Mito e Potência

origem e persistência dos deuses

Natanael Pedro Castoldi
8 min readMay 15, 2021
The Dispute of Minerva and Neptune, René-Antoine Houasse

A crise existencial sempre é uma crise espiritual. Desde que li novamente O Sagrado e o Profano, de Mircea Eliade (2010), estou com esse entendimento fervilhando em minha mente. Num primeiro momento, a sentença acima parece simples, mas basta uma análise um pouco mais cuidadosa para observar seus reais desdobramentos:

Ora, os conteúdos e as estruturas do inconsciente apresentam semelhanças surpreendentes com as imagens e figuras mitológicas. Não queremos dizer que as mitologias sejam “produto” do inconsciente […]. Todavia, os conteúdos e estruturas do inconsciente são o resultado de situações existenciais imemoriais, sobretudo das situações críticas, e é por essa razão que o inconsciente apresenta uma aura religiosa. Toda crise existencial põe de novo em questão, ao mesmo tempo, a realidade do Mundo e a presença do homem no Mundo: em suma, a crise existencial é “religiosa”, visto que, aos níveis arcaicos de cultura, o ser confunde-se com o sagrado. — Eliade, p.170–171

Em breves palavras, Eliade está querendo dizer que a nossa forma de ler a vida, o mundo, nós mesmos, decorre das estruturas rudimentares do aparato psíquico, estruturas essas gestadas ao longo de muitíssimas gerações primevas submetidas a um ambiente hostil e sobrecarregado do Sagrado. Nossas necessidades existenciais, mesmo num contexto secularizado, pedem por estruturas e por conteúdos que remetem aos nossos ancestrais, pois, como bem observou Wilhem Reich (2001), a forma da psique pode resistir muito tempo à mudança do cenário material, cultural e econômico, donde somos capazes de habitar novos mundos enquanto preservamos modos de funcionamento mental e necessidades psicológicas herdadas de situações muito diversas e muito anteriores. Por mais “laico” que seja o homem moderno, ele só conseguirá resolver parte substancial de suas carências existenciais se conseguir encontrar objetos compatíveis com suas inclinações profundas, atualizando de maneiras sutis arquétipos altamente primitivos.

A resistência do Mito está bastante evidente na perseverança dos panteões pagãos, sobremodo apelativos para a imaginação popular e civilizacional, de maneira que se reformulam, sempre dotados de suas características básicas, em novas formas, visto suprirem uma função — o mundo muda, mas os papéis desempenhados pelos deuses continuam necessários, podendo ser assumidos por agentes ou instituições humanas ou atribuídos a Deus. Quando seus papéis substanciais são transferidos, contudo, os deuses continuam existindo, mesmo que seja enquanto objetos de devoção poética, literária, artística. Gleen Hughes (2019) nos ajudará a compreendê-lo por meio da sua exposição a respeito da transição da chamada Era Cosmológica para a Era Axial.

o Deus ocidental e o Tao chinês são símbolos sofisticados da realidade transcendente, que apareceram relativamente tarde no cenário humano. São duas expressões daquela profunda transição por que passou a autocompreensão humana, na qual a transcendência do fundamento tornou-se explicitamente distinta e, assim, conceitualmente separada, de maneira nítida, da realidade mundana, espaciotemporal. Nas culturas ainda não tocadas pela explícita identificação da transcendência, a totalidade da realidade, incluindo-se aí o fundamento sagrado ou divino, era vivenciada sem essa nítida distinção entre mundo e transcendência. […] Nas culturas cosmológicas”, portanto, a busca pelo ser necessário e permanente encontrava a finalidade de sua busca não em uma divindade ou princípio […], mas antes nas forças e ritmos da ordem cósmica, cujas energia, durabilidade e regularidades compreendia-se que evidenciavam poder e intenção sagrados. — Hughes, p. 64

Segundo nosso autor, leitor de Eric Voegelin, a Era Axial vem com a emergência de uma mudança qualitativa na autocompreensão do homem, reflexo também de uma mudança cognitiva, e aparece, num curto espaço de tempo, na Europa, no Oriente Médio e na Ásia, em religiões e tradições cristãs, budistas e etc. Campbell (2004) rastreou o processo subterrâneo que pode ter conduzido à eclosão dessa mudança: a partir do Levante e das planícies da Mesopotâmia, a formação das cidades dentro do espírito regular da cultura agrícola, com toda a demanda crescente por observações astrológicas e astronômicas, por cálculos, registros e sistemas de controle mais sofisticados, deu bases materiais e imagéticas para o florescimento da mentalidade histórica, além de, tendo fortalecido uma corte palaciana ligada ao Templo, conduzir a um destacamento personalista da figura do rei. No contexto oriental anterior, o rei era divino, mas isso porque a totalidade do que se via e tocava podia participar da divindade, do Sagrado. Já com os sumerianos, porém, a proeminente figura do rei foi destacada da divindade, deixando de ser divino para se tornar o primeiro servo do deus da cidade, estabelecendo um padrão de comunicação com o divino que não mais se fundava na ideia de identidade, mas naquela de relação. A partir daqui, Deus é separado do Mundo.

