Homo Christianus

Do horizonte escatológico de Mateus 5 e o sentido da Igreja

Natanael Pedro Castoldi
14 min readNov 16, 2023

O Sermão da Montanha é, de fato, pedra fundamental para todo o ensino cristão, e um estudo pormenorizado, ainda que seja apenas do capítulo 5 de Mateus, lança luz sobre todo o Novo Testamento, indicando ali estar encapsulada parte da essência mesma do Evangelho, que vai se desdobrando ao longo dos Sinóticos e sendo destrinchada sobretudo nas epístolas paulinas e nos escritos joaninos. Todo o horizonte escatológico do Reino ali jaz posto como o pano de fundo ou o princípio ativo que rege a vida interna da Igreja e, na medida em que, do Reino, se vislumbra Nova Criação, desvela um novo tipo humano, o homo christianus, se assim o pudermos chamar, no qual está prenunciada, em gérmen, a nova humanidade pós-apocalíptica, feita de matéria celestial e prometida para o advento da Parousia.

Os paralelos do Sermão da Montanha com o Êxodo são bastante evidentes, segundo os melhores comentadores, de maneira que Cristo Jesus aparece à multidão como “aquele como Moisés”, de Deuteronômio 18:15, e o Sinai, ou o Horebe de Dt 18:16, é análogo à Montanha ou às colinas do Sermão, de maneira que, assim como Moisés recebeu de Deus a Lei, ofertada à congregação do Deserto como Aliança Mosaica, Jesus Cristo traz consigo, desde a destra do Pai, a Nova Aliança no Seu Sangue, o verdadeiro fechamento da Lei na Graça e o anúncio de uma nova redenção, à luz do tempo exódico, pela qual os filhos de Deus são nascidos da Fé. Não é de surpreender, por conseguinte, que os camponeses galileus tenham posteriormente procurado em Cristo um libertador político, de matiz escatológico, e um refundador da nação de Israel em sentido davídico e messiânico, quando, da Primeira Multiplicação, sentiram-se Povo Eleito, a ser alimentado pelo Maná de Deus no ermo, e, vendo n’Ele o Moisés do apocalipsismo, intentaram torná-Lo Rei e congregar com Ele, feito líder de uma comunidade ao estilo qumrânico (João 6:14–15), pelo que foram repreendidos (6:25–66), porque o Reino de Cristo “não é deste Mundo” (Jo 18:36), inseminado no meio do Mundo em espírito e guardado para a sua consumação apenas no Mundo que virá.

O notável, aqui, é que o Sermão não é propriamente uma prescrição de normativas éticas, à semelhança daquelas pelas quais o Povo, aderindo a elas, ingressou e conservou-se na Aliança e na possibilidade, via progressão moral, de um relacionamento com Deus. Trata-se, isto sim, muito mais da descrição de uma nova qualidade humana, uma leitura das características típicas dos já nascidos do Reino, em Cristo e pela Graça, desde o início substancialmente diferentes de todos quantos tenham nascido sob a Lei, configurados, pois, num salto qualitativo que os distingue, em termos de superioridade, até mesmo do maior de todos os homens nascidos de mulher (e não do Reino ou do Céu), o cabeça da Profecia, João Batista (Mateus 11:11). Assim é, inclusive, nos termos aparentemente negativos dos primeiros versos do quinto capítulo, como “pobres de espírito” e “que têm fome e sede de justiça”, que são muito mais distintivos do discípulo, o nascido do Reino, do que meras descrições contextuais ou acidentais. Leve em consideração que, conquanto houvesse multidão ao redor, os primeiros destinatários da mensagem de Cristo eram os Seus discípulos, convocados não muitos dias antes.

… são geradas pelo Espírito, no Discípulo, disposições internas que outrora não lhe pertenciam, que são como que capacitações próprias ao nascido do Reino…

