Heroísmo e Saúde Mental

como o contato com a grandeza revigora a mente

Natanael Pedro Castoldi
8 min readApr 9, 2021
Apollo, Charles Meynier

É amplamente conhecido o fenômeno do alastramento do Mal, que pode ser chamado de efeito ponerológico, ou de empatia anárquica. A violência, as catástrofes ou a influência moral de pessoas cruéis gera amplas repercussões negativas na psique dos envolvidos e tende ao contágio, como René Girard (DE GODOY, 2012) descreve em seu conceito para a mímesis má. Contudo, da mesma maneira que eventos e circunstâncias atrozes podem oprimir e desmantelar a vida interna daqueles que submetem-se à desumanidade, atos heroicos e ambientes permeados pela grandeza humana também alteram a coloração interior de seus espectadores ou beneficiados. Eis a girardiana mímesis boa, ou mímesis da vida.

Jonathan Haidt (2020), psicólogo norte-americano, identificou a peculiar emoção que emerge do contato com pessoas que fazem coisas boas, belas e virtuosas. Essa emoção é singular, pois ativa-se na raras ocasiões em que o seu objeto legítimo é revelado: tirados de nós mesmos, somos absorvidos pela Beleza, ou melhor, pela Grandeza, e abstraídos da vida comum e das preocupações corriqueiras. Haidt chamou o conjunto das emoções despertadas desse modo de “emoções glorificadoras do outro”, dentre as quais temos a emoção de “elevação”. A elevação pode ser definida como um sentimento nobre e cálido que fervilha em nossos corações quando contemplamos súbitos atos benevolentes e compassivos. Em geral, a elevação acontece na ocasião do testemunho de um ato de amor e caridade entre duas pessoas. Quando elevados pelo amor, temos instigados em nós, por um tipo de contágio salutar, sentimentos cordiais, afetuosidade e anseio por ajudar a outrem. A participação em algo grande e louvável gera algo como um compromisso com as pessoas envolvidas no ato contemplado, compromisso esse que impele a uma segunda ação, dessa vez do observador para com uma quarta pessoa. Em termos mais precisos:

[…] a percepção de um comportamento dedicado e corajoso provoca no peito uma sensação física de movimento, simpatia e abertura, aliada ao desejo de também praticar boas ações. (RODGERS; NARAINE, 2010, p. 91)

Pode-se, portanto, ver o herói como um tipo de “pai”, pois o seu ato, ou o seu modo de vida, quando vislumbrado pelo passante admirado, cria um vínculo de afiliação: sob a sua sombra, somos motivados à repetição do gesto como parte de um acordo moral imaterial. Uma vez despertada a emoção de elevação pelo seu legítimo objeto, essa emoção pede por ação. Noutros termos, ganhamos um tipo de vigor, ou energia que busca canalizar-se em algo ou alguém. Segundo Haidt, o despertamento do amor e o sentimento de afiliação são, por exemplo, a resposta mais comum à contemplação dos santos e dos atos sagrados — mesmo em relatos de segunda mão. É como se no ato heroico de amor gratuito algo de sagrado se manifestasse, um tipo de hierofania, donde se nutre o senso de participação e o impulso reverente e imitativo.

O contato com pessoas grandes e com atos de grandeza, atiçando emoções positivas, pode, de fato, aumentar nossas reservas de energia moral e também a nossa capacidade de ação

Significa, por conseguinte, que o contato com pessoas grandes e com atos de grandeza, atiçando emoções positivas, pode, de fato, aumentar nossas reservas de energia moral e também a nossa capacidade de ação. Em seus estudos dentro do tema, a psicóloga americana Barbara Fredrickson (RODGERS; NARAINE) desenvolveu a “teoria do aumento e ampliação”. Tal teoria descreve o fenômeno da ampliação do repertório de pensamentos-ação, ou de possibilidades imaginativas para agir no mundo, através do fomento de certas emoções positivas, produzindo um aumento dos recursos pessoais, sejam eles físicos, intelectuais, sociais e psicológicos — ficam melhoradas a atenção, a cognição e as bases para a ação no ambiente concreto. Com o aumento do repertório, o indivíduo amplia, portanto, as suas capacidades adaptativas de longo prazo. Conclui-se que a experiência de testemunho de atos de grandeza ou de vidas grandiosas insere e inspira novos e melhores modelos existenciais na imaginação.

