Liberdade de Pecar?
Uma breve elaboração
A liberdade para o pecado não é uma necessidade para a conformação criatural do homem. Quero dizer: poder pecar não é uma implicação necessária para a manifestação plena da natureza humana, como alguns parecem sugerir.
Uma criatura é verdadeiramente livre quando encontra as condições necessárias para a realização, em ato, de sua potencialidade — uma ave tropical engaiolada no Alasca está desprovida das melhores circunstâncias para a atualização, ou a atuação mais completa de suas possibilidades intrínsecas. Isto é assim, pois todo o ser dotado de alma sensível é segundo a manifestação de uma série de desempenhos ou comportamentos que correspondem ao seu modo próprio, ou apropriado, de ser. O ser humano é mais homem, em termos da proporção entre potência e ato, na medida em que amadurece e age dentro de circunstâncias ideais. Sendo espírito, a variedade dos seus desempenhos chega às raias do incalculável, porque é racional e autoconsciente. O pecado não implica em um acréscimo de desempenhos dentre os inabarcáveis de sua criaturalidade sã, mas apenas um decaimento ou um empobrecimento em desempenhos já existentes, dirigidos agora de maneira idólatra, egoística e perversa, uma vez desviados de seu objeto último, que é também sua Fonte, a saber: o Eterno Deus, para os relativos e imanentes sensíveis (O Inconsciente Espiritual, Larchet).
… na Eternidade o homem será livre de uma maneira que tornará todas as liberdades terrestres como que alegrias pálidas…
Neste sentido, o pecado está mais para uma limitação da liberdade, um verdadeiro aprisionamento, do que para uma multiplicação da mesma. Uma criatura, repete-se, é verdadeiramente livre quando pode atuar de forma plena e florescer segundo a potencialidade de sua própria natureza. Livre agência, em um sentido substancial, não implica necessariamente a liberdade de escolha para o Mal, para aquilo que é alheio à natureza originária do homem. Deste ponto de vista, o Mal é um acidente, não a substância do homem. Todavia, a condição nascitural de alheamento de Deus é, de fato, hereditária, legado o Pecado como que ontogeneticamente e na variedade de uma espécie de mutação ou atrofia penumossomática, evidentemente em desacordo com o “programa” original da espécie. Por esse mesmo motivo, no Céu, na Eternidade, o homem será verdadeiramente livre, e de uma maneira que tornará todas as liberdades terrestres como que alegrias pálidas, porque lá ele será a perfeição de sua forma, de todo atualizado e atuante segundo o seu “programa” criatural arquetípico — o Cristo, a Imagem de Deus. A realização completa dos desempenhos da criatura humana, da sua potencialidade e virtualidade, é compatível com a “extensão” da Eternidade. Como a Eternidade não é de fato extensiva, quer-se dizer que tal realização se desvelará de uma só vez, de todo e completamente, embora e paradoxalmente em uma variedade que é desdobrável ad infinitum — a perspectiva do tempo qualitativo e sincrônico, o Tempo Forte, portanto, talvez nos ajude a conceber minimamente como isso poderá ser.
Se o homem, no Éden, pôde escolher pecar, isso deve ser devido a um fator diverso — a ele foi dada a liberdade de pecar não porque poder pecar era uma necessidade ontológica da hominidade, mas porque algo mais esteve ali implicado. O fundo do Mistério do Amor Divino, da sua dimensão e da maneira de Deus, que é Pessoa, buscar o homem seguirá, pois, ininteligível até o momento de nos vermos no seio beatífico do Paraíso, diante do Pai e aos pés do Trono.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 23 de outubro de 2024.