Israel e os Monstros do Mundo Antigo
Um estudo no desenvolvimento da cosmologia hebraica
Existem, segundo Jan Assmann (O Preço do Monoteísmo), dois tipos básicos de religião: a religião primária e a religião secundária, com uma tendência de transição da primeira para a segunda. A religião primária tem uma divindade tutelar, que domina o Mundo Divino e coordena as potências que mantém a natureza nos eixos — essas potências, via de regra, são divindades menores, associadas a setores da realidade e vinculadas aos fenômenos, altamente determinantes para a fertilidade dos campos e rebanhos, que são a principal preocupação desse tipo religioso. A religião secundária pode se desenrolar da primária, e virá na medida em que a classe sacerdotal se especializar especulativamente, fixar e autorizar por Texto Sagrado uma cosmologia oficial, sempre dividenda da complexibilização da liturgia e da vida do Templo, tão fortamente aliançada com o Palácio.
Isso significa que os símbolos universais originários, muito generalizantes, passaram por um processo de descompactação e de especialização, desmembrando-se num sistema lógico, ordenado ao redor de um núcleo mais claro — vai-se do Mito para a Mitologia e, então, para a Teologia. O Texto passa a ocupar o lugar central no culto e se impõe sobre as consciências de uma maneira de todo diversa da antiga modalidade ritual camponesa, de fertilidade. Isso se dá pelo deslizamento da sociedade cosmológica, que quer corresponder ao mundo fenomenal e espelhar objetivamente um modelo celeste, para a sociedade axial, que identifica os símbolos universais e cósmicos com a experiência humana interior e com o processo individual de progresso moral através de práticas espirituais e de retidão, baseada na ideia de Lei. Nos casos do desenvolvimento de uma Teologia, como entre os gregos e hebreus, a Lei é Lei Divina, dispensada desde o Alto, e nas circunstâncias cosmoteístas a Lei é arbítrio do rei e do aparato do Estado, que a fazem conforme critérios menos específicos, de maneira que a vida moral se mantém parcialmente dissociada da economia cúltica e da referência direta ao Divino. O Egito é um caso muito interessante a ser observado: nele imperou por milênios um regime religioso cosmoteísta sem que a experiência religiosa tenha sido suficientemente moralizada:
Parece que no Egito não houve tentativa para sistematizar a lei num código organizado a partir de princípios dos quais se deduziriam as regras […]… as decisões jurídicas emanam dos homens e não são ditadas pelos deuses. Reciprocamente, é possível que o rei, sendo um ser divino, formule uma lei; mas nem por isso a lei em si será divina.— Rémi Brague, A Lei de Deus
A ma’at, ou a sabedoria divina infundida nos homens, que lhes dava consciência moral, nunca aparece, entre os egípcios, como uma legislação ou um direito codificado, e atua independentemente do Templo — o homem individual será julgado por sua própria consciência, a ma’at, diante de Anúbis, após a morte. Similarmente, entre os babilônicos o chamado “Código de Hamurabi” não é, na realidade, um código, como se fosse a matriz lógica, porque sistematizada, e estruturante do direito mesopotâmico. Observa-se a existência de muitos outros “códigos” concorrentes, e até contraditórios, porque esses documentos não foram mais do que “antologias de decisões jurídicas exemplares” (Brague, p. 32). A conclusão é que o religioso e o político, no Crescente, não estavam fundidos, mas justapostos, e atuavam paralelamente, às vezes contraditoriamente. Isso se deve ao fato de a religião no Egito, na Mesopotâmia e em grandes partes do Mundo Antigo não ter chegado a evoluir completamente da condição primária, tornando-se necessariamente mitológica, mas não propriamente teológica.
Repito que apenas entre os gregos e os judeus, no contexto que estudamos, há a ideia da Lei Divina, não humana. O Divino, aqui, está ligado diretamente à Lei, não mais a uma pessoa divinizada que “faça a lei”. Na Grécia, a Lei é a expressão das estruturas profundas do Cosmos, podendo ser conhecida em seus termos inflexíveis através da especulação filosófica — o entendimento a seu respeito é alterado não mais organicamente, por inflação (que é o modus operandi do cosmoteísmo), mas a partir de regras lógicas e operações racionais. Em Israel, a Lei é uma emanação direta do Senhor Deus e é conhecida revelacionalmente — o entendimento a seu respeito é desvelado pela sua atualização segundo as demandas da experiência histórica do Povo. Em ambos os casos, ela é externa ao homem e está acima de todos os poderes civis. Assim, os filósofos gregos podem ser considerados teólogos, tal como os sábios hebreus. Não é sem razão que Assmann equipara os gênios de Parmênides e de Moisés e põe a Ciência como dividenda da Distinção Parmenidiana, enquanto a Revelação é vista nos termos da Distinção Mosaica.