O sentimento de elevação nos coloca para fora de nós mesmos através de experiências de grandeza, que despertam emoções positivas capazes de motivar-nos ao cultivo de habilidades e de relacionamentos duradouros. Assim, vidas e atos heroicos singulares acabam fomentando toda uma ordem social saudável e próspera, por isso não é espantoso pensar como os antigos, que atribuíam a origem de suas culturas a certos heróis fundadores. Essas histórias míticas, mesmo quando totalmente mitológicas, apresentam à imaginação e aos sentimentos de seus ouvintes certos modelos exemplares, cuja imitação leva invariavelmente à manutenção da ordem e à retificação de conflitos. Isso significa, trazendo o conceito aos nossos dias, que a reintrodução na mentalidade popular das histórias de nobreza, daquela velha literatura permeada pela grandeza, pode ser um estimulante para a reaparição de figuras heróicas. Vidas e atos heróicos são marcos da eternidade dentro do tempo e do espaço, e podem demarcar o início de novos períodos dentro das sociedades, contagiando em primeira e em segunda mão um sem-número de pessoas e, assim, ambientes degenerados pela apatia, pelo tédio, pelo medo e pela violência podem ser redirecionados para condições de magnanimidade e de coragem pelo amor e pela afiliação. É como se houvesse uma criação “ex nihilo” de potência regenerativa pelo súbito revigoramento moral fundado na magnanimidade de figuras exemplares.

Quando o Apóstolo Paulo, em 1 Coríntios 11:1, exorta para a imitação dele enquanto imitador de Cristo, ele está utilizando o mesmo termo grego que apontamos em Girard: mímesis, que trata da imitação do outro enquanto modelo ou exemplo. O próprio Paulo converteu-se após uma intensa experiência com a grandeza e magnificência de um Cristo heroico, que o cegou na estrada para Damasco. A vida do nosso apóstolo é toda permeada de atos de ardente entrega pessoal à causa do Evangelho, com intermináveis açoites, apedrejamentos, perseguições, prisões e naufrágios, que lhe encheram de cicatrizes, as quais chamou de “as marcas de Jesus” (Gl 6:17), visto, à imagem do Salvador, sofrer terríveis dores pela Boa Nova. A Igreja acompanhou os sofrimentos paulinos como fontes de encorajamento para uma fé apaixonada e inquebrável (Fl 1:14), e sua personalidade foi de tal modo impactante que o apóstolo precisou lembrar os cristãos de Corinto de que ele e Apolo eram meros servos de Cristo (1 Co 3:6).

Mais recentemente, o exemplo de outro gigante da fé transformou o mundo. John Wesley (1703–1791), segundo Vishal Mangalwadi (2012), pôde liderar um profundo resgate espiritual, moral e civilizacional na Inglaterra de seu tempo muito em função de sua conduta heróica. Tendo encontrado uma nação num terrível estágio de generalizada podridão, que subumbia perante a corrupção, a violência, o alcoolismo, a jogatina, a mortandade infantil, a ignorância e a promiscuidade, que se alastraram quando da perda da autoridade das Escrituras e das igrejas pelo predomínio da mentalidade iluminista, deísta e cínica, Wesley, de sua conversão até o fim de sua vida pregou mais de 45 mil sermões, viajou cerca de 400 mil quilômetros em seu país, publicou aproximadamente 330 livros, escreveu gramáticas de diversas línguas, editou uma biblioteca de 50 volumes para a formação intelectual e espiritual e envolveu-se em centenas de projetos de cunho social e educacional, acompanhado do irmão, Charles, que compôs algo próximo de 9 mil poemas e hinos. Wesley levantava diariamente às 4 da manhã e ocupava o dia inteiro com pregações e atos virtuosos. Símplice, suas necessidades básicas anuais não passavam de 30 libras. É claro que o conteúdo de todo o incomensurável trabalho de John e Charles foi o motor principal do que se seguiu ao Grande Despertamento, mas a incansável vida grandiosa desses dois homens de Deus produziu um impacto heroico que ajudou a desencadear a restauração da nação inglesa:

Não é exagero dizer que Wesley — e tudo isso também é verdade quanto ao seu irmão Charles e Whitefield — incutiram no povo britânico um novo e bíblico conceito de coragem e heroísmo. Sua dignidade tranquila, a ausência de malícia e de ira e, acima de tudo, a evidência do Espírito de Deus trabalhando em sua vida desarmaram, por fim, seus inimigos e os ganharam para Cristo. — Mangalwadi, p. 308