O primeiro elemento fundamental para a consolidação daquilo que preconizamos está na expressão “bem-aventurados”, do grego Makarios, vista como “felizes” noutras traduções em português, mas cujo sentido exato não pode ser enquadrado nesses termos. A raiz de Makarios, mak-, refere-se a algo que fora tornado grande, longo, insuflado, o que significará, no uso de Cristo, algo como “dilatado por acréscimo dos favores divinos”, donde seu uso para “invejável”. Os favores divinos serão, pois, a dispensação e a infusão, no crente, de qualidades dignas de louvor e de admiração, que tornam-no valoroso, nobre e honorável, ou grande, meritórias no sentido de passíveis de legítima retribuição da parte de Deus, quando do Fim. Essa retribuição é o próprio Galardão, referido no versículo 12, a ser recebido quando do cumprimento de tudo (Mt 5:18). Dessa maneira, há qualidades inerentes ao nascido do Reino que são invejáveis, ou dignas de imitação, e que redundarão em recompensa eterna. Conforme se lê no Strong, há um vínculo inextricável entre entre Fé (Pistis) e Makarios, na medida em que, pela Graça, na Fé (porque a Fé é Dom de Deus), são geradas pelo Espírito, no Discípulo, disposições internas que outrora não lhe pertenciam, que são como que capacitações próprias ao nascido do Reino, que lhe alcançam ou são estendidas desde o Trono Divino no próprio momento da conversão. Essas qualidades ou capacitações são enumeradas em oito, abertas e finalizadas com a afirmação do pertencimento ao Reino.

Grandes são os “pobres de espírito”. Pobreza e piedade eram comumente vinculadas nos escritos judaicos, porque a pobreza material estabelecia uma condição de maior dependência de Deus, atuando como um fator de facilitação da entrega total aos cuidados do Senhor. Todavia, ainda que essa associação apareça no texto, ela sugere algo mais estilístico do que literal, porque Cristo não está falando dos materialmente pobres. Inclusive, Ele opta pela palavra grega que remete à pobreza mais extrema, à pobreza absoluta, Ptóchos, aplicada aos mendigos, donde se vê o apelo eminentemente retórico. Ptóchos tem por raiz ptōssō-, referente à posição contraída do mendigo, agachado e encolhido, altamente vulnerável quando do ato dos apelos por esmolas. O que estabelece um primeiro contrate: “Grandes os apequenados”, ou os que se fazem pequenos. Melhor, segundo a leitura de Frederico Lourenço: os que são feitos pequenos por ação do Espírito. “Bem-aventurados os que são levados pelo Espírito a serem mendigos”, parafraseia o tradutor, implicando nessa perspectiva uma mendicância de tipo espiritual, uma sede da Palavra que é gerada por Deus no coração do Discípulo, desde a qual depende tremendamente do saciamento da parte do Senhor. É desses, os que se desarmam e se vulnerabilizam, apequenando-se diante do Pai, o Reino dos Céus, e eles só podem fazê-lo porque o próprio Deus, no Espírito Santo, lhes infundiu essa disposição.

Grandes são “os que choram”. Naturalmente, tem-se aqui um elemento concreto e apelativo à multidão, severamente oprimida pelas violências dos “poderosos”, tolhida de seus bens e recursos de sobrevida, mas também enlutada pela perda dos seus, decorrente de fomes e moléstias, ou mesmo da aplicação injusta da espada. Cristo Jesus não ignora os sentimentos e as indignações da multidão que O escuta, mas deixa claro que o choro é, para os nascidos do Reino, ressignificado ou imbuído de uma nova substância, que os capacita à espera do consolo escatológico, na Parousia, ao invés da aderência a distrativos anestesiantes, facilitados quando não há propósito para o sofrer, e da inclusão em militâncias e beligerâncias vingativas. Por isso o Discípulo pode chorar o choro Pentheó, que é uma comoção profunda, ao ponto de tomar a inteireza do sujeito, não podendo sequer ser disfarçada; uma tristeza completa, lúcida, vivida com toda a inflamação de seu encaramento frontal, sem a perda de seu objeto causador, para que o consolo também seja completo, para que a alegria do Último Dia seja total, em contraste com o sofrimento cruento.

Grandes são “os mansos”. A herança de toda a Terra, a Orbis Terrarum, que será Reino dos Céus, está guardada para aqueles que humildemente resistirem aos próprios impulsos vingativos, violentos e destrutivos, tão fortemente estimulados pelas perseguições e injustiças e pela inclinação de se buscar instaurar o Reino militarmente, por meio da força. Praus, o grego para “mansos”, não denota fraqueza, mas potência contida, por isso é aplicado também a animais, como cavalos — na medida em que os cavalos retêm sua força bestial para se submeterem ao ginete. O Discípulo, o nascido do Reino, está dotado por Deus de ‘energeia’, de uma força espiritual que aparece na vigorosidade com a qual se autodomina, visando não destinar o poder irascível para caminhos de destruição e de derramamento de sangue. Esse tipo de mansidão pode ser melhor descrito como grandeza gentil, que é magnanimidade, uma condição de humildade serena, capaz de suportar humilhações e maldades sem se perder em devaneios maliciosos e retaliadores.

