Mediação Externa, Experiência Típica, Arquétipo e Vida Espiritual

Freud, Girard, Jung, Becker, Hoppe e Kempis

Natanael Pedro Castoldi
11 min readApr 13, 2023

O conceito girardiano de rivalidade mimética pode ser útil para um entendimento do processo junguiano de individuação. Sendo bem sucinto, o “motor” da psique humana, segundo Girard, é o desejo — nos movemos em vista da posse daquilo que vislumbramos a partir da relação com os outros e daquilo que esses outros podem se nos representar. Quer dizer: o valor do objeto de desejo é atribuído pela sua associação com um outro desejável. O primeiro lócus do desejo é o lar e a criança, a exemplo do menino, sentirá um misto de terror e de admiração pela potência e magnanimidade inspiradas pelo pai — de alguma maneira, o pai está em posse da plenipotência. A rivalidade do menino para com o seu pai, que é natural e incontornável, tem em vista a mimese de sua forma, de seu comportamento, procurando a semelhança do pai para legitimar-se como portador da mesma potência — e para garantir, dessa força, que não perca o empenho afetivo da mãe. A tendência será a progressão do desejo e o acirramento do conflito (mediação interna [devida à proximidade]), até o reconhecimento de que o pai ainda é insuperável. Isso deslocará o interesse do menino para rivalidades alternativas, mais próximas de sua estatura, como irmãos, amigos e colegas da escola. Com o tempo e o descolamento progressivo do pai para com a plenipotência, haverá um desprendimento e um deslocamento dessa qualidade divinal ao nível da transcendência, alocado no Divino (mediação externa [devida à distância]). Nesse sentido, a superação simbólica do pai da infância, do Pai Terrível, é devida à descoberta do pai real, contingente, do entendimento de que ele é o instrumento de uma potência mais elevada, não a sua materialização, e da corrente migração dessa potência ao seu lugar devido: o Trono de Deus, que infunde Sua autoridade nas diversas ordens da sociedade e nos muitos papéis autoritativos que a criança vai conhecendo ao longo da infância. O drama, aqui, é o do vir-a-ser: na medida em que o pai real é desvelado, não há mais lócus de plenipotência no mundo, aquela sede de absoluto fica sem um objeto imediatamente identificável e desejável — em tudo há apenas uma parte de potência, que é dispensada do Alto. Impera, pois, o sentimento de finitude, de fraqueza e de vulnerabilidade. E urge a assimilação interna da parcela de poder dispensada ao indivíduo — agora ele é responsável e o lócus da ordem do mundo, na medida em que desce do Alto, também deve estar dentro de si. O pai da vida adulta, o pai real, é a imagem de pai que permite uma assimilação autônoma de um senso de ordem pessoal e do quinhão do mundo lá fora que pertence ao filho.

Nem sempre a psique consegue amadurecer dessa maneira. Muitas vezes os pais são assombrosamente hostis e esmagadores, inviabilizando qualquer iniciativa de rivalidade, noutras vezes estão tão distantes, transparecem tanta fraqueza, que não chegam a despertar um ímpeto mimético suficientemente forte no menino — que, ademais, teme fazê-lo mal ao se opor a ele. Todavia, ainda assim o apetite plenipotente existirá, talvez mais restrito à experiência de totalidade conhecida junto do colo materno, mas não poderá ser psicologicamente enquadrado, porque não terá um objeto exterior para o qual possa se canalizado. Existirá uma tendência horizontalizante, não verticalizante, e a plenitude passará a se identificar com o genérico do mundo, seguindo aprisionada nos recônditos sombrios da subjetividade e dos apetites irrestritos da primeira infância.

