Lições Romanas

Diário de viagem #6

Natanael Pedro Castoldi
6 min readMay 2, 2024
Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 21 de abril de 2024. O Arco de Sétimo Severo.

1 — Os limites da Cidade Antiga, observando a localização das famosas Sete Colinas, compreendem uma fração das dimensões atuais da cidade, inclusive uma fração das dimensões da cidade em seu período renascentista. Mesmo em sua extensão máxima, nos tempos imperiais, ela não parece tão gigantesca para nós, com nossos padrões metropolitanos atuais. Todavia, levando em conta a dimensão das cidades na Antiguidade, com algumas cidades importantes da Palestina, por exemplo, não se estendendo por mais de cinquenta ou cem metros de cada lado (tendo em mente a linha de suas muralhas [segundo Gunneweg]), Roma foi de fato colossal — mesmo nas épocas do Reino e da República, até às Muralhas Servianas e antes do Campo de Marte (Campus Martius). É necessário redimensionar a imaginação para apreciar o fato de que ela fora gigantesca, mesmo quando menor em extensão, não em população, do que uma cidade moderna de tamanho médio.

2 — Estando em Roma, vê-se como ali se aplicou o conceito que a tem por exemplo máximo: Civis. Diferentemente das poleis gregas, Roma, enquanto Civis, foi redefinindo os seus limites e as justificativas de suas terminações conforme o seu próprio crescimento, porque, por definição, não estava restrita e aprisionada a limites geográficos e étnicos sólidos e inflexíveis. Isso é perceptível conforme se anda pela sua extensão e vai indo ao encontro das diversas ampliações do raio da Cidade Antiga, marcados por diferentes muralhas.

3 — A existência de uma cidade colossal na Antiguidade está diretamente ligada à presença, nela, de grandes figuras públicas e régias, com amplo poder político e amplo acesso aos recursos públicos, porque uma cidade tal, se está repleta, hoje, de ruínas imensas, outrora transbordara de edifícios públicos e de infraestrutura comum. Esse tipo de obra, que se sucede, se complementa e se sobrepõe ao longo de múltiplos séculos, só é viável onde há um poder amplamente centralizado, com instituições bem firmadas e justificadas, aliançadas com um poderio militar e um poderio econômico notáveis e com uma religião civil de forte apelo político. Não é sem razão que as maiores obras levam os nomes dos césares que as idealizaram e financiaram. Além disso, um empreendimento multissecular contínuo, que vai alargando a cidade, é devido, invariavelmente, a uma relativa solidez na “ideologia” comum — deve haver uma unidade imaginal, ideal e cultural que conecta as classes mais humildes e numerosas às classes que estão nos pináculos do poder. Isso é fomentado, sobretudo, pelo empenho intencional das lideranças políticas de apelo popular, como os césares, e é notável como essa intencionalidade aparece nos projetos civilizacionais romanos: a escolha de mitos fundadores, a conservação e o uso político de fatos históricos determinantes, sobretudo vitórias militares, o investimento em narrativas de coesão e de autoridade, todos demarcados por ritos religiosos cívicos e por monumentos perenes, estão patentes na capacidade coletiva que os romanos tiveram de fundar, de expandir e de fazer perdurar a sua cidade, cuja estima a levou a alcançar os confins do mundo conhecido.

