Literatura Sagrada e Novo Testamento
Explorações intempestivas e insights brutos
Como já dito aqui noutro tempo, a Literatura Sagrada, mesmo aquela das religiões tradicionais tardias na história humana, como o cristianismo e o seu Novo Testamento, conserva sempre e perceptivelmente algumas singularidades. Via de regra, o Mito, de suas qualidades orais às de escritura, narra atos exemplares de Criação ou de Fundação de Realidades — de como entidades primitivas, divindades e heróis estabeleceram, manifestaram ou positivaram aspectos do Ser, desde o Caos Primevo ou de uma matéria básica. Isso significa que a participação de cada personagem na criação de determinado aspecto da Realidade deve ser entendida dentro do tempo ou da natureza interna daquele aspecto da Realidade atualizado pela divindade ou pelo herói, e a própria divindade ou herói, dentro desse mito em específico, deverá ser visto como análogo ou intimamente relacionado à coisa criada — na medida em que estabelece e atualiza um novo reino dentro do Mundo, ele está nesse reino e, no contexto do seu mito, a ele pertence e é feito, em sentido simbólico, de algo de seu elemento, ao qual dispensa desde si ou do qual toma posse por méritos.
Por essa razão, não se pode encontrar facilmente uma cronologia literal, de sequência espaço-temporal bem delimitada, esclarecida e com sucessões evidentes, entre os diferentes mitos e atos fundadores. Isso se deve ao óbvio de que diferentes aspectos da cosmogonia, tal como os conhecemos desde figuras como Homero e Hesíodo, são coletâneas e arranjos, para o estabelecimento de algo consideravelmente novo e suficientemente universal, de muitas tradições e de diferentes mitos de diferentes povos, ainda que sejam povos habitantes de um mesmo núcleo civilizacional — ainda assim, dada a origem local de todos os mitos, associados quase sempre a lugares de culto e divindades locais para legitimar o culto e sua divindade e justificar os seus procedimentos e a sua relação com certos reinos ou setores da Vida, nem todos os homens que habitaram a bacia oriental do Mediterrâneo no contexto da civilização grega conheciam e entendiam todos os mitos que posteriormente se tornaram elementos da identidade regional mais ampla, a partir da obra dos poetas. Raramente, como se pode apreender do dito acima, os mitos de santuários e de comunidades agrícolas conheciam uma estrutura racional bem formada e atentavam às origens primeiríssimas do Cosmos, ou daquilo que havia antes do Mundo, na medida em que se ocupavam com a operação de setores importantes e bastante exclusivos da Vida — o trabalho da cosmogonia primeiríssima é obra posterior, uma necessidade tardia no trabalho de ordenamento racional e bem estruturado do Mito para fins cúlticos mais amplos e finalidades políticas maiores, donde Mythos + Logos, ou Mitologia. Contudo, mesmo em Hesíodo, que é Literatura Sagrada, se deve preservar o olhar não cronológico — as participações, por exemplo, de Zeus nas fundações de diferentes setores da Realidade não devem ser encaradas como pedaços sequenciais de uma história linear, porque nisso recairíamos em muitas complicações, mas como participações de Zeus no tempo interno de cada um desses aspectos do Ser e de sua positivação, assim como explicações de como Zeus adquiriu todos os seus domínios e foi sendo “formado” da “matéria” de diferentes reinos, sobre os quais angariou autoridade.
São os mitos, portanto, histórias ou justificações das diferentes divindades e de como elas expressam e regulam seus respectivos setores da Vida. Se há um ordenamento evidente, ou um tipo de sequência de eventos, seu motivo é muito mais ontológico ou metafísico do que cronológico, já que expressa o estabelecimento de realidades mais elementares primeiro e de realidades mais elevadas no fim — as variações na ordem dependerão da hierarquia das realidades na estrutura do Cosmos e da Vida, conforme o imaginário de cada povo (em Gênesis vemos uma disposição criacional, por exemplo, que reflete a arquitetura do Santuário e do Culto, assim como estabelece as purificações e a ordem dos alimentos, dos impuros aos puros — o que não implica a inexistência factual de eventos sincrônicos, uma vez que falamos de cada Dia como estabelecendo diferentes reinos, que são dotados de seu próprio tempo interno e de desdobramentos próprios, potencialmente concomitantes com outros Dias).