… a fome e a sede de justiça não são fomes e sedes de justiças humanas, ou da tal de “justiça social”, que impele à militância e ao “militarismo” velado dos reformismos sociais…

Grandes são “os que têm fome e sede de justiça”. São os famintos e os sedentos de justiça aqueles que se fartarão no Dia do Senhor, ou nas Bodas do Cordeiro. Tal fartura, esse saciamento promovido por Deus, à luz do Maná no Êxodo, já era a expectativa dos judeus veterotestamentários (Is 25:6), e deve ser lida, no contexto do Sermão, como um símbolo de justiça completa, cabal e total. Supõe-se aqui o pano de fundo de todas as injustiças e vilanias às quais os ouvintes estavam sendo submetidos, mas, como se observa mais adiante no cap. 5, o principal objeto é a injustiça persecutória e violenta desferida pelos “poderosos” contra os nascidos do Reino, prenunciando o ulterior cenário de agressões aos cristãos e do derramamento do sangue dos mártires, cujo zênite se dará ainda no futuro, quando da tentativa de implacável supressão da Fé da parte do Anticristo. O que quer dizer que a fome e a sede de justiça não são fomes e sedes de justiças humanas, ou da tal de “justiça social”, que impele à militância e ao “militarismo” velado dos reformismos sociais, mas fome e sede da Justiça de Deus, que é conforme à Sua Vontade e que se vincula à aderência, pela Graça, à Fé, viável no esmagamento propiciatório do Corpo de Cristo Crucificado, pelo qual há expiação dos pecados. Todos aqueles que resistem à voz de Cristo, o Bom Pastor, e que não saem do campo dos carneiros, estão de antemão sob Juízo e, na medida em que se tornam inimigos do Senhor, violadores do Santuário e ofensores dos cristãos, têm sobre si maiores medidas da Ira de Deus, que se lhes derramará no Fim. Esse será o Grande Banquete, feito, em símbolo, das carnes dos “poderosos” da Terra, abatidos por Jesus e pelas hostes celestiais, acrescidas dos santos de Deus (Apocalipse 19:17–18). O clamor pela Justiça de Deus, segundo a Sua Vontade e ao ponto dos prantos, é inclinação inseminada no Discípulo pelo Espírito Santo, e esse clamor, regulado pela mansidão, é o que garante o paciente aguardo do Dia da Vingança do Senhor.

Grandes são “os misericordiosos”. Por qual razão são eles grandes, ou invejáveis? Porque para eles será a misericórdia do Senhor no Dia da Ira, no Dia da Vingança, tal como se nos apresenta a expectativa judaica da apocalíptica misericórdia divina no contexto do Fim, na mesma ocasião da desolação dos ímpios, conforme Miquéias 7. A misericórdia de Deus vem como perdão às iniquidades, uma benignidade tal que leva à cessação da ira, que não será ira eterna. Pai perdoador, em Cristo Ele retirará do Seu Povo toda a mácula, toda a raiz de contradição, toda a inclinação desviante, feito purificado de tudo quanto seja mau e que tenha fonte na arché satânica. A misericórdia de Deus é fator de reunificação, num só Corpo, daqueles que são Seus filhos, todos trajados de brancas vestes, como se verá, de todas as nações, naqueles eleitos para as Bodas do Cordeiro (Ap 19:5–8), mas ela será aplicada aos que, nascidos do Reino, estão de antemão inclinados à misericórdia. Eleémón, alinhada pelo Strong a Eleos, não fala de uma bondade medida por aquilo que aos homens parece bom, ou ao que eles entendem por misericórdia, de maneira que não é exatamente o mesmo que “ser uma boa pessoa” — trata-se, pois, da piedade medida à luz da Vontade do Senhor, revelada nas Escrituras e em conformidade com as prerrogativas da Aliança. O misericordioso, nesse sentido, não é aquele que “sente pena”, tampouco o é aquele que aplica o “bem conveniente”, que é o auxílio aos próprios amigos ou aos abastados, dos quais pode aguardar recompensa. O piedoso, conforme a Aliança, ama o próximo como a si mesmo, porque ama a Deus de todo o coração, e ama o seu irmão sacrificialmente, sem dar demasiada atenção ao dano pessoal, por isso possui a disposição interna, ou a força moral, de envergadura heroica, para amar seu inimigo e para ser benevolente aos que nada têm a oferecer.