Onde estão, pois, os grandes homens nos nossos dias, que também são tempos de trevas? Humberto Maturana (RODGERS; NARAINE) afirma que vidas e atos de grandeza não encontram espaço em sociedades regidas pelo pensamento linear e reducionista das ideologias políticas, de maneira que o próprio heroísmo, quando acontece, nem sempre é percebido ou compreendido como tal. A vida e os atos de grandeza são recebidos pelos espectadores sensíveis como uma manifestação da Providência, de algo sagrado, e os sujeitos grandiosos são vistos como sendo, ou tendo sido, inspirados. A experiência com a grandeza é essencialmente emocional, passando pelo coração, e não racional ou intelectual. Do mesmo modo, aquele que vive ou realiza a grandeza não o faz, em primeiro lugar, após um cálculo ou raciocínio linear: ele é despertado por uma determinada circunstância, sente-se invadido por compaixão e, embalado no amor ao próximo, lança-se em seu favor. Por isso o homem nobre tende a não se sentir o primeiro responsável pelo seu heroísmo: ele alega ter sido mais o instrumento de uma força maior, pois é assim que ele sente a ocasião, ou a sua vida. Estranhamente, o impulso de amor não é desordenado: os homens grandiosos, na ocasião de suas ações, afirmam sentir uma clareza ímpar a respeito do que fazer e de como agir, pautada numa profunda sintonia com o ambiente e com o outro. A ocasião para o heroísmo demanda um aparato cognitivo que sente o mundo de maneira sistêmica, não linear e reducionista.

Jonathan Haidt identificou essa qualidade cognitiva sistêmica, sobretudo, na mentalidade dos indivíduos considerados conservadores, que vivem sob a perspectiva sociocêntrica, captando o mundo e nele atuando a partir de uma harmonização das seis categorias cognitivas básicas (Cuidado, Justiça, Lealdade, Liberdade, Autoridade e Santidade), enquanto percebeu a distorção reducionista e linear na mentalidade pós-modernizada do chamado liberal, ou progressista, que tende a ler e a situar-se na realidade hiperatrofiando duas das categorias (Cuidado [Bem-Estar] e Liberdade) e pondo estéreis todas as demais. Haverá ocasião para um melhor detalhamento dessas categorias cognitivas numa próxima coluna. O que nos interessa agora é: as vidas e os atos grandiosos estão se tornando cada vez mais raros porque as mentes que lhes seriam solos férteis estão cada vez mais escassas — poucos conseguem ver o mundo e o outro com a totalidade necessária para o despertamento da compaixão. Os próprios jovens, ideologizados, estão se agrupando em tribos de iguais, que apenas retroalimentam suas experiências e emoções negativas, donde reforçam sua causa militante (sempre contrária ao “opressor”), enquanto adoecem em grupo e mantém-se afastados do contato com pessoas grandiosas, positivamente desiguais, que poder-lhes-iam inspirar percepções mais otimistas e salutares da vida.

Nós, cristãos, “que estamos rodeados de uma tão grande nuvem de testemunhas” (Hb 12:1), contudo, não temos desculpas para o alastramento da mediocridade em nossos meios, como bem denunciou Frank Schaeffer (2008). Voltemo-nos para a Palavra em busca dos gigantes da fé, voltemo-nos para aqueles que, dentre nós, são excelentes. Nos inspiremos no que há de melhor, donde seremos espiritual e psicologicamente fortalecidos para uma vida transbordante de dons e de graça.

“Procurai o belo e não o iníquo” - Amós 5:14 (Trad. Frederico Lourenço)

DE GODOY, Edvilson. O Sacrifício de Cristo, Abordagem a partir de René Girard e Raymund Schwager. São Paulo: Palavra & Prece, 2012.

HAIDT, Jonathan. A Mente Moralista: Por que pessoas boas são segregadas por política e religião. Rio de Janeiro: Alta Cult, 2020.

MANGALWADI, Vishal. O Livro que Fez o Seu Mundo, Como a Bíblia criou a alma da civilização ocidental. São Paulo: Editora Vida, 2012.

RODGERS, Judy; NARAINE, Gayatri. Algo Além da Grandeza. São Paulo: Integrare Editora, 2010.

SCHAEFFER, Frank. Viciados em Mediocridade, cristianismo contemporâneo e as artes. São Paulo: W4 Editora, 2008.

Artigo publicado originalmente na Revista Fé Cristã, edição 4, ano 1, nº 4, setembro de 2020, p. 58–63 — Heroísmo e Saúde Mental, por Natanael Pedro Castoldi

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Natanael Pedro Castoldi
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Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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