Aventuras heroicas como as de Jasão, ainda que inteiramente instaladas num mundo histórico e cultural já estabelecido, vêm para concatenar uma miríade de contos populares e de lendas e para explicar, mais especificamente, a singular existência de santuários de Atenas ao longo de toda a bacia do Mediterrâneo — articula, pois, o culto dos diferentes santuários atribuindo-lhes uma única causa, uma vez que o conhecimento objetivo e histórico das razões da existência generalizada dos mesmos haviam sido perdidos. Similarmente, as errâncias de Eneu pelo Egeu e pela Sicília dão a história da fundação dos templos de Afrodite, creditados a ele. Ainda assim, embora relatos não cosmogônicos primeiros, são como que explicações de causas segundas, mitos que elucidam a origem e que legitimam a existência de instituições e de realidades pertinentes à vida grega comum — a saber, dos múltiplos santuários de suas deusas, se seguirmos apenas os exemplos supracitados, e cada ato específico dos heróis dentro de suas aventuras é um ato de fundação em si mesmo, com simbolismo próprio, vida própria e seu próprio tempo interno (tanto é que muitas de suas personagens são humanizações de divindades [são símbolos complexos, ao fim e ao cabo]).
… os Doze Trabalhos são um Mito Maior que abarca os mitos e símbolos menores de cada Trabalho, e a vida de Hércules, vida de herói exemplar, é um Mito Maior que condensa os Doze Trabalhos e as demais histórias num Grande Símbolo…
O melhor exemplo disso está em Hércules e nos seus Doze Trabalhos, ordenados segundo a ordem litúrgica de iniciações de cultos heroicos, com seu núcleo primitivo no culto que Argos oferecia a Hera, donde Hércules — Servo de Hera. Dama das feras, é representada pelo seu servidor em suas primeiras façanhas, todas no interior do Peloponeso e envolvendo bestas selvagens, amalgamando motivos populares e folclóricos regionais dentro de um ‘hieros logos’ argiano, um relato sacerdotal ligado, primeiro, ao culto de Hera, e depois ao culto de Hércules propriamente dito. Ademais, cada um dos Doze Trabalhos está associado a um dos Doze Signos do Zodíaco (lembrando que o Zodíaco é Zodiakos Kyklos, o Círculo dos Animais) e cada um de seus atos é um mito fundacional específico, referente ao setor da Realidade que lhe é imanente e restrito ao seu tempo interno e à sua ontologia, ligado aos demais Trabalhos dentro de um Mito Maior que os estrutura num todo, ordenando os símbolos menores num Grande Símbolo, regido e constelado por um motivo mais abrangente — nesse caso, é o Tempo Cósmico completo, o Ano e o Grande Ano. Assim, os Doze Trabalhos são um Mito Maior que abarca os mitos e símbolos menores de cada Trabalho, e a vida de Hércules, vida de herói exemplar, é um Mito Maior que condensa os Doze Trabalhos e as demais histórias num Grande Símbolo, no qual jaz sintetizado o cerne ou o sentido básico de Hércules, de sua função sacral e do tipo de domínio que ele exerce na Realidade — o Grande Símbolo, dado o ordenamento “mitológico”, é visível e incipiente nas partículas ou os mitos menores, porque todos os atos hercúleos convergem, ao fim e ao cabo, ao mesmo eixo motivador, que deverá ser o da Morte e do Renascimento, conforme o mecanismo cósmico cíclico do Ano e do Grande Ano. Isso não invalida o proveito estético e hermético de cada um dos seus mitos menores enquanto fins em si mesmos, prenhes de potência significativa para diversos setores da Vida — porque é assim que a Literatura Sagrada é formada.