Ambos são dotados de uma nova capacidade de distinção, negação e exclusão. Desde que surgiu a ciência — ou seja, um conhecimento que se baseia na distinção entre verdadeiro e falso, se diferencia do erro e se submete ao princípio da crítica -, existe também a diferença entre mito e logos, sabedoria e conhecimento, que corresponde exatamente à distinção entre paganismo e religião. — Assmann, O Preço do Monoteísmo
A Distinção Parmenidiana, todavia, não ocorre sem antes ter impelido os filósofos gregos para fora da religião pública, permitindo-lhes a sua crescente intelectualização desde a Ágora — foi filosófica a compreensão da Lei Divina. Essa circunstância conservou a religião arcaica dentro de seus limites cosmoteístas. A Distinção Mosaica, por sua vez, aconteceu desde dentro da religião, sendo a própria fundação da religião hebreia e permitindo que a especulação teológica se desenvolvesse nos recintos do Santuário. Dessa maneira, desdobramentos análogos aos da filosofia podem ser encontrados transcorrendo dentro da religião, que progredirá a partir do insight mosaico, que é a ideia de Revelação, num crescente afunilamento, ou esclarecimento, doutrinário.
Outras religiões antigas progrediram do estágio primário, mais naturalista, para o estágio secundário, mais abstrato e burocrático, mas todas elas realizaram esse empreendimento de maneira sobremodo orgânica, dentro dos limites do cosmoteísmo que, como dissemos, é inflacionário: sem respeitar um núcleo lógico suficientemente esclarecido, a fé gentílica vai absorvendo, por equivalência funcional, outros panteões no seu próprio, sempre visando a ampliação do poder político e das oportunidades econômicas, até serem perdidas as necessárias raízes regionais das divindades em vista de um universalismo de características panteísticas, mais formalista, e, consequente, um tipo de monoteísmo cosmológico — porque as equivalências entre as divindades fomentam a intuição de serem elas, ao fim e ao cabo, emanações de uma divindade única, de mil nomes. Essa fica sendo uma religião política, oficial, útil para impérios, como o Romano, mas deixa de suprir as demandas populares, sobremodo vinculadas aos meandros da agricultura e do pastoreio e da complexa vida da Pequena Tradição — esse espaço será preenchido, no Mundo Antigo, pelas chamadas Religiões de Mistério, mas esse é um outro assunto.
O Monoteísmo Revelado é, defende Assmann, revolucionário: a ideia de Revelação se impõe desde o começo, de pronto indo contra os sentimentos populares e as inclinações da religião vigente, e vai assumindo vulto e forma na medida em que a sua solicitação inflexível e unilateral for sendo bem-sucedida. Por isso, é chamado também de Monoteísmo Político, já que aparece com o Profeta, desde a Tenda da Congregação. O principal conteúdo da ideia de Revelação é o da supremacia exclusiva de Javé, Criador do Mundo e fonte da Lei. A forma primária da religião conhecida pelos hebreus em Canaã, e daqueles que continuaram em Canaã quando Jacó e seus filhos migraram para o Egito, era basicamente o cosmoteísmo cananeu — a grande luta dos hebreus do Êxodo e da Revelação quando se assentaram na Eretz, na Reconquista. Ela foi combatida desde o começo pelo tônus da Distinção Mosaica, cuja consolidação no complexo Templo-Palácio representou a virada para o tipo secundário, que é a religião israelita clássica. Todavia, os cultos populares às deusas e deuses da fertilidade, na medida em que Israel se tornou agrícola, nunca cessaram de todo, conservando um estrato religioso noturno, formalmente ilegal, e cosmológico, sob o estrato diurno, olimpiano, assentado em Sião. Essa tensão, vigente desde o Êxodo, foi um fator fundamental para o desenvolvimento da autoconsciência religiosa judaica e do próprio conteúdo da Bíblia Hebraica, que carrega traços desse percurso ascendente, até a culminação na literatura deuteronômica, nos profetas e na Sabedoria.
