Igreja e Estado

a identidade profética do cristianismo frente ao poder político

Natanael Pedro Castoldi
8 min readApr 8, 2021
The Sacrifice of Cain and Abel — Mariotto Albertinelli

Frédéric Bastiat (2010) estabelece a origem primeira da ordem social em Deus: Ele é o autor da vida. Pode parecer ao leitor cristão algo bastante óbvio, mas Bastiat, em seu combate ao Iluminismo Francês, que Himmelfarb (2011) terá como o império ideológico da Razão, está realizando uma inversão completa do espírito revolucionário: a sociedade humana não é produto direto de um contrato social e não nasce das reflexões abstratas dos philosophes, não sendo determinada de cima pra baixo, mas começa num substrato anterior a toda a sociedade e a toda a teoria. A partir da vida humana, limitada por sua própria natureza, emergem as demandas básicas por sobrevivência, nutrição e desenvolvimento individual. Nessas limitações está inserido um apelo por crescimento: o corpo luta para se manter e fortalecer e a mente tem sede de conhecimentos úteis e daqueles dotados de significado. Para estes últimos, precisar voltar-se sempre à própria origem, que é o Criador, e através d’Ele dar sentido do mundo e a si mesma.

A partir da vida humana, limitada por sua própria natureza, emergem as demandas básicas por sobrevivência, nutrição e desenvolvimento individual

Algo de Bastiat se assemelha ao conceito de Mandato Cultural, estabelecido em Gênesis 2:15 (“E tomou o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o guardar.” [ACF]) e definido por Guilherme de Carvalho como “a ordem divina para que o homem explore de forma criativa e responsável os recursos da criação e recubra a natureza criada com uma ‘segunda natureza’ […], agindo como mordomo e vice-rei cósmico.” (2009, p. 67–68), pois nosso autor insere no conceito de vida a divina ordem de “preservá-la, de desenvolvê-la e de aperfeiçoá-la” (BASTIAT, 2010, p. 12), e isso significa que somos chamados a cuidar da Criação, que é a base material para nosso desenvolvimento vital e espiritual: a vida humana será identificada com o corpo individual, a ser nutrido e protegido; o apelo ao desenvolvimento das faculdades mentais e a sua concretização na realidade demandarão certo nível de liberdade de ação; e, enfim, para a realização das finalidades anteriores, o indivíduo terá que dispor de propriedade, geralmente compartilhada com outras pessoas engajadas com ele em alguns desses propósitos. As pessoas, as suas liberdades e as suas propriedades, no conjunto da vida comum, com suas demandas e necessidades individuais e compartilhadas, se organizarão ao redor do que se chama de Lei, que impõe os limites necessários para que cada indivíduo, grupo familiar e comunidade consigam bem progredir pelo correto manejo das necessidades humanas frente à Criação.

É no contexto imediatamente pós-Queda que Deus estabelece os rudimentos da vida em sociedade: no seio da família de Adão encontramos de pronto a esfera religiosa e ritual e a esfera produtiva, ambas reforçando aspectos da individualidade e da propriedade, pois Caim tem inveja da oferta de seu irmão, Abel, e do tipo de aceitação que este teve perante o Criador por meio do sacrifício das primícias de seu rebanho. É, pois, do primeiro homicídio, em Gênesis 4, que Deus verbaliza a primeira lei a proibir esse tipo de violência contra a vida, e é para proteger-se do anseio vingativo de seus familiares que Caim se escondeu atrás do “recinto murado” (Gênesis 4:17: “cidade”, do hebraico “‘îr”, que é uma área protegida por muros). Isso sugere que a primeira cidade nasce e se governa a partir do imperativo da proteção contra criminosos homicidas e ladrões. A sociedade humana, enfim, se encontra ordenada de maneira rudimentar nesse cenário: há uma centralidade do culto religioso, que se paganiza na descendência de Caim, e temos as garantias da individualidade e da propriedade, sustentadas pela validação da defesa da vida e, portanto, de suas bases materiais.