4 — Essas narrativas de coesão têm pontos altos, quando nascentes, e pontos baixos, quando começam a desfalecer, envelhecidas, demandando narrativas outras. Isso é notável em Roma, que têm em si o acúmulo de milênios de habitação contínua de um mesmo povo nativo (é claro, sempre acrescido de massas étnicas novas [o sentido de Civis é esse]). Uma tal extensão de anos é suficiente para que a cidade fique cheia de diferentes monumentos, correspondentes a diferentes períodos e a diferentes narrativas de coesão. Além dos colossais edifícios públicos da Roma Imperial, e chamou-me a atenção a quantidade de termas que foram erguidas naqueles séculos, há um incontável número de igrejas (quase mil, pelo que ouvi dizer), uma porção considerável delas erguida ou alterada no tempo da Contrarreforma. Uma das mais notáveis delas, na minha opinião, foi a Igreja de Santo Inácio de Loyola, inaugurada em 1650 — o seu tamanho e a sua suntuosidade me saltaram aos olhos e me comoveram o espírito. Vê-se como, em Roma, o espírito contrarreformista foi suficientemente unânime para mobilizar parte majoritária de todos os estamentos da sociedade, assim como dos seus recursos e da energia / empenho coletivos. Nesse sentido, a Contrarreforma foi mais uma das narrativas de coesão que reaqueceram e remobilizaram os corações dos romanos enquanto unidade civilizacional. Tal como há uma profusão de magnânimas termas, a expressão da força massiva e coletiva da Roma Imperial, há uma profusão de igrejas barrocas, uma quantidade desproporcional delas num período relativamente curto de tempo, correspondendo a um ímpeto coletivo de latinidade romana contra a pressão teutônica da Reforma ao norte (uma espécie de autoafirmação quase compulsiva), e outras profusões de igrejas e de monumentos que vão sendo adicionados à coleção conforme ímpetos diversos de outros momentos.

5 — Após Roma estivemos na Albânia, na antiga província romana da Ilíria, ou do Ilírico, e pude ter a impressão de como os provincianos, dominados por Roma para o sustento da Grande Cidade e de sua vasta fronteira, sentiam-se. A primeira vez que uma marinha romana atravessou o Adriático foi em 229 a.C., dando início, pela Guerra Ilírica, à conquista da região, que terminou de ser concluída com a derrota do general Gêncio em 168 a.C. Neste ano o Ilírico se tornou um protetorado romano, formalmente independente, feito província apenas em 27 a.C., o sendo até seu desmembramento nas províncias da Panônia, ao norte, e da Dalmácia, ao sul. No entanto, a história da presença romana no Ilírico não foi pacífica: diversas guerras, como as guerras de Otaviano (35–33 a.C.), passando pela Guerra Panônia (12–9 a.C.) até a Grande Revolta Ilírica (6–9 d.C.), rajaram aquelas terras de sangue. Por isso, os ilírios desenvolveram uma narrativa de resistência baseada na oposição contínua ao Império, assumindo como um dos seus símbolos, e que hoje enche as lojas de suvenires em Tirana, a capital da Albânia, Teuta, originalmente uma líder tribal e uma heroína da Primeira Guerra Ilírica — parece ser confundida no imaginário com Dea, a Deusa (reabsorvida modernamente na estatuária albanesa de Madre Teresa [os albaneses disputam com os macedônios a nacionalidade da santa católica]). A Albânia também assume como herói nacional Skanderbeg (1405–1468), que liderou as tribos albanesas, aliançadas com cidades-estado do norte italiano, na guerra contra o Império Turco-Otomano. Novamente: quando uma potência imperial governa todo um eixo do Orbis Terrarum, domina também a imaginação dos povos, que, ou se alinham à sua narrativa, ou formam-se segundo uma narrativa que lhe vem fazer oposição — nações pequenas, como aquela dos Ilírios, ou mesmo como a antiga Israel, para que sobrevivam, devem definir parte considerável de seu imaginário coletivo no ideário de resistência obstinada ao invasor estrangeiro.

Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 25 de abril de 2024. “Nënë Tereza”— Tirana.
Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 25 de abril de 2024. Skanderbeg — Tirana.

Pude ver, então, no lance de uma semana, o eixo irradiador da ideologia imperial romana, sentindo algo da autoimagem dos romanos, e espaços provincianos até aos quais essas irradiações chegavam, e assim entender como um império universal consegue estabelecer o sistema do mundo inteiro (do mundo ao seu alcance), seja pela afirmação, seja pela negação de seus motivos expansionistas.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 1º de Maio de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em antropologia e crítica literária. Casado com Gabrielle Castoldi.