Nos alvores do Antigo Testamento, na linha dos escritos sacerdotais do Gênesis, sobretudo, temos evidências da fé hebreia auroral, cativa do insight revelacional, mas pouco esclarecida ou ocupada com o lugar das divindades estrangeiras. Nesse ponto, não há discussões aprofundadas sobre a natureza das outras divindades, que são, via de regra, ignoradas, e quando aparecem no relato, vêm sob formas despersonalizadas, enquanto potências cósmicas e cosmogônicas impessoais. Não há, nesse ponto, uma negação direta, apenas indireta, da existência de outros deuses, porque eles são considerados deuses de outros povos e, portanto, proibidos — a demanda de Javé é por exclusividade, sendo Ele maior do que todos os deuses, quer existam, quer não existam. De todo o modo, proibidos, já que “dos outros”, e nem sequer merecendo ser nomeados. A exclusividade de Javé é a base do senso de exclusividade de Israel, que se afirma, dentre outros meios, pela rejeição e separação do “resto”.
Mas, nesse primeiro momento, a percepção de quem, de fato, o Senhor é, ainda não estava suficientemente amadurecida, o que significa que algumas das antigas divindades pagãs, mormente as divindades cosmogônicas, aparecerão sob a forma de monstros cósmicos que, comandados por Deus, fazem parte da infraestrutura da Criação e dominam certos reinos elementais, cumprindo papéis cosmológicos determinados. Algumas delas, pelos lugares que ocuparam nas narrativas e no imaginário, sobreviveram ao teste do tempo e ao desenvolvimento da Teologia, ganhando lugares na Escatologia — naturalmente, nesse caso, como símbolos, já que são um banquete para a literatura apocalíptica.
É possível identificar reminiscências dessa etapa transicional nas Escrituras. Existem fragmentos, e até textos bem completos, que apresentam elementos da cosmologia arcaica e dão pistas claras de como teria sido uma antiquíssima versão da cosmogonia hebreia, com sua ênfase na soberania de Javé sobre os deuses do Mundo Antigo, que aparecem sob a forma de monstruosidades cósmicas pré-criacionais — antes de serem derpersonalizadas e demitificadas, ou vertidas em criaturas de Deus. Existe a possibilidade da precedência histórica do Gênesis, em termos de narrativa cosmogônica, mas o imaginário popular cananita, mesopotâmico e egípcio, imiscuído na mentalidade profunda do israelita dos primeiros tempos, certamente o teria vertido em mitos outros, arraigados no estágio religioso primário. Outra possibilidade, que eu considero mais interessante, é a da existência ancestral entre os semitas, desde antes dos abraâmicos e de sua parentela, de motivos cananeus e caldaicos, cotejados em mitos cosmogônicos envolvendo El, que foram levados pelos hebreus ao Egito e conservados em suas tradições até o Êxodo, sendo inicialmente combatidos por Moisés, mas que, reencontrados em Canaã, sobreviveram ainda por milênios em Israel. O fato é que os escritos sacerdotais da Torá, diversos da literatura deuteronômica, ainda trabalham Javé (Yahwe-El, “El faz ser”) em termos menos esclarecidos e menos abstratos, sugerindo desenvolvimentos ulteriores na autoconsciência israelita acerca da sua ideia de Revelação.
O método que utilizei para evidenciar as supracitadas reminiscências considera apenas textos que apresentam os traços da antiga cosmogonia de maneira indireta, poética ou profética, sem a intenção explícita do autor em narrar eventos míticos, que são utilizados como figuras, como símbolos universais ainda apelativos e facilmente compreendidos pelos primeiros leitores. Isso sugere que o uso feito pelo autor foi natural, como se os elementos míticos pertencessem de maneira orgânica ao seu imaginário, mesmo quando já intelectualizados. Um caso notável está no uso discreto de alguns nomes monstruosos por Habacuque, no versículo oito do terceiro capítulo:
Ou Te enfureceste contra rios [Naharim — בַּנְּהָרִים֙], Senhor?
Ou contra o mar [Yam — הֲֽיָם־] foi a tua arremetida?
Naharim, os Rios, e Yam, o Mar, aparecem na Escritura como monstros cósmicos abatidos por Javé, mais especificamente em Salmos 74:13 e Jó 7:12:
Tu dividiste o mar [Yam] pela tua força; esmigalhaste a cabeça dos monstros marinhos [Taninim] sobre as águas. — Sl 74:13
Sou eu o mar [Yam], ou um monstro marinho [Taninim], para que me ponhas uma guarda? — Jó 7:12
Segundo Robert Graves (Mitologia Hebraica), fragmentos sugestivos da antiga cosmologia, do tempo da religião primária, e distintos do texto final do Gênesis, podem ser encontrados espalhados ao longo do Antigo Testamento, e a crença inicial de que Javé havia derrotado divindades primevas, ligadas à cosmologia anterior, é facilmente atestável. Se em Gênesis 1 encontramos Tiamat, a Rainha do Abismo, ou a deusa draconiana da cosmogonia mesopotâmica, sob a forma impessoal e neutralizada do Abismo, Tehom, noutros versículos somos apresentados ao que parece ser uma terrível guerra contra os elementos e os monstros do Caos. A tradição nos dirá que antes da Criação, quando a Terra era Caos (Tohu) e Vazio (Bohu) e quando o Senhor havia alicerçado a Terra sobre algumas montanhas, que afundou no Oceano Primevo como pilares, Tehom ameaçou erguer suas águas e submergir o Mundo no Nada. Com ventos e raios, o Senhor regiu e açoitou o Abismo. Com o poder da Sua voz, enfim, apavorou as águas, que voltaram ao Vazio. Isso está bem descrito no Salmo 18:7–15 e no Salmo 104:6–9.