O que podemos observar até o capítulo 5 de Gênesis é que, conquanto a cidade pareça ter sido concebida como um tipo de mecanismo de regulação da violência, conforme já demonstrado por Maurício Righi (2017), o desenvolvimento do poder citadino, que é o poder político formal, palaciano, com sua própria corte sacerdotal, é proporcional ao decréscimo do poder que Paolo Prodi (2017) chamará de carismático: não vemos tendo espaço nas cidades caínicas a manifestação direta de Deus, como no contexto pastoril de Abel e de seu irmão, Sete. Gênesis 4, ao destacar a rejeição do Senhor para com a oferta de Caim, o homicida, estabelece um princípio que percorrerrá toda a posterior história de Israel: Deus não está submetido ao mais poderoso, por isso também Ele não quer entrar pelas muralhas de Caim. Há, aqui, o gérmen do que será a divisão entre o poder burocrático-institucional e aquele de origem carismática.

Da entrega da Lei ao Povo de Israel no Sinai, um evento emblemático se sucede. Em Números 11:25–29, os anciãos e Moisés estão reunidos dentro da Tenda, representação incipiente do que será o complexo Templo-Palácio na Jerusalém de Davi, onde, sob a unção mosaica, os líderes do povo profetizam durante um tempo e, cessando, descobrem que dois anciãos que não estavam na Tenda, Eldade e Medade, seguem profetizando no meio do acampamento, entre as pessoas comuns. Procuram censurá-los, mas Moisés os defende: “Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta, e que o Senhor pusesse o seu espírito sobre ele!” (ACF). Para Prodi, aqui está sinalizada uma emergência do poder carismático, do Deus Vivo que pode agir onde bem entender e independentemente do poder do Templo e do Palácio. Soma-se a isso o conceito de Aliança, estabelecido na ocasião imediatamente anterior da entrega da Lei: a ideia hebraica de Aliança coloca a origem da Lei no Criador, no Transcendente, separando-a do Estado e sob o domínio de um Deus Vivo, pessoalmente comprometido com a obediência de Seus estatutos, estando sob Seu juízo os sacerdotes, os reis e os homens comuns, igualmente. Quando Bastiat compreendeu as raízes transcendentais da Lei, ele estava acessando uma tradição que começou no Sinai.

Nos demais povos do Oriente Médio e no Egito, contudo, o rei era uma manifestação da divindade, tomando para si o arbítrio máximo sobre questões religiosas e políticas. Isso significa que não havia nenhum poder fora do Palácio e de seu Templo e nada que pudesse frear as ações do monarca. Em Israel, com a Lei destacada do Estado e posta no Deus Transcendente, o rei se fazia um ministro da Lei, e não a sua fonte, Lei essa que se manifestava de modo independente no Templo. Lembro que nenhum líder político de Israel foi aprovado quando tentou apropriar para si funções sacerdotais. Porém, o complexo Templo-Palácio representa o poder que chamamos de burocrático-institucional, estabelecendo o Estado de Israel dentro desse binômio. A verdadeira divisão de poderes israelita acontece entre o Estado e o poder carismático dos Profetas. Os Profetas, reconhecendo que Deus é um Deus Vivo e que Sua Lei está acima do Estado, vinham de fora da instituição burocrática, do povo comum, e falavam em nome do Senhor inclusive contra os reis, apontando suas transgressões e, com base nos valores eternos da Aliança, estabelecendo juízos. Também criticavam o sistema sacerdotal, quando este se desvirtuava, além de exortarem o próprio povo a uma mudança de conduta, se Deus lhes conduzisse para tal. Noutros termos: tendo em vista os perenes estatutos do Sinai e em perspectiva as antigas promessas de bênção à nação, os Profetas não se rendiam à política do momento, aos interesses imediatos dos reis. Mantinham Israel sempre a se lembrar de sua identidade, do que aliançaram com Deus e do que os aguardava, alimentando a esperança.