Diante de um pai assombrosamente hostil, todavia, a criança poderá sentir que a mãe não lhe diz respeito (ela é inteiramente do pai) e o pai, imbatível, a manterá aprisionada em seu terror, que é tanto pavoroso, quanto fascinante. A hostilidade que sentirá com relação a esse pai não poderá jamais ser expressada, então os canais psicossomáticos para o contato com ímpetos espontâneos e com fontes emocionais mobilizadoras de ação serão obstruídos. A maior parte da tensão, não podendo ser materializada e exteriorizada, será contida e vazará como neurose — ansiedades, fobias, compulsões… Nesse caso, o imperativo plenipotente continuará preso ao Pai Terrível, ao pai da infância, mesmo durante a vida adulta, de maneira que o senso de ordem não foi devidamente interiorizado e assumido como responsabilidade pessoal — ele seguirá exteriorizado, alocado no pai terreno e na sua sombra, desdobrando-se numa série de complicações decorrentes de um sentimento crônico de ilegitimidade e de fraqueza. Conforme Ernest Becker, uma neurose tal, assim baseada numa dualidade inquebrável de plenipotência-plenifraqueza, buscará ativamente uma compensação heroica, que vise inverter o jogo: num pulo, numa empreitada, o indivíduo quererá ser imenso, completo e provar ao seu pai o seu valor — todavia, não o conseguirá nesses termos, recaindo diversas vezes, até o ponto do limiar da desistência e da entrega a um “salvador” idealizado que, na medida em que assuma qualificações semidivinais, coloque ordem em sua vida e lhe dispense admiração e legitimidade. Isso também tende a não funcionar — sobretudo porque o sentimento de ilegitimidade e de demérito não se esvai.

Diante de um pai sobremodo ausente ou excessivamente frágil, essa criança teria a mãe para si, de todo, desde o começo. Aqui voltamos ao previamente antecipado: na medida em que o pai não parece desejar suficientemente bem a mãe, ao ponto de não solicitá-la quando ela está com o filho, e que não inspira plenipotência, a criança não aprende a desejar — conquanto não pareça ser suficientemente desejada pelo próprio pai, poderá ser todo-desejada pela mãe, embora ela mesma não veja a mãe como sobremodo desejável. Assim sendo, não é inspirada à rivalidade mimética e está, de algum modo, conservada na condição de plenitude nascitural. Convém observar, todavia, que a mãe desguarnecida do amparo do cônjuge não conseguirá conservar o lócus paradisíaco por tempo demais — a magia vai se quebrando, porque essa mãe nem sempre sabe o que deve ser feito, ou como fazê-lo, e nem sempre estará presente. Assim que a superproteção falhar, a criança começará a se desesperar e, não suportando o desprazer, se perceberá excessivamente vulnerável. Todavia, não sabendo exatamente o que e como desejar, com esse ímpeto interior não adequadamente mobilizado, reagirá procurando se conter e fechar-se em si mesma, como que para voltar ao útero, e as consequências tenderão a ser similares às do caso anterior. Com um porém, todavia: o ímpeto heroico de superação do pai não é viável, mas a de uma expectativa crescente de que o mundo, que alguém, que cada lugar, lhe ofereça algum tipo de proteção e de cuidado, que seja saciada de seus apetites o mais prontamente possível — embora não saiba exatamente quais são eles, do que precisa. Sente-se traída e injustiçada e no direito de solicitar satisfação dos outros — é uma busca, no mundo exterior, pela mãe edênica que foi se perdendo e daquela proteção paterna, que praticamente inexistiu. É digno pontuar aqui um outro fator: a inclinação à autonomia é inextricável parte do desenvolvimento da criança e ela precisará encontrar meios de se dissociar gradualmente da mãe, cujos cuidados excessivos tenderão a representar uma ameaça ao seu fortalecimento (e ela entende que deve começar a “se virar” na medida em que a mãe passa a faltar), todavia, sem a presença do Pai Admirável, de quem ela pode sentir-se legitimamente filha, não há base psicológica que sustente uma investida “contra” a mãe que seja sem culpa (como filha do Pai Admirável, ela se sente amparada para “vencer” a mãe). Ao fim e ao cabo, por conseguinte: a ausência de um pai presente e admirável, com quem o menino consiga rivalizar, dificulta o processo de exteriorização, pelo qual a criança pode projetar para fora seus ímpetos interiores, dando-lhes forma e objeto, e se conserva presa ao governo daquela mãe que ela sabe ser insuficiente, mas da qual não consegue se desvencilhar. Assim, parcialmente incapaz de identificar claramente suas necessidades, porque não consegue explorar confiantemente o mundo ao redor, mantém-se numa condição mais passiva, à espera de quem lhe diga o que deve pensar, sentir e fazer, ou que pense, sinta e faça em seu lugar e por ela.

