prometera enviar os Seus anjos para guardarem Seus servos de “cair”. Cristo Jesus, todavia, repreende a Satanás também com a Escritura, declarando que o Senhor não Se permite ser tentado pelos homens. De certa maneira, a opção por uma vida que é quase por inteiro guiada pela prática daquilo que é abominável a Deus, principalmente quando toma por base a justificativa bíblica da Graça infinita do Senhor, é uma espécie de tentação, pois ali o crente está testando os limites do favor divino, querendo garantir a si mesmo que poderá ir aos extremos da maldade porque Deus é “obrigado” a conservá-Lo n’Ele. As palavras de Cristo contra Satanás contestam frontalmente esse sofisma. O qual também o apóstolo Paulo combate em Romanos 6:1–4, indicando que já havia, dentre os cristãos mais antigos, esse tipo de doutrina demoníaca:

Que diremos pois? Permaneceremos no pecado, para que a graça abunde? De modo nenhum. Nós, que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda nele?
Ou não sabeis que todos quantos fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte? De sorte que fomos sepultados com ele pelo batismo na morte; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos, pela glória do Pai, assim andemos nós também em novidade de vida.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 7 de agosto de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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