Como diz Prodi, e bem podemos saber pelo Novo Testamento, a Igreja é uma Nação de Profetas, e é da Igreja que o sistema hebraico de divisão entre poder burocrático-institucional e poder carismático entra no Ocidente via Império Romano como a conhecida divisão Estado e Igreja. Assegurando, ao afirmar que “Jesus Cristo é o Senhor” (Filipenses 2:11 [ACF]), sua própria soberania enquanto Reino de Deus, a Igreja se negou a adorar a César, pagando preço de sangue, mas podendo manter a sua identidade profética: anunciar o Evangelho de Salvação na expectativa da Volta de Jesus. Independente, pôde mostrar a todos que o imperador não era divino, tomou para si os bebês que os romanos abandonavam nas colinas para serem comidos por lobos, deu espaço humanizador para os escravos dos patrícios de Roma e deu a algumas mulheres a posição honrada de diaconisas. Assim, junto da proclamação da Boa Nova, tentou viver os valores do Reino, transformando toda a estrutura do Ocidente de baixo pra cima.

O resto da história conhecemos. A posterior disputa entre Estado e Igreja levou tanto o Estado, como com Constantino, a absorver a Igreja, como a Igreja, com Gregório VII, a absorver o Estado. Prodi evidencia que o poder carismático, profético, não sobrevive quando tomado por inteiro pelo poder burocrático-institucional, pois ele não pode existir num contexto em que se procura regular e limitar a ação do Deus Vivo. Quando isso acontece, via de regra a Igreja se torna um braço do Estado, ou ela mesma se transforma no Estado, deixando de ser Igreja ao perder sua potência profética em nome dos assuntos deste mundo e deste século. O anúncio do Evangelho de Cristo sai do centro e tudo passa a reduzir-se a ações político-sociais. Sem a divisão dos poderes Estado-Igreja, com o monopólio burocrático-institucional, não sobra nenhum refúgio fora do Estado e a liberdade de expressão, de “fala profética”, fica sem garantias.

Na atual situação política de nosso país, podemos cair na sedução que representa uma liderança alegada cristã no centro do poder burocrático-institucional e acabarmos cedendo para o Estado muito mais do que deveríamos. Enquanto Reino de Cristo, nossa função é profética, alertando a todos, reis ou não, para o retorno de Cristo e exortando-os ao arrependimento. Se nos determos em excesso nas “coisas deste mundo”, logo perderemos essa prerrogativa e nos tornaremos apenas um destacamento do Estado para a realização de serviço social.

Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos. Amém. - Mt 28:19-20 (ACF)

BASTIAT, Frédéric. A Lei. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.

DE CARVALHO, Guilherme V. R. O Senhorio de Cristo e a Missão da Igreja na Cultura: A ideia de Soberania e sua aplicação. In.: Ramos, L.; CAMARGO, M.; AMORIM, R. (Orgs.). Fé Cristã e Cultura Contemporânea, Cosmovisão cristã, igreja local e transformação integral. Viçosa, MG: Ultimato, 2009. p. 58–95

HIMMELFARB, Gertrude. Os Caminhos para a Modernidade, Os iluminismos britânico, francês e americano. São Paulo: É Realizações, 2011.

PRODI, Paolo. Profecia, Utopia, Democracia. In: CACCIARI, Massimo; PRODI, Paolo. Ocidente sem Utopias. Belo Horizonte: Âyiné, 2017. p. 21–78

RIGHI, Maurício. Pré-História e História, As instituições e as ideias em seus fundamentos religiosos. São Paulo: É Realizações, 2017.

Artigo publicado originalmente na Revista Fé Cristã, edição 2, ano 1, nº 2, maio de 2020, p. 60–64 — Igreja e Estado, por Natanael Pedro Castoldi

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Natanael Pedro Castoldi
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Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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