Israel e o Eschaton

O papel escatológico dos israelitas na Economia da Salvação

Natanael Pedro Castoldi
8 min readOct 23, 2023

Romanos 11 é taxativo: Deus não rejeitou o Seu povo. Isso, dito já no versículo 2, é uma resposta à questão versículo 1. Uma questão tal nos dirige ao entendimento de que havia uma acirrada discussão na Igreja Apostólica ao redor do status de Israel com o advento da Nova Aliança. De fato, essa questão, “Porventura rejeitou Deus o seu povo?”, decorre do pronunciamento paulino do capítulo 10, a respeito da contínua rejeição da parte dos judeus ao Senhor e Sua Aliança, que, então, foi oferecida a “povos estranhos” — o apóstolo o diz, ao estilo rabínico, com base em sentenças dos maiores profetas, como Isaías e Moisés. Das palavras de Moisés (v. 19), estabelece o panorama do capítulo 11: a oferta da Aliança aos não judeus serviria para constranger Israel ao arrependimento.

Nota-se que o conceito de “nação”, no Mundo Antigo, não era exatamente e de todo atrelado ao território geográfico, uma vez que não tínhamos um sentimento nacional de estilo moderno. Mesmo os judeus da Diáspora, helenizados, eram considerados Povo de Israel, e o confirmavam ritualmente através das viagens anuais à Jerusalém dos tempos festivos. Eram da Diáspora, mas israelitas, uma vez pertencentes às Tribos e ligados ao patriarca Abraão. O próprio Paulo, nascido em Tarso, considera a si mesmo israelita em Romanos 11:1, filho de Abraão e da tribo de Benjamin. Ele o diz no início de sua resposta à questão da rejeição de Israel por Deus — Israel não foi rejeitado, porque ele mesmo, Paulo, é israelita. Enquanto israelita e convertido do mau caminho dos pais, Paulo se integra na imagem do “Remanescente segundo a Graça”, recuperando a resposta de Deus a Elias, que pensou ser ele o último dos fiéis: o Senhor havia separado para Si sete mil justos, que não haviam se curvado a Baal. Assim, ao contrário da impressão trágica de Elias, Israel não havia sucumbido e não deixaria de existir para sempre, porque Deus mantivera Sua primícia, pela qual resgatou Israel, porque Ele não abandonou Sua Aliança e Sua Promessa, sendo também fiel aos que mantiveram-se fiéis a Ele.

O apóstolo, pois, é Israel enquanto remanescente, e o remanescente israelita é encontrado entre todos os judeus que então estavam se convertendo, como eleitos, à Boa Nova. Tal Boa Nova lança raízes primitivas no Pai da Fé, Abraão, e antecede os desvios farisaicos do judaísmo do tempo paulino, recuperado, retificado e apresentado à sua finalidade, outrora inevidente, que é a Graça por meio de Cristo Jesus. Daí a consideração dessa eleição entre os israelitas: “já não é pelas obras”. O entendimento de Paulo, tal como apresentado em Gálatas 3, é o de que a Lei, da maneira como dada por Deus a Israel no contexto da Torá, cumpria o papel de guardadora do Noivo — o termo grego para “aio”, paidagōgos, significa propriamente “guardião”, e era usado para se referir ao escravo de nobres gregos e romanos encarregado de vigiar e disciplinar os meninos e jovens entre 6 e 16 anos, para ingressarem bem formados na vida adulta. Dessa maneira, a Lei enquanto “aio” era tanto a predecessora quanto a encobridora do Noivo, o Cristo / Evangelho, guardando em si e para além de si o mistério da Graça, para a qual os judeus estavam sendo especialmente preparados através da sua aspereza e rigidez inflexíveis e praticamente inabarcáveis, impraticável se assumida — a lei — literalmente e em todos os seus pormenores, donde sua função ser, paradoxalmente, conduzir Israel repetidamente ao fracasso e à crise, para, por meio de muitos sofrimentos (Isaías 53), estar preparado para o recebimento do Evangelho da Graça, que vem também introduzir o sentido verdadeiro da Lei, outrora impossível de ser conhecido, porque esse sentido vem com o seu fechamento ou sua conclusão, que é a sua realização, em Cristo Jesus — finalidade da Lei em sentido não apenas cronológico, mas substancial ou ontológico (daí ser “sombra” do Corpo de Cristo [Cl 2:17]). O fardo da Lei, em termos de Antiga Aliança, aprisionou Israel numa condição na qual certa e recorrentemente falharia em agradar a Deus, e enquanto a Lei se mantivesse nos antigos termos, incompleta em termos de Revelação, seguiria aprisionando os israelitas na impossibilidade de reconhecerem a Verdade, ou o Eschatos, por inteiro.

… a expectativa de Israel, procurada através da aplicação literal da Lei em todos os seus pormenores, redundando em frustração, não foi realizada

A Promessa, a expectativa de Israel, procurada através da aplicação literal da Lei em todos os seus pormenores, redundando em frustração e recorrentes desânimos, dado seu peso insuportável, não foi realizada — não para Israel. Mas o foi para o remanescente de Israel, para os israelitas eleitos, dentre os quais Paulo, enquanto os outros apenas recaíram mais fundo na condição de endurecimento. Aqui há uma referência direta ao Faraó do Êxodo, implicando no arbítrio da parte de Deus para que Israel mesma, à exceção do remanescente ou da primícia, se mantivesse cega, aprisionada na Lei incompleta, mantida então como guardiã e encobridora do Eschatos — aqui, ela é maldição, não bênção.