Nesse mesmo conflito cosmogônico do Senhor com Tehom, O veremos enfrentando Leviatã, cria do Abismo, rachando o seu crânio com uma pancada, quebrando as cabeças de outros dragões (Taninim) do Mundo Antigo — Salmo 74:13–14 — e despedaçando Rahab, um segundo grande monstro marinho — Isaías 51:9–10; Naum 1:4 (“Ele repreende ao mar [Yam], e o faz secar, e esgota todos os rios [Nahar]”). Nesse contexto, encontramos o Abismo, Tehom (Thwm), na figura de um tipo de divindade do Caos, que Graves demonstra ser o mesmo que Tohu (Thw), que no plural será Tehomot (Thwmwt). Da mesma lógica, Bohu se torna Behom, que vira Behemot. Laviatã, no reino de Tohu/Tehom, Caos/Oceano (as Águas Inferiores e femininas), é uma manifestação monstruosa da totalidade das potências oceânicas, Tehemot; Behemot, no reino de Bohu/Behom, Vazio/Terra, é uma manifestação monstruosa da totalidade das potências terrestres. Às Águas Superiores (masculinas) podemos chamar de Efes, a Extremidade e o Nada, ou os Confins da Terra (Salmos 2:8). Efes tem por correlato Apsu, consorte de Tiamat, e aparece de forma menos abstrata em Isaías 40:7, porque ali o Senhor considera todas as nações da Terra como “Efes e Tohu”. O próprio Isaías, no capítulo trinta e quatro, versículos onze e doze, se referiu a esses nomes a partir de seus sentidos mitológicos:
Ele [Deus] estenderá sobre a cidade a linha de Tohu, e as pedras de Bohu… E todos os seus príncipes serão Efes…
Quanto ao uso de Águas Inferiores e Águas Superiores, Bin Gorion apresenta uma lenda suficientemente clara:
Mas por que as águas foram separadas? Porque as águas superiores são as águas masculinas enquanto as águas inferiores são as femininas, e, se elas se juntassem, destruiriam o mundo. […] Depois Deus falou: Haja uma muralha! E ele separou as águas superiores das águas inferiores. Não houvesse a muralha, o mundo seria tragado pelas águas, as superiores e as inferiores. […] Mas antes ainda que as águas se juntassem, já estavam criadas na profundezas e os abismos, e a terra balançava e oscilava sobre os abismos como um navio no mar. […] … quando o Senhor quer abençoar a terra com frutos e dar alimento às suas criaturas, Ele abre as boas câmaras do céu e embebe a terra com a melhor água, que é a água masculina.
No supracitado Salmo 74:13 lemos sobre Deus esmagando a cabeça dos Taninim. No Gênesis 1:21 eles são-nos apresentados: “E criou Deus os monstros marinhos [Taninim], os grandes”— trad. de Enih Gil’ead. Segundo os comentários da edição da Torá da editora Sêfer, o fato de as únicas criaturas nomeadas particularmente no Gênesis 1 serem os Taninim é evidência de sua singularidade e magnanimidade no quadro geral da Criação. São, de fato, dragões do Tohu, e a profecia de Ezequiel contra o Egito (29:3) descreve o reino do Nilo como “Taninim”, “Grande Dragão”. O progresso no desenvolvimento da ideia de Revelação e da exclusividade de Javé conduziu, e isso está bastante claro em Gênesis 1 e no livro de Jó, tanto a uma despersonalização de algumas dessas entidades, como o Tehom, sobre o que já falamos, quanto a uma “domesticação” de outras, como os Taninim, vistos, então, enquanto criação de Deus no Quinto Dia, e Leviatã, criatura do Senhor, que Ele rege e com a qual Ele folga.