Duas são as possível expressões concretas, comportamentais, desses dois cenários: o primeiro tenderá, inicialmente, à rivalidade frontal e violenta com os seus competidores miméticos, tendendo à insolência e hostilidade, porque precisa se afirmar, para depois recair nos braços de um salvador, de um protetor, que possa dar-lhe aquilo que busca — sua revolta contra esse o Pai Tirânico e contra aqueles que não o salvaram, poderá incorrer numa rebelião pessoal contra potestades superiores, quando não contra Deus; o segundo tenderá, inicialmente, à exigência, à solicitação, ao clamor ardente por quem lhe dê aquilo que acha que precisa — tende, portanto, a uma menor hostilidade e subversão, porque vai buscar se regular ou desejar conforme a medida dos outros, não pela sombra elevada do pai plenipotente. Este segundo caso pode verter em violência e hostilidade quando amparado por um grupo de iguais, uma tribo de seus pares que compartilham em medida igualitária de sua demanda, inflamando-a mimeticamente e perfazendo potência coletiva para punir o bode expiatório procurado exteriormente — uma tentativa de definir um objeto externo e de se exteriorizar a partir da sugestão do grupo — e pressionar para o suprimento das necessidades que acredita ter e que pensa ser justo receber. Em ambos os casos, a revolta será canalizada nalgum setor da realidade, identificados vertical e horizontalmente, respectivamente, e aquilo que se afirma desejar serão receptáculos projetivos de faltas muito mais amplas, que não puderam ser corretamente definidas, porque a mediação não se externalizou.

Há um processo cíclico associado à prevalência da neurose. Como a mediação mimética não pôde se externalizar, toda a falta sentida pelo indivíduo, aquela falta associada à “perda do Paraíso” e ao desejo do Absoluto, é deslocada quase que aleatoriamente para o próximo objeto visível, que promete realização na medida em que é desejado pelos outros ou por algum outro. Assim, vai-se de mediação interna em mediação interna, desejando coisas desejáveis porque outros as desejam. Um tenderá a esmagar o rival, porque rivaliza com as potestades superiores, outro solicitará dessas potestades o socorro e o auxílio na obtenção daquilo que passou a desejar, se possível instigando-as a destruir o seu primeiro possuidor. Em ambos os casos, uma vez conquistado o objeto de desejo, ele perderá o brilho e o valor, porque, deixando de ser virtualidade, de representar a falta e de receber sobre si, via imaginação, a totalidade das expectativas de realização, fracassa na sua promessa de plenitude — ele, concreto, é inequívoco e já não aceita mais ser moldado segundo as ilusões que instigaram a cobiça. A plenitude não veio do carro, nem da casa, ou do celular. A frustração decorrente da quebra da expectativa fantástica conduzirá a uma recaída melancólica, da qual se procurará fugir (porque a falta, a fraqueza, a limitude não foram aceitas como partes legítimas da vida humana) buscando um novo objeto, conforme novas sugestões dos outros ou de algum outro. Isso continuará se repetindo até o limite, até que o indivíduo, de fracasso em fracasso, aceitar o fato de que o problema não está nas coisas que ele não tem, porque nada poderá lhe dar o que acredita que precisa ter ou que lhe falta — quando ele entender que não é o carro, nem a casa, mas um desejo edênico de plenipotência o que ele busca, e que isso não existe no mundo, perceberá que a falta emana desde dentro dele mesmo e que, por conseguinte, deve se resolver em seu próprio coração. Isso culminará na submissão à realidade e na aceitação consciente de que ele, enquanto humano, é e sempre será vir-a-ser — a sua existência plena, em ato, só se dará no Paraíso Celeste. Ele, portanto, pode ser meio fraco e meio forte, ele pode ser o que deve ser.