Com olhar semelhante podemos nos voltar agora ao Novo Testamento e ao Evangelho, porque Cristo, Deus Filho, uma vez Criador Encarnado, sempre que aparece agindo está atuando em sentido fundacional, estabelecendo / atualizando no Mundo uma nova ordem de coisas. Seus atos menores não deixam de serem partículas ou símbolos de Seus atos maiores, e podem ser entendidos, cada um deles, como mitos ou histórias fechadas, na medida em que são atos fundacionais, de maneira que possuem um tempo interno próprio, que é relativo à realidade ou aspecto do Ser ao qual apontam. Cada ato menor e cada ato maior está prenhe do Eterno e demarca o Tempo Forte dentro do Mundo — é, repete-se, história exemplar, o que não significa que também não tenha sido gestos literal e histórico. Em cada um deles, veja bem, o Grande Símbolo do Cristo está implicado, assim como cada um deles, conquanto fechado em si, é microescala e fragmento do Mito Maior, que é a Vida do Cristo e a Vida do Mundo, na medida em que Ele é Criador e Eschatos. É dessa maneira que o Evangelho é Literatura Sagrada, porque, embora haja uma preocupação cronológica na disposição dos relatos, nem sempre o imperativo cronológico predomina, sendo submetido, quando necessário escolher, ao imperativo ontológico ou cosmogônico (mitológico, já que se vale de um princípio estrutural radicado no Grande Símbolo, ou no Mito) — pois falamos do estabelecimento ou da atualização de novos aspectos da Realidade. Deve-se a isso a identificação, mesmo entre os Sinóticos, de certos desencontros na linha temporal (é que, embora a ordem dos fatos seja importante, e o evangelista Lucas o destaca, ela é secundária frente ao sentido teológico da Revelação do Eschatos).
… em se tratado de ‘hieros logos’, o Evangelho de Lucas é mitologia.
O mesmo Lucas valida a sua empresa evangelística na necessidade de ordenar os relatos e os fatos a respeito do Cristo e dos atos apostólicos. Isso significa, principalmente com relação ao Cristo, que houve uma precoce multiplicação de histórias de ações do Mestre, proliferando desde entre muitos de Seus seguidores, e já eclodiam fortes impressões a respeito d’Ele entre os gentios — essa é uma característica notável do Mito, impregnado de altíssimo teor emocional e de elevadíssimo apelo religioso, espiritual e intelectual, rapidamente revolverá as imaginações e as especulações. A obra de Lucas, numa escala diversa da do ‘hieros logos’ hercúleo, articulará diferentes tradições incipientes (tradição em sentido religioso [que não é tão dividenda assim de tempo quantitativo]), indo atrás das principais fontes oculares e testemunhas, e as arranjará num todo bem estruturado, segundo um princípio lógico, uma vocação e uma demanda — por isso, em se tratado de ‘hieros logos’, o Evangelho de Lucas é mitologia. Os outros dois Sinóticos, escritos diretamente por seguidores imediatos de Jesus, têm um teor mais profético, no sentido de que os escritos estão de antemão autorizados e validados pela Revelação da Verdade no Ato mesmo, vivido e recebido pelos autores, vertidos nos autógrafos. O Evangelho de João será a evidência máxima do sentido de Literatura Sagrada dos Evangelhos, porque ali a vida de Cristo é narrada, à semelhança de Marcos, segundo atos fundacionais tremendos, mas sob o escopo claríssimo do Grande Símbolo ou do Mito Maior: Jesus é apresentado desde os primeiros versos como o Criador e o Salvador, amalgamando cosmogonia e escatologia para dirigir o entendimento e esclarecer o sentido de cada um dos atos divinais enumerados no corpo subsequente do Texto, com uma preocupação ainda menor que os demais na precisão cronológica, donde o destaque inequívoco do caráter exemplar e mítico todos os atos narrados, que são mitos menores dentro do Mito Maior, do Cristo como o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim — como está bem colocado em todo o Apocalipse de João. Por essa razão, do exemplo magnânimo de João e da tradição ou escola joanina, basta que se saiba quem Jesus É, o Eschatos, para que cada ato, enquanto gesto fundador de realidades, seja visto como substancialmente autossuficiente, exemplar em si mesmo, útil para a elucidação de seu respectivo setor da Vida, donde a sua validade intrínseca enquanto veículo simbólico atemporal e inesgotável, além de entrada legítima para o entendimento e para a experiência globais no Cristo.
