Gnosiologia Cristã Primitiva

Iluminação espiritual e iniciação nos mistérios de Deus

Natanael Pedro Castoldi
5 min readMay 28, 2024

Está implícito no texto paulino de 1 Coríntios 2 o itinerário iniciático, por assim dizer, da instrução cristã. No versículo 6, quando o apóstolo declara, em contraste com a pífia sabedoria dos homens, a Sabedoria de Deus estar sendo falada entre os “perfeitos”, utiliza “teleiois”, que é termo técnico empregado pelos filósofos e sábios gentios para os que haviam completado a iniciação nos Mistérios — os “perfeitos” eram os maduros, ou poderosos, que haviam alçado avançados estágios na Sabedoria, todavia não aquela dos dominadores e poderosos da “Era”, porque a “sabedoria” do éthos mundano mostra-se vil em seus frutos.

A Sabedoria a qual Paulo se refere é aquela existente antes do Mundo (não produto dos hábitos mundanos), e é a própria Arquiteta da Criação. A Sabedoria, Logos de Deus, conquanto tenha dado os fundamentos e as finalidades da Criação, não revelou-os (os fundamentos e as finalidades) aos homens, ocultada por Deus, senão apenas aos homens do Tempo Escatológico — desde antes da fundação do Mundo, o ocultamento da Sabedoria teve por fronteira a era da Igreja, e revelou-se, tornando conhecidos os mistérios de Deus, aos cristãos que viram-na transfigurada no Cristo, o Eschatos, no Monte Santo e na Ressurreição, e puderam discerni-la sob inspiração do Espírito Santo. É no Cristo, o Logos Divino e a Sabedoria, que os fundamentos e as finalidades de todas as coisas estão dadas, e o conhecimento de Cristo, o discernimento de Sua Glória, do Sangue Santo, conhecido desde antes do Princípio e pelo qual tudo o que foi feito de fez, e de Sua Morte e Ressurreição como abertura do Tempo da Paróquia e gérmen da Nova Criação. Um conhecimento tal não poderia ter sido apreendido por meios naturais e pelos dominadores do Mundo, porque, argumenta Paulo em possível referência ao Apocalipse de Elias, nada do que o homem pôde ver, nem ouvir, sequer conceber, se aproxima daquilo que, posto desde antes do Princípio, aguarda os que amam a Deus — essa Sabedoria só o próprio Deus conhece, não é mundana e nem natural (anímica). E quando é dito que essa Sabedoria não “penetrou em coração [kardian] humano”, por coração se quer falar “sede da vontade”, porque o homem aqui é visto como todo articulado a partir de sua intencionalidade, de suas inclinações, transparentes nas emoções, nos pensamentos e nos afetos, e o homem natural (psíquico ou anímico) só é compatível com a “anima” do Mundo, de maneira que só pode intencionar o que pode conhecer — o natural só conhece o natural.

… “os perfeitos”, ou iniciados nos mistérios de Deus, entendem os pensamentos (preceitos e intenções) de Deus.

Dessa forma, os perfeitos, aqueles que, pela Sabedoria, estão a conhecer os mistérios de Deus em Cristo, não podem mais ser homens naturais, ou psíquicos, do contrário só conheceriam o que é natural. Eles são homens espirituais, e aquilo que de Deus conhecem, o conhecem por instrução do próprio Espírito de Deus. Veja bem: quando Paulo diz que o Senhor revelou-nos “tudo isso” pelo Espírito antes de dizer que o Espírito sonda todas as coisas e conhece as profundezas de Deus, está afirmando que nós, no Espírito, conhecemos Deus em Sua profundeza. Noutros termos: o Espírito sonda (examina) tudo ativamente, sonda a intimidade do Criador, que é a Sua essência, Seus atributos e, sobretudo, Sua vontade e Seus planos. Uma vez que apenas o espírito humano conhece as coisas do ser humano (memórias, reflexões, motivos, toda a espécie de pensamento e intenção), somente o Espírito de Deus conhece as coisas de Deus (como supracitado), e se nós conhecemos as coisas de Deus, é porque as temos recebido por revelação da parte do Espírito Santo. Tivéssemos recebido o “espírito [princípio] do Mundo”, não poderíamos saber de Deus. Mais corretamente: o coração do homem só intenciona e deseja o que conhece (as coisas naturais do homem natural, segundo a “anima” do Mundo), e se podemos intencionar e desejar aquilo que é de Deus, não somos mais homens naturais, mas espirituais. O que significa, conforme o versículo 13, que as “coisas espirituais” (pensamentos, preceitos, intenções de Deus reveladas pelo Espírito) são discernidas apenas pelo que é espiritual. Vide uma tradução proposta no Comentário F.F.Bruce: “… interpretando verdades espirituais para os que são espirituais”. Isso está em pleno acordo com a Chave Linguística do NT Grego (Vida Nova, 1988), que lê “pessoas espirituais” — o que quer dizer: “os perfeitos”, ou iniciados nos mistérios de Deus, entendem os pensamentos (preceitos e intenções) de Deus.

O perfeito pode discernir “as coisas” do Espírito, porque discerne espiritualmente…

Isso implica que os homens naturais, que vivem segundo o princípio do Mundo (Kosmos), não podem interpretar “as coisas” do Espírito Santo, que são todas as coisas e a profundeza de Deus, porque não podem vê-las espiritualmente, senão apenas psiquicamente, segundo “as coisas do ser humano” — daí assumi-las como loucura. Por seu turno, o homem espiritual, pneumático, tem a mente de Cristo, uma vez habitado pelo Espírito Santo, e recebe do Espírito Santo, via revelação ou iluminação, o conhecimento daquilo que o Espírito conhece: todas as coisas e a profundeza de Deus. O perfeito pode discernir “as coisas” do Espírito, porque discerne (anakrinetai — examina) espiritualmente, por isso pode julgar (anakrinei — examinar e discernir) todas “as coisas”. Por “julgar todas as coisas”, entenda-se: a partir da Sabedoria e do conhecimento dos mistérios de Deus em Cristo, o perfeito vê, do Intelecto (Nous), a natureza íntima, em termos de causa e finalidade, de tudo quanto há, porque tudo encontra bem encaixado na estrutura da Realidade, convergindo cosmogônica e escatologicamente, e por isso tudo apreenderá em termos simbólicos, donde a vereda essencialmente mística da vida cristã. Dotado da mente (Nous — Intelecto) de Cristo, conhece a régua e a balança pelas quais todas as coisas são medidas e pesadas, porque, de certa maneira, vê o que Cristo vê — donde o homem espiritual não poder ser julgado (examinado e conhecido) pelo homem natural, nem pelas coisas naturais. Obviamente, conclui-se, o homem espiritual também não pode ser instruído pelo homem natural, que é incapaz de o compreender e que não pode falar daquilo que não conhece.

A Chave Linguística entende o “Nous” do Senhor, do versículo 16, como pensamento e plano, o que nos faria compreendê-lo como a intenção ou o propósito de Deus, que inunda o “Nous” do perfeito, dando-o seu legítimo objeto, o Eschatos, pelo qual são retificados os seus pensamentos, planos e conhecimentos segundo os pensamentos, os planos e os conhecimentos de Cristo, e assim como o perfeito julga e instrui o natural e as coisas particulares, aos quais domina por sua superioridade intelectual (espiritual), ninguém pode instruir ao Senhor, que a todos domina em função de Seus atributos. É Ele, não instruído por ninguém, quem instrui os perfeitos, aos quais dá a mente de Cristo via Espírito Santo.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 18 de setembro de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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