Um versículo especialmente enigmático é o de Jó 26:13, que aparece junto de uma exposição similar à dos Salmos 18 e 104: “Pelo seu Espírito ornou os céus; a sua mão formou a serpente enroscadiça.” Filo de Biblos (64–141 d.C.) nos é útil aqui: segundo ele, o mito fenício da Origem principa com o Caos, ou as Águas Inferiores, sofrendo a ação do Vento, considerado Masculino. Graves o aproxima de uma antiga tradição hebreia, que afirma as Águas Inferiores, chamadas aqui de Baou, foram emprenhadas por esse Vento — Baou seria, então, a esposa do Deus do Vento, a Serpente Macho, e identificável com a grega Nix, ou Noite, anteriormente chamada Eurínome. O mito pelasgo da Origem apresenta Eurínome sozinha, no Caos, tomando nas mãos o Vento Norte e, efregando-o, fazendo dele a Serpente Ofíon, ou Bóreas. Aquecida a Serpente por Eurínome, coabitaram e esta ficou emprenhada. Feita pomba, então, pôs o Ovo Universal, chocado por Ofíon, que se enrolou ao redor dele. Como a Serpente tentou assumir para si o mérito da Criação do Mundo, porque chocou o Ovo, teve sua cabeça esmagada por Eurínome, que a aprisionou junto dos Pilares da Terra.
Essa pomba na qual Eurínome se transformou é conhecida pelos sumérios pelo nome de Iahu, a “Pomba Exaltada”. Para Graves, Iahu está na raiz etimológica de Javé, que envia o Seu Espírito, o Seu Vento, sob forma de Pomba para pairar sobre o Oceano. Nos comentários à Torá (Edit. Sêfer), quando Gênesis 1:2 diz que “o espírito de Deus se movia”, se quer dizer que o Trono Divino se deslocava sobre os mares por ordem de Deus e, por meio do Rúach, do Vento exalado pela boca do Senhor sobre a face das águas, se estava vitalizando e fertilizando a matéria inanimada. Uma tradução aramaica diz: “… e o espírito de misericórdia procedente de Deus soprava sobre a face das águas.”
Após ter punido Ofíon, Eurínome concluiu a Criação com o estabelecimento dos Sete Poderes Planetários, dando a cada um deles, como guardiões, um titã e uma titânide: Teia e Hipérion para o Sol; Febe e Atlas para a Lua; Dione e Créos para Marte; Métis e Ceo para Mercúrio; Têmis e Eurimedonte para Júpiter; Tétis e Oceano para Vênus; Reia e Cronos para Saturno. Essa parte do mito tem suas contrapartes na Babilônia e na Palestina, onde estavam estabelecidos deuses que governavam os sete dias da semana planetária. Diversamente dos demais povos palestinianos, todavia, os hebreus atribuíram as potestades a Javé, feito Deus Transcendente e Aquele que absorveu em Si todos os poderes da semana, simbolizados pelo Candelabro. A identificação do Candelabro com os Sete Poderes é evidente em Zacarias e Josefo. Sobre o aumento do domínio de Javé falaremos mais abaixo. Agora convém observar a antiquíssima associação de Javé com o Vento Norte e com Ofíon, sugerida pela Serpente de Bronze (Números 21:8–9) e pela memória conservada em um midrash tardio ligado a Êxodo 4:24, segundo o qual o ataque de Deus a Moisés no Deserto deu-se pela transformação de Javé em uma imensa serpente. Note que o Vento Norte, deslizando sobre as Águas Primordiais e simbolizado por Ofíon, não é equivalente na cosmogonia hebreia antiga ao Tehom e à Leviatã, que simbolizam as Águas Inferiores, o princípio do Caos, e são a matriz da associação de Samael, ou Lúcifer, com a Serpente do Éden.
Em geral, podemos observar na exposição acima três movimentos sucessivos: o primeiro, à luz do que fizeram os gregos, por exemplo, com as religiões neolíticas e da Idade do Bronze que encontraram no Mediterrâneo, é a transformação das divindades da religião anterior em titãs e demônios cósmicos, derrotados pela nova divindade, que faz uso de seus pedaços como matéria-prima cosmogônica, visando a estruturação do Mundo; o segundo, pois, é a inclusão de alguns desses monstros dentro da cosmologia, como auxiliares da divindade na regência do Mundo, porque responsáveis por certos setores dos reinos elementais; o terceiro é, enfim, a absorção em Javé de todas as potências cósmicas. Da segunda tendência, vemos Leviatã não mais como inimigo de Deus, mas como regente das Águas Inferiores; a colossal ave Ziz (Salmos 1:11 e 80:14 [análoga a Ruch, o galo sagrado iraniao]) como reguladora do fluxo dos ventos e das nuvens (um dos seus pés está firmado numa barbatana de Leviatã e sua cabeça chega ao Trono de Deus, e controla o Vento Sul ao abrir as asas [aqui o Ziz se assemelha a Iahu/Ofíon]); e o gigantesco Reem (Números 23:22), touro similar a Behemot, removedor de montanhas, transbordador de lagos e de lamaçais, gerador de tremores e devastador de florestas. Mas há um tipo de criatura titânica, não criada por Deus e nascida após o Sétimo Dia, que foi conservada no relato de Gênesis e que assume algumas características das antigas monstruosidades primevas, rebeldes contra o Senhor: os Nephilim.
