Jesus e a Samaritana no Jardim de Deus
sobre simbolismo hebraico
Quando Jesus, indo à Galileia, passou pela Samaria, decidiu descansar junto ao Poço de Jacó enquanto os discípulos procuravam algo para almoçarem. Nesse intervalo, foi ao poço uma mulher samaritana, como sempre ia, talvez buscando água para preparar a refeição para ela e para o homem com quem se juntara sem matrimônio, um sexto companheiro após cinco maridos. Contudo, nesse dia havia alguém diferente junto ao poço, logo reconhecido por ela como judeu. Estavam sós. Ela o questiona, visto ser um homem judeu se dirigindo a uma mulher samaritana. Jesus observa: se soubesse quem lhe estava pedindo água, ela é quem o pediria, mas água viva. Aqui entra um dos pontos mais impressionantes e menos compreendidos desse evento. A mulher samaritana sabia muito bem o que Jesus estava sugerindo com “água viva”, e é por isso que pergunta se Ele a tem consigo, pois não dispunha de meios de retirar água do fundo do poço — seria ele, por acaso, maior que Jacó?!
Em Gênesis 29:10, Jacó removeu a pedra que estava obstruindo o acesso dos rebanhos da família de Raquel às águas. Segundo Michel Remaud (Evangelho e Tradição Rabínica), há toda uma tradição agádica ao redor desse relato. Uma versão afirma que Jacó removeu a pedra com um só braço, enquanto outra descreve o ato como sendo da maior facilidade: Jacó retirou a pedra como quem tira a tampa do gargalo de uma garrafa — esse é o midrash do Gênesis Rabba sobre a passagem. Assim que Jacó retirou a pedra, as águas subiram por conta própria e não cessaram de jorrar por vinte anos, conforme o Targum Neofiti:
Quando nosso pai Jacó levantou a pedra de cima da boca do poço, o poço pôs-se a transbordar e subiu em sua presença, e continuou a transbordar durante vinte anos, durante todo o tempo em que ele permaneceu em Harran.
Se Jesus, sem jarro ou qualquer outro instrumento para a coleta da água no fundo do poço, pretendia dar “água viva” à mulher samaritana, talvez fosse Ele como Jacó: capaz de fazê-las subir milagrosamente. Para pegar água sem corda nem balde é preciso ser Jacó! A água viva seria, para a mulher, água corrente, água milagrosa — uma água que mata a sede para sempre! Veja bem: sob Jacó, as águas correram durante 20 anos, tempo de sua morada no local, mas sob Jesus a água correrá eternamente. Contudo, para a mulher ter acesso a essa água, ela precisaria resolver dois tipos de adultério: o espiritual após o sexual.
O contexto parece sugerir que a mulher identificou na presença de Jesus e em Sua oferta de água uma recapitulação da história de Jacó com Raquel, que antecipou o casamento. Naturalmente ela era uma mulher, por assim dizer, “aberta”, e pareceu disponível para alguém maior do que Jacó. Jesus de imediato “quebra o seu barato”: antes de receber a água viva, busque teu marido, ou melhor, aquele com quem vives, que não é marido, não como o foram os cinco anteriores. Foi nesse ponto que a mulher, reconhecendo o entendimento sobrenatural do estrangeiro, reconheceu-o como profeta, de pronto o questionando sobre a adoração correta. Cristo a responde, com um ar de mistério, que não tardaria até que viesse o tempo no qual o Pai poderia ser adorado em qualquer parte, em espírito e em verdade. Já suspeitando de algo, pois diante de alguém como ou maior do que Jacó e também profeta, a mulher fala a respeito da vinda do Messias, ao que Jesus corresponde: Eu sou o Messias.
Em termos gestálticos, de composição simbólica, o cenário aqui posto parece uma recapitulação redentiva da sedução de Eva. Intentando ser como Deus, dotada de imortalidade autônoma e de todo o conhecimento, Eva foi tentada pela Serpente macho junto à Árvore. Ali e contra o Criador, Eva cometeu adultério espiritual, degenerativo também para o seu corpo. Adão, que deveria tê-la protegido da Serpente macho e que era o guardador por excelência do Jardim e da Árvore da Vida, cedeu e coparticipou do adultério espiritual. No lugar da figura da Árvore da Vida (da qual o Homem foi separado após seu adultério) está a fonte de Água Viva, que é o Cristo, e no lugar do nascedouro da Morte, da temporalidade passageira e degradante, da Árvore do Conhecimento, está o poço de “águas mortas”, daquela água que dá sede e que lembra ao homem de sua fragilidade e de sua mortalidade. Jesus Cristo, o Segundo Adão, é quem inicia o diálogo, tal como a Falsa Estrela da Manhã, a Estrela de Absinto, o iniciou no Éden. Mas Cristo oferece redenção por meio d’Ele, Deus que é único digno de louvor. Por isso, para chegar à Água Viva, à relação espiritualmente reta diante de Deus, a mulher deveria atentar para sua condição de adultério na carne, pois partícipe de coabitação imprópria, e também no espírito, já que praticante de culto ilegítimo.
Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 21 de novembro de 2021.