A formação inicial do Eu demanda exteriorização, um distanciamento de seu próprio interior e uma exploração no mundo exterior, repleto de objetos e de pessoas que vão dando forma e nome aos seus desejos e às coisas que acontecem dentro dele. A neurose decorre de uma má formação nessa exteriorização: o mundo exterior é terrível, uma massa caótica que não posso dominar, que não me anuncia o que devo querer e fazer e nem o lugar que devo ocupar. Tentativas de dominá-lo se darão pelo “tudo ou nada” — heroísmo insolente e buscas desesperadas por asilo. Uma exteriorização defeituosa tende a estender excessivamente as pendências com a vida externa, porque a vida interior não pode ser satisfatoriamente nomeada e apreendida através da exploração exterior. O mundo interior continua estranho, sombrio, e, via de regra, reprimido e negado. O exterior mal resolvido se torna uma obsessão. Assim, há a supracitada tendência cíclica, de repetições compulsivas sobre o mesmo, inflando e desinflando. O processo de individuação demanda tanto uma saída de si, como um posterior recuo para dentro de si. Quando a falta insaciável é compreendida como uma falta interior, passa-se a imperar a necessidade de lidar com os conteúdos interiores, até então negligenciados, e assimilá-los à vida consciente.

Curiosamente, a mediação interna ocorre quando estamos sobremodo exteriorizados, enquanto a mediação externa viabiliza e acompanha a nossa interiorização

É aqui que prevalece a externalização da mediação. Curiosamente, a mediação interna ocorre quando estamos sobremodo exteriorizados, enquanto a mediação externa viabiliza e acompanha a nossa interiorização. Na medida em que percebo que meu pai não é plenipotente, que não há plenipotência no mundo e que tudo o que está ao meu alcance é um quinhão da realidade e uma certa medida de força, devo lidar com a sensação visceral de uma fraqueza insuperável. Se eu não resolver isso, continuarei procurando plenitude naquilo que vejo logo adiante, mantendo em mim um inflamado, incontrolável e apaixonado desejo, que me faz violento, porque não consigo suportar a falta (a preferência temporal elevada, Hoppe). Resolvo-o deslocando a plenipotência ao terreno do Divino, da Transcendência, e, na medida em que encaro o Deus Onipotente, também encaro a minha própria falta — mas agora já não posso fugir dela procurando rivalizar com Deus, porque Ele é, nesse sentido, inacessível e insuperável. Isso me obriga a aceitar a minha circunstância e a fazer o que é possível dentro da realidade de mim mesmo e do mundo.

Usando outros termos: quando reconheço que a falta que há em mim é uma constante da natureza humana, um sentimento atemporal e universal, portanto ontológico, e não um problema contingente, apenas meu (quando creria que há pessoas plenamente satisfeitas), posso encará-la enquanto experiência típica, viabilizando a sua simbolização arquetípica — posso vê-la enquanto um fenômeno interno, que é meu, mas também enquanto uma realidade maior do que eu, exterior, por isso psicóide. Dessa maneira, pela simbolização consigo acessar a Sabedoria e encontrar meios espiritualmente satisfatórios para lidar com a tensão. Assim, na medida em que dou um nome e um rosto para a falta, alocada junto do Divino (Imaginação Ativa), encarando-a como minha e maior do que eu, encontro meios de sublimá-la — ela pode verter, na figura da Musa, em literatura ou pintura, ou mesmo na construção de uma vida moral que seja ela mesma uma “obra de arte” (vide a Imitação de Cristo, de Kempis). Veja bem: ou ela se torna Musa, me levando a encontrar força justamente através da fraqueza, ou a falta, o não-ser, se torna o Demônio, o terror de Descartes, que me impele não mais à contemplação e à virtude, mas à fuga e ao vício. Porque o homem tem em Deus, o Absoluto, também a sombra do Nada — se o homem é vir-a-ser, não podendo absolutizar-se, agonizará diante da perspectiva de inexistir. A saída é aprender a estar aos pés do Eterno.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 13 de abril de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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