Encontramos os Nephilim inicialmente em Gênesis 6:4, associados à geração do Dilúvio e, portanto, listados entre os principais motivos da Grande Inundação, que é uma repetição da cosmogonia. Filhos do intercurso sexual entre anjos caídos e mulheres da estirpe de Caim, não representam potências e monstros cósmicos submetidos a Deus — são, portanto, diferentes dos Dragões Marinhos do Quinto Dia, obras do Senhor. Simbolizam, portanto, o Caos descontrolado, uma manifestação tardia da rebelião de Tehom contra Deus. O nome “Nephilim” pode significar “aborto”, de nefelen (Jó 3:16), sugerindo a sua condição anômala, não pertencente ao Mundo Visível, ou ao Mundo dos Homens — abortos do Abismo, como Tiamat paria incontáveis monstruosidades na sua luta contra Marduk. No acádio, napalu se refere aos atos de destruir e de confundir, e a raiz hebraica nfl significa “cair”. Destruidores das obras de Deus, eram também “os caídos”. Outra opção etimológica, mais impressionante, é de que “Nephilim” venha do arameu “nafala”, designativo da constelação de Órion (Jó 9:9; 38:31; Is 13:10).
Isso é relevante, porque Órion, no mito grego, foi um gigante filho de Poseidon, por isso habilitado a andar sobre as águas. Filho do Abismo, ou do Oceano, Órion se assemelha ao que dissemos a respeito dos Nephilim. Órion também era um excelente caçador e, cheio de insolência e arrogância, desejou caçar todas as criaturas do Mundo. Nesse sentido, ele também é como os Nephilim, homicidas imparáveis, além de carregar qualidades de Ninrode, o Caçador, arquiteto de Babel e grande inimigo de Deus — intentou erguer a Torre para assaltar o Céu e destronar o Senhor. Não devemos esquecer de que Órion era um titã, filho de Gaia, irmã de Nix, e, como todos os titãs, pode ser descrito como portador de “enorée hypéroplos” (exuberante virilidade) e da “ankylometai”, astúcia, aspectos que, somados, incorrem em “hybris” e “atasthalíe”, orgulho e violência. Natureza também atribuída aos gigantes do mito nórdico, como veremos.
Diz-se numa parte que Loki, uma divindade pré-odiniana, era filho do gigante cosmogônico Ymir, irmão de Kari, o ar, de Hler, a água, e de Ran, a deusa do mar — todas divindades ligadas ao Caos; se diz noutra parte que Loki, na verdade, era filho do gigante Fárbauti, identificado com Bergelmir, o único sobrevivente do dilúvio, e filho de Laufey (ilha de folhagens), ou Nal (embarcação), sua mãe. O deus nórdico da trapaça, um símile do satã medieval, era casado com a giganta Angrboda (arauto da angústia), de Jotunheim, e pai dos monstros Hel, deusa da morte, Jormungandr, a Serpente de Midgard, e do lobo Fenrir. Todos, portanto, constelados miticamente com o Oceano e o Caos/Leviatã/Serpente e com a violência e a astúcia desmedidas.