Grandes são “os limpos de coração”. São esses, de coração limpo, que o salmista encontrou propícios à bondade de Deus (Sl 73:1), e O verão, naturalmente, no futuro — a Visão (Horaó) Beatífica que ainda está para se completar, quando do Fim, na Parousia e na congregação das nações, Povo de Deus, diante do Trono do Senhor. Eis o objeto máximo de todas as aspirações humanas, a realização última de tudo quanto possa desejar o homem: contemplar a Face de Deus Pai. Não há beleza maior, não há maior grandeza, não há nada que seja mais desejável do que ver o Senhor Deus no Paraíso Celestial, em Nova Jerusalém. Mas a Visão Beatífica (Horaó — “ver com a mente”, isto é: “visão espiritual”) não está reservada a todos, senão aos nascidos do Reino, que têm em si o gérmen da Nova Criatura, do Corpo Pneumático da Ressurreição, e que possuem, desde já, a capacitação espiritual da visão reta e pura, do desejo presente, de natureza noética, de Ver o Transcendente através das coisas visíveis e de buscar a realização da Vontade de Deus, que é Espírito, ainda neste Mundo. Katharos é o termo grego para a pureza do coração (Kardia), e assume o sentido de integridade e univocidade, que é a ausência de mistura com o pecado, a qual permite um olhar reto e agudo, unilateral, que discerne a Vontade do Senhor e é capaz de priorizá-la em todos os momentos da vida. Uma vez que é pureza de coração e que Kardia é a sede ou o cerne das faculdades espirituais humanas, condensadas na Vontade, devemos pensar o “limpos de coração”, que Frederico Lourenço interpreta como “limpos por ação do coração”, como um direcionamento incisivo e santo, baseado na vigorosa vontade (o poder irascível bem colocado [mansidão]), de todas as intenções e de todas as forças da alma. Pela Vontade, conduzida pela Inteligência, são purificados os pensamentos e realinhados os desejos e as intenções, subordinados à Vontade de Deus, que é a Vontade aos pés da qual devemos depositar nossas vontades particulares.

… aquele que está bem consolidado em si mesmo, insuflado ou bem-aventudado pelo favor divino, será um agente positivo na ordem exterior…

Grandes são “os pacificadores”. Porque aqueles que aguardam pacientemente, mesmo sob perseguições e violências diversas, o “cumprimento de tudo”, confiantes no cuidado do Senhor e na Promessa, receberão, do Nome de Cristo, a qualidade de filhos de Deus, sendo, enfim, por Ele nomeados Filhos. A consumação ou a realização total dessa promessa, já em gérmen por adoção espiritual, é prevista pelo apóstolo Paulo quando do Dia da Ressurreição dos Santos, na ocasião da Parousia. Integrarão eles, pois, sob a primogenitura de Deus Filho, a Família de Deus, sendo Seu Povo, Seu Único Povo, ainda que vindos de todas as nações da Terra. Essa unidade última e total, que supracitamos ao redor das Bodas do Cordeiro, é reflexo da qualidade do nascido do Reino, já presente e atuante por infusão ou capacitação da parte do Espírito Santo: Eirénopoios, o “fazedor da paz”, traz em si, por princípio ativo, a Eiréné, que é, basicamente, “paz interior”. Noutros termos: tendo sido pacificado em seu próprio coração, limpo pela retificação da Vontade e pelo afiamento da Inteligência, não se encontra internamente dividido, rachado, cindido, em conflito. Ele é todo inteiro, unívoco, tendo todas as suas faculdades espirituais bem unidas e conjugadas segundo a convergência à finalidade, que é o amor a Deus. Essa ausência de mistura, que é o sentido literal de Eiréné, é descrita pelo Strong como o Dom da Totalidade, um dom de Deus, que reflete a Sua própria unidade trinitária e prenuncia a unidade escatológica do Povo na Nova Jerusalém. Evidentemente, aquele que está bem consolidado em si mesmo, insuflado ou bem-aventudado pelo favor divino, será um agente positivo na ordem exterior, expressando o coração puro e a inteligência retificada em uma vida bela, coesa e benigna.