A rejeição formal de Israel frente ao Evangelho, argumenta Paulo, não representa uma queda similar à de Sodoma — é um tropeço que não culmina em queda eterna, porque não é como se Deus tivesse desistido de Israel e desejasse lançá-la no fundo dos mares, tal como fez com Sodoma. O tropeço de Israel cumpre uma função necessária na Economia da Salvação, porque foi por meio de sua rejeição da Nova Aliança que os gentios, as nações do Mundo, puderam receber a Boa Nova. O que significa, e Paulo o diz muito bem no versículo 12 (cap. 11), que Israel cumpre uma função análoga à de João Batista mediante Cristo Jesus: o pequeno será desgraçado e diminuirá ainda mais para que o grande, que é os muitos, se beneficie, e todas as nações da Terra sejam abençoadas. “Quem compreendeu a mente do Senhor?” (v. 34). Quem poderia imaginar que a Promessa a Abraão se efetivaria dessa maneira? E que a sua descendência, pela Fé, seria equivalente a pessoas de todos os cantos da Terra, sobretudo gentios? “Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos!” (v. 33).

Por isso a Grande Comissão, tal como apresentada em Atos 1 (é notável que apareça assim no texto lucano), começa com Jerusalém, para seguir aos samaritanos e aos fins do Mundo. Isso é porque o Evangelho deveria ser primeiro ofertado aos judeus, em Israel, para que fosse por eles rejeitado, à exceção daqueles que, dentre eles, fossem eleitos ou o remanescente de Deus, para, então, ser oferecido aos povos da Terra, contados simbolicamente em 70 e virtualmente atingidos, todos eles, já pelos Doze, até inícios do Séc. II. O argumento de Paulo em Romanos, e Paulo foi o principal mestre de Lucas, segue de perto as fórmulas tanaítas da Torá Oral, a qual conservou uma antiquíssima tradição, segundo a qual o Senhor ofereceu a Sua Aliança primeiramente a todos os povos da Terra, que a rejeitaram, ofertando-a por último a Israel, no Sinai, que a aceitou, porque agora a Sua Nova Aliança, ofertada primeiro a Israel, seria rejeitada, para então ser oferecida a todos os povos da Terra, que a estavam aceitando. Dessa maneira, na medida em que a Salvação do Mundo inteiro se segue da rejeição da Salvação por Israel, e essa Salvação do Mundo lança raízes na própria Promessa de Abraão, não podem os gentios se gloriarem contra Israel, como se fossem superiores a Israel — a seiva da oliveira, que iria para ramos naturalmente seus, foi desviada para eles, e eles são nutridos por uma força vital que não nasceu deles mesmos, e são salvos porque outros foram desgraçados.

Essa visão das coisas é motivo, Paulo prossegue, para humildade, não para vanglória, porque o Senhor ofertou o Evangelho aos gentios secundariamente, não primariamente, e se Ele cortou os ramos naturais que rejeitaram o Evangelho, com muito mais prontidão cortará ramos que foram enxertados. Que os gentios sejam, pois, gratos, e que não se alegrem em demasia pela sina terrível que se abate sobre os israelitas que não foram eleitos, mas endurecidos, porque foram endurecidos por causa dos gentios, para que estes pudessem crer. O Senhor, contudo e como já antecipado, não fez Israel tropeçar para que caísse eternamente — seu endurecimento cumpre um papel na Economia da Salvação, um papel que é escatológico por excelência.

O vemos bem descrito no versículo 25: o endurecimento imposto a Israel, uma vez causado por sua própria rejeição ao Evangelho e mantido por Deus para que o mesmo Evangelho fosse entregue aos gentios, perdurará até quando a medida dos gentios chegar a ser completada — após isso, todo o Israel, o vermezinho de Jacó, será liberto de sua cegueira e de seu sono, para que possa também aceitar o Messias Jesus Cristo e arrepender-se dos maus caminhos de seus pais. Paulo chama a isso de “mistério”, e de fato o é: esse é o plano original de Deus, o Seu propósito, que se conservou oculto e impossível de ser descoberto pelos homens até o momento de Sua revelação. Quando todos entre os gentios forem achados em Cristo, Israel será também salvo, e a Aliança do Senhor com os israelitas, e a Sua Promessa para eles, terá alcançado o seu próprio termo.

O mais impressionante dessa exposição paulina é que, assim como a Aliança chegou a Israel através da rejeição da parte dos gentios, que se mantiveram então aprisionados sob cegueira demoníaca e pagã, agora a Salvação de Israel virá através da aceitação do Evangelho da parte dos gentios, porque Israel será salva quando a plenitude dos gentios, ou a sua medida, estiver completada, e por meio do constrangimento ou da “inveja” causados pela adoção dos gentios por Deus. Por esse motivo é que Paulo diz, nos versículos 13 e 14, que pregava aos gentios em vista do constrangimento dos judeus ao arrependimento.

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Isso nos conduz a duas implicações:

* Conquanto o Estado de Israel em si não seja exatamente compatível com o que é dito por Paulo a respeito dos judeus, não podendo representá-los de todo (conservemos a diferença entre Estado e nação/povo), há algo da aliança de Deus com os judeus especificamente relacionado à posse da Eretz, de maneira que é improvável que a refundação de uma nação judaica na Palestina não tenha nada a ver com a soberania do Senhor por sobre o processo histórico || ** Se Israel está mantido por Deus numa condição de sono ou cegueira espiritual, que perdurará até o fim do éon, ou da Era, não deve surpreender a ninguém a resistência cada vez mais hostil do judaísmo ortodoxo e oficial de Israel ao cristianismo, também não deve surpreender a ninguém o alastramento do liberalismo e de outras impiedades no ventre dessa nação, uma vez que pertence à sua condição na Economia da Salvação a distância do Evangelho.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 21 de Outubro de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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