Havia naqueles dias gigantes na terra; e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens e delas geraram filhos; estes eram os valentes que houve na antiguidade, os homens de fama…
… E disse o Senhor: Destruirei o homem que criei de sobre a face da terra, desde o homem até ao animal, até ao réptil, e até à ave dos céus; porque me arrependo de os haver feito. — Gênesis 6:4 e 7
Os titãs, que entre os gregos eram divindades pelasgas demonizadas e contras as quais bateram-se Zeus e os olimpianos, aprisionando-as no Abismo, eram inicialmente regentes das potências cósmicas, ou reinos planetários. Isso está dado em Órion, que é também o nome da sua constelação. A etimologia de Nephilim ter relações com Órion é significativo e testemunha o tempo, já aludido, no qual a consciência hebreia ainda se apegava à função cosmológica dos monstros do Mundo Antigo. De fato, o papel dos Nephilim é tão aproximado daquele dos titãs gregos, que é possível encontrar em Ezequiel 32:21 e 27 a ideia de que eles, Os Caídos, estejam eternamente aprisionados no Submundo — “os poderosos que caíram dos incircuncisos, os quais desceram ao inferno com as suas armas de guerra”. Uma última vinculação dos Nephilim ao Abismo, à Serpente, e que os descreve com qualidades répteis, é-nos apresentada por Bin Gorion:
E os anjos seguiam com os olhos as filhas de Caim que andavam nuas, com as sobrancelhas pintadas e foram seduzidos por elas. Mas os anjos são na verdade chamas de fogo — quando se uniram com as filhas dos homens, os corpos delas não se queimaram? Não, pois quando caíram da altuera de sua santidade, tornaram-se iguais aos homens e tinham corpos terrenos. Deles nasceram mais tarde os gigantes, os quais geraram filhos e multiplicaram-se como os répteis: nasciam-lhes seis de cada vez. — As Lendas do Povo Judeu
Vê-se, aqui, uma introdução clara à demonologia. Esse parece ser, de fato, o passo subsequente ao da superação de Javé por sobre os monstros cosmológicos, transformados em elementos impessoais, em demônios aniquilados ou em criaturas de Deus, sob Seu comando, para terminarem como meros símbolos proféticos e escatológicos. Nesse ínterim, o Caos, que é um fator inegável da Criação, associado ao Pecado, o Não-Ser, é identificado diretamente com a Rebelião de Lúcifer, a Antiga Serpente, e com a sua Queda do Céu, após o conflito de seus partidários contra Deus e Suas hostes — clareza que ainda não aparece, por exemplo, no Livro de Jó, que apresenta o Opositor como uma espécie de trickster.
Deve-se ter em mente que a crença na existência de demônios, de espíritos malignos menores, existia entre os hebreus concomitantemente com a antiga cosmogonia. Nesse momento, os demônios ainda não eram compreendidos como anjos caídos, mas como ninhadas do Abismo, sem função estrutural na cosmologia, entidades rebeladas e desgarradas, semeadoras de violência bestial e causadoras de problemas e de desordens locais. Lilit, que o mito considera anterior a Eva, revoltou-se contra a ordem da Criação e contra a autoridade de Adão, profanou o nome de Deus e saiu no Éden, indo para a região do Mar Vermelho, uma terra repleta de demônios lascivos, com os quais ela teve mais de cem lilim, seus filhos demoníacos, por dia. Foi mãe de Asmodeu e de outros demônios terríveis. Lilit se tornou uma demônia ligada ao aborto e ao morticínio dos filhos dos homens, e a tradição atribui a ela a morte dos filhos de Jó. Sua vinculação à água, seguindo uma crença hebraica antiga de que a água atai demônios (donde o Mar Vermelho e o Egito jaziam repletos deles), alude à sua qualidade abismal, vinculada ao Tehom, mesmo tendo sido criatura de Deus.
Comumente se atribui “lilith” ao assírio-babilônico “lilitu”, que designa um demônio aquático ou um espírito do vento. Mas mais provavelmente vem de Lilake, da história de Gilgamesh achada numa tábua de 2 mil a.C., em Ur. Lilake seria uma demônia habitante de um salgueiro às margens do Eufrates, vertida no hebraico como “leil”, que quer dizer “noite”. Assim, no imaginário hebreu, Lilith passou a ser descrita como um monstro noturno, cheio de pelos — daí a suspeita de Salomão, segundo a lenda, a respeito da rainha de Sabá, similar a Lilith em função de suas pernas peludas. Lilith aparecerá no texto de Isaías 34:14–15 como habitante das ruínas do deserto de Edom, também repletas de sátiros, reem, cobras e outras feras e demônios. Entre os gregos, a sombra de Lilith é visível nas lâmias.
… que sai de uma cosmogonia/cosmologia com aspectos residuais da religião primária e culmina no mais alto nível de abstração, do Deus Totalmente Outro
Nesse sentido, os demônios no pensamento hebraico possuem características similares às dos daemons gregos, que são espíritos desgarrados, autônomos, que ignoram a Têmis, ou a Lei Divina, e agem anárquica e caoticamente, segundo os seus próprios interesses. São territoriais, ligados a lugares e reinos do Mundo e a setores da vida humana, como vemos também na demonologia hebraica, guardando reminiscências da religião primária, que os conserva naquilo que Harold Bloom chamou de “demoníaco” — o demônio vem numa manifestação selvagem, em frenesi meramente destrutivo e sanguinário. O termo “imundo”, associado ao tipo de espírito demoníaco que se apossava das pessoas no Novo Testamento, vem do grego “akatharton”, que significa misturado, ou fissurado. A descrição de Cristo do comportamento desse espírito após desalojado do endemoninhado revela intensa agonia, decorrente desse estilhaçamento interior, do vazio doloroso dessa entidade desgarrada. Essas características primevas são conservadas mesmo com o desenvolvimento teológico da questão e a corrente ideia de que esses demônios são anjos caídos.