Grandes são “os que sofrem perseguição por causa da justiça”. É deles, como dos mendigos por ação do Espírito, o Reino dos Céus, e são eles, pois, os mesmos que têm fome e sede da Justiça de Deus, sendo perseguidos exatamente porque vivem segundo a Justiça Divina, não a justiça dos homens. Note como todos os que nasceram do Reino estão inclusos em todas as bem-aventuranças, porque falamos de qualidades inerentes a esse tipo humano inaugurado em Cristo, o que fica claro no uso de “vós” a partir de agora, no versículo 11, incluindo aí a multidão, além dos Discípulos. Todo o mal, toda a injúria, toda a mentira, tudo o que for dito e tudo o que for feito aos nascidos do Reino por estarem eles em Cristo, ou na Justiça, é motivo de grandeza — tornam-se grandes quanto mais são despedaçados, e são firmados como nação de profetas, porque vivem, na qualidade de Discípulos e enquanto Povo de Deus, o tipo de perseguição que o Velho Testamento conheceu apenas nos martírios dos profetas individuais. Por isso, nação profética, cada nascido do Reino é maior do que João Batista, o cabeça da Profecia, decapitado pouco tempo depois do Sermão. Não falamos mais de qualidades excepcionais dadas a homens extraordinários, note bem, mas da própria natureza do homo christianus, latente em todo o Novo Nascido e generalizada nas expressões coletivas do Fruto do Espírito, que se quer padrão mínimo e universal do éthos cristão.

… a Igreja é mais fator de contradição e de oposição, o que redunda num motivo de intensificação reversa, por resistência maligna, de todas as potências demoníacas da Terra…

A sequência de Mateus 5, descendo até por volta do versículo 16, desdobra as implicações dos versículos que estudamos. Está dado aqui o drama escatológico que se esclarecerá posteriormente nas epístolas paulinas e no Apocalipse, a saber: a iniquidade aumentará em uma progressão que é análoga e proporcional ao crescimento e à santificação da Igreja, de maneira que o “sal” salga mais, e não é “sal tolo”, quanto menos sabor há na comida, assim como a Cidade no Monte ilumina mais, e ofusca, quanto mais escura for a noite. Quem não sabe que a sombra fica mais densa quando a luz é mais brilhante? Os contrastes são inequívocos, donde o necessário aumento da perseguição conforme mais progride e se santifica a Igreja, porque ela, atraindo à Luz tantos quantos, perdidos nas trevas, ouvem o chamado de Cristo, também atrai contra si crescentes vagas barbáricas de intentos anticristãos, com o clímax apocalíptico aguardado. Significa, ao fim e ao cabo, que, ao invés de a Igreja melhorar e salvar o Mundo por redenção cultural de matiz militante, na medida em que ela é chamada apenas para existir e persistir em si mesma, na intensificação de suas qualidades internas, pelas quais proclama o Evangelho desde os telhados, a Igreja é mais fator de contradição e de oposição, o que redunda num motivo de intensificação reversa, por resistência maligna, de todas as potências demoníacas da Terra, nas quais se incluem os governos dos povos. Isso se dará até o zênite de todas as maldades, tensionando ao limite último com a Noiva Imaculada, quando a Ira de Deus finalmente cair sobre as nações — e assim, tendo sido motivo de perseguição e objeto de violência, a Igreja terá atuado, ao longo da história, como um fator decisivo no transbordamento dos Cálices da Ira de Deus, viabilizando o Juízo Total no Fim. Doutro modo: a Igreja não está no Mundo para que ele seja melhorado e redimido dentro dos tempos, mas para que ele, por odiá-la em seu ódio a Cristo, seja julgado e aniquilado no Fim da Era. O Galardão? Análogo ao Banquete: mais farto e mais gordo quanto maiores foram as violências sofridas, como ovelhas mudas, pelos nascidos do Reino e em função de seu amor por Cristo.

Não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada; porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra; e assim os inimigos do homem serão os seus familiares.
Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim. E quem não toma a sua cruz, e não segue após mim, não é digno de mim.
Quem achar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a sua vida, por amor de mim, achá-la-á. Quem vos recebe, a mim me recebe; e quem me recebe a mim, recebe aquele que me enviou. Quem recebe um profeta em qualidade de profeta, receberá galardão de profeta; e quem recebe um justo na qualidade de justo, receberá galardão de justo.
E qualquer que tiver dado só que seja um copo de água fria a um destes pequenos, em nome de discípulo, em verdade vos digo que de modo algum perderá o seu galardão. — Mateus 10:34–42

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 15 de Novembro de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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