Todo esse entendimento, porque o Evangelho é já escrito para dar fundamento à Igreja em seu matiz universal, converge na compreensão de que os atos exemplares, em sentido simbólico e sagrado, devem ser prioritariamente lidos em vista das realidades atemporais às quais se referem, sem a necessidade imediata e incontornável de conhecimento a respeito de pormenores contextuais, de tipo imanente e horizontal, os quais têm valor e utilidade, mas secundariamente. Da mesma maneira, do valor intrínseco de cada ato fundacional, não é imperativo que se conheça em minúcia e linearmente toda a narrativa dos Evangelhos para que se possa acessar e compreender adequadamente determinados atos específicos — basta que haja a instrução prévia de Quem Cristo É, como o fez João.
O exemplo máximo dessa visão de coisas está nas Quatorze Estações da Via-Sacra…
De João, afinal, é que extraímos esse ensinamento: nem explicações culturais e étnicas, nem um ordenamento cronológico literal, nem mesmo um exaustivo amontoado de relatos e de informações são fundamentais — o que realmente importa, donde a seleção de atos, é que Cristo seja conhecido como Senhor e como Salvador. Com esse conhecimento, um único ato fundacional, um único milagre, para ser destrinchado, pode ser obra de uma vida e objeto de contemplação mística exclusiva de toda uma carreira. Daí a qualidade de Literatura Sagrada tão cara ao Evangelho: a economia assombrosa de detalhes, porque os atos mesmos em sua atemporalidade são o objeto da narrativa, e Jesus, Deus Filho, enquanto Aquele que Se revela e revela a Vontade de Deus em cada um deles, em cada um dos seus reinos, sobre os quais reivindica autoridade. O exemplo máximo dessa visão de coisas está nas Quatorze Estações da Via-Sacra — cada uma cristalizando e eternizando um ato, um evento, que é um mundo, ou um mito menor, e todas estruturadas em totalidade pelo conjunto, que é Mito Maior, ou Grande Símbolo, ordenado segundo um caminho de iniciação que serve de paradigma para a jornada espiritual cristã há milênios.
Um outro ponto importante do ‘hieros logos’ neotestamentário é como, e aqui os escritos apostólicos entram, os atos fundacionais, porque gestos criadores de realidades, servem para justificar e validar cada um dos aspectos da liturgia, do culto e da instituição cristã, assim como para explicar o seu status universal, segundo o ímpeto da Grande Comissão. É, pois, o Texto Sagrado no qual estão expressos, em sentido mítico, os surgimentos dos motivos cúlticos e dos gestos litúrgicos, e dos mais elementares hábitos cristãos, todos, n’última instância, instalados nos atos de Cristo — a melhor ilustração aqui é a Eucaristia, depois o Batismo. Assim, estão legitimados, para os cristãos e em Literatura Sagrada, tudo aquilo que eles vivem em sua religião, e estão bem sustentadas as origens mesmas da instituição e as causas de sua larga abrangência espaço-temporal, nutrindo, com isso, a consciência compartilhada, a autoimagem, a autoestima e as esperanças dos crentes — donde, do Mito Maior do Evangelho como um todo e da continuidade das tradições ali justificadas, a estruturação da chamada História Sagrada, que abrange a própria história da instituição cristã e de sua civilização, segundo as promessas e as atuações da Providência e em direção ao Fim da Era e à Parousia. Mas daí já não teremos Literatura Sagrada em sentido estrito, porque já não há mais atos fundadores de realidades, como os temos em Cristo e nos Seus Apóstolos, mas os desdobramentos exaustivos dos tempos internos de cada uma das realidades fundadas.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 27 de fevereiro de 2024.