Em termos de maior abragência cósmica e dos impactos mais amplos do Caos e do Pecado dentro da Criação, o papel dos monstros cosmogônicos foi substituído na consciência hebreia tardia, e sobretudo na consciência cristã, pelo ideia do Império de Satã, da Antiga Serpente, que guarda em si característica de Leviatã, mas é visto como Lúcifer, o Querubim que cobria a glória de Deus no Monte Santo. Criatura divina, se revoltou contra o Senhor e foi lançado à Terra junto de seus cúmplices. Todos os demônios, e o demoníaco supracitado, passaram a ser encontrados entre esses anjos caídos, mas eles, no coletivo de Império de Trevas, não expressam o demoníaco selvagem, mas o satânico e diabólico: uma ordem de imensa potência, altamente organizada e articulada, que investe, em horda, contra a Criação de Deus e contra o homem enquanto criatura — age sob a Anomia, em oposição à vontade do Senhor, dentro do titanismo e da ankylometai. Os deuses tutelares do Mundo Antigo, e não os espíritos menores, são todos vistos como demônios de alta patente, mobilizados pelo intento universal de depravar o homem através da idolatria e da imoralidade. Conservando atributos angelicais, esses diabos são responsáveis pela generalidade de aspectos do mundo humano — controlam, espiritualmente, reinos, regiões e cidades, e se especializam em tipos específicos de imoralidade. É dessa ideia que se desdobrará a escatologia e o vislumbre do Reino do Anticristo e da Grande Batalha apocalíptica contra o Senhor — uma evidência adicional de como o Satânico absorve as prerrogativas dos monstros cósmicos do Caos.
Quanto aos anjos, é convencional o entendimento de que eles, tendo sido destituídos os deuses gentílicos de seus pontos na regência do Cosmos, que haviam absorvido após a superação dos titãs, primeiros governantes sobre esses mesmos reinos, ocuparam muitos de seus lugares e de suas funções. A cosmologia hebraica apresentará anjos como Ventos e como guias do Sol e da Lua, como dispensadores da neve e guardadores dos mares e dos rios, e a Bíblia os apresentará como especializados em diversas funções, desde o louvor e a guarda da glória de Deus, até a guerra e o juízo e a transmissão de mensagens aos homens. Há sugestões de que alguns sejam também territoriais, guarnecendo reinos, regiões e pessoas. Nesse sentido, de fato se assemelham aos deuses gregos, que correspondem, cada qual, a determinados aspectos do Ser, sendo suas personalizações e conservando-se restritos aos seus âmbitos. Como manifestações simbólicas de aspectos do Ser, cada um manifesta uma parte do Todo, e todos estão devidamente articulados na Totalidade do Divino, no Ouranós, que é o Olimpo, e que na religião grega passou a ser sinônimo do próprio Zeus. Todavia, diferentemente do cosmoteísmo grego, os anjos não são meras personificações do Ser e faces do Divino, como suas emanações, mas Suas criaturas, dele distintas ontologicamente, o que os coloca numa posição relativa em termos de regência cósmica, porque, ao fim e ao cabo, não sendo Deus, mas criaturas de Deus, o Criador não tem necessidade deles para comandar o Mundo, e de fato é Ele quem comanda todas as coisas, na medida em que também comanda os anjos.
Esse é, pois, o ápice do desenvolvimento da ideia de Revelação, pautada no monoteísmo revelacional, que progrediu na direção de sua própria geometria interna, rumo à sempre mais clara distinção entre Criador e criatura e à ampliação lógica do Seu Poder ao cúmulo da onipotência. Nesse argumento não há qualquer relativização da Verdade na Escritura e nenhuma pitada de liberalismo teológico. O que se tem é a descrição das progressão da Revelação dentro de si mesma, enquanto expressão do desenvolvimento da autoconsciência hebreia ao longo dos milênios sob a ideia de Revelação, que sai de uma cosmogonia/cosmologia com aspectos residuais da religião primária e culmina, conforme o que jazia incipiente em seu gérmen desde o começo, no mais alto nível de abstração, do Deus Totalmente Outro, que é quando a mente humana, dentro da religião e divinamente instruída, chega ao zênite que apenas a filosofia também logrou alcançar, e ultrapassa a própria filosofia, superando-a de fato, quando desde o começo, por partir de além do Mundo, já a superava de direito.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) publicado em 18 de maio de 2023.