Com a divindade destacada da imanência, começa a clarificar-se a perspectiva da transcendência. Deus já não era “tudo” e nem tudo era uma potencial hierofania. Deus agora precisava ser procurado, encontrado, visto. Transcendente, o divino não é o mesmo que a imanência criatural, de maneira que a sua manifestação no mundo visível é um evento, um fenômeno muito específico, uma ação intencionada e interessada em interferir no curso da vida humana, na história do povo. A aparição da divindade ocorre no tempo histórico, portanto, ou mesmo o inaugura, donde se começa uma gradual ruptura do império do tempo cíclico. Há um desligamento, por conseguinte, da relação imediata entre o divino e os fenômenos naturais, cíclicos, e uma perspectiva mais relacional e pessoal do Deus Invisível com o homem individual ou com o povo. Essa é a matriz do espírito axiológico, que no Ocidente se desenvolverá nas tradições Levantina (a Vontade Divina como Absoluta e inquestionável — influência da cultura coletiva citadina e agrícola) e Europeia (a Vontade Divina como Relativa e questionável — influência da cultura individualista dos caçadores da macrofauna paleolítica e dos guerreiros invasores indo-europeus [ELIADE, 2010b]). No Oriente, o espírito pré-sumeriano do Todo influencia o curso axial no sentido de um desprendimento entre o Visível e o Invisível, mas mantém o Ser impessoal.

Não precisamos entrar nos méritos da discussão sobre a prioridade ou não do monoteísmo, ou henoteísmo, por sobre o politeísmo, o que Martins Terra discutiu primorosamente em suas obras magnas, O Deus dos Indo-Europeus (1999) e O Deus dos Semitas (2015), nas quais identifica matrizes monoteístas anteriores aos desenvolvimentos politeístas, com Pai/Dia (Diesppiter — Dyeu[Dia/Deus]+Pater[Pai]=Júpiter) entre os indo-europeus e El entre os semitas. O fato é que os politeísmos só se desenvolveram em função da sede de totalidade do homem primitivo: o Ser, por assim dizer, estava misturado ao mundo visível, e todas as qualidades totalizantes necessárias ao homem, para que carregue sua vida de sentido e de propósito, eram identificadas em manifestações naturais especiais ou regulares (hierofanias), associadas a divindades pessoais e imanentes, todas articuladas entre si para a realização da harmonia cósmica, para o ordenamento da sociedade e do espírito.

o fundamento necessário do ser, ainda não divorciado radicalmente do ser espaciotemporal pelo pensamento crítico, encontrava representação adequada em uma exótica multiplicidade de seres divinos imagináveis e semi-imagináveis, em narrativas das relações e conflitos entre os seres divinos, e em relatos de suas ações criativas com e sobre o mundo palpável da experiência. A conexão com a realidade permanente, então, para os membros das sociedades cosmológicas, era a conexão com os deuses “intra-cósmicos”, que eram, de maneira inevitável, intimamente identificados com o que chamaríamos de “forças da natureza”. — Hughes, p. 65

A Totalidade, portanto, era assegurada na imanência por meio da articulação narrativa entre as mais diferentes divindades, necessárias em função da impossibilidade de conceber uma divindade única e fundamental, viável apenas quando a multiplicidade do visível é distinguida da unidade do invisível, que é quando se concebe com clareza o Ser, ou a Transcendência. Dessa maneira, em termos simbólicos, cada entidade de um panteão condensava uma qualidade ou potência partícipe do Todo e necessária para uma visão de mundo densa e significada. Os membros de uma família divina, desconsiderando suas histórias particulares, adereços não essenciais e cheias daquelas obscenidades que os alegoristas gregos vieram a condenar, são encarnações ou materializações simbólicas de qualidades e possibilidades fundamentais — são, por assim dizer, como que formas puras, nódulos densificados de características do Cosmos e do Homem, pontos quentes que articulam e dão sentido ao visível que lhes é correspondente. As relações consanguíneas, de amor, amizade ou rivalidade entre os deuses expressam, num nível profundo, as conexões e as harmonizações entre os múltiplos que preenchem a vida cotidiana. Enquanto pontos quentes, formas puras de características humanas e mundanas, servem de objeto para inclinações autocompreensivas e existenciais do homem em si e no mundo, além de mobilizarem, atiçarem e canalizarem certas paixões viscerais do ente humano.

Quando o horizonte transcendental, enquadrado no Senhor, é perdido de vista, os deuses necessariamente retornam travestidos de ídolos

A perspectiva da unidade transcendente que dá coesão e sentido à imanência — os cristãos a encontram em Deus — , deve ser capaz de desmitificar a vida, pois torna obsoleta a variedade das divindades do panteão, já que o Criador dá sentido e propósito para tudo. Todavia, quando o horizonte transcendental, enquadrado no Senhor, é perdido de vista, os deuses necessariamente retornam travestidos de ídolos diversos. Dos arquétipos, Deus é um, o Um: trata-se daquela sede de Ser que fica na base da vida espiritiva articulando e ordenando todos os demais arquétipos, sempre relativos àquele que está no trono da alma. Eis o Absoluto necessário no centro do Eu. Se me perco do Criador Transcendente, algum relativo imante terá de ocupar o trono, que jamais fica vazio, fazendo-se ilegitimamente absoluto — se giro ao redor do relativo absolutizado, todo o resto é distorcido, pois regido por um impostor. É aqui que a vida da alma se desarticula e se perde.

Esse conjunto de imagens ainda vive na psique moderna, como o indica, por exemplo, o sonho de um homem de negócios e artista comercial de meia-idade que desconhecia a alquimia:

“Quatro personagens vestidas de metal descem do céu na minha direção. Flutuam acima de um antigo muro romano. Cada vestimenta é feita de um metal diferente. Uma é de bronze, outra de chumbo, a terceira de ferro e a última de platina. A personagem vestida de platina aparta-se das outras e se aproxima. ‘Procuramos metal’, diz ela. ‘O material que buscamos é o mesmo material de nossas roupas.’ Elas permanecem suspensas no ar graças a algum método peculiar.”

Os homens vestidos de metal correspondem às divindades planetárias dos alquimistas. Desprovidos de peso, são seres espirituais, habitantes do céu. Assim, representariam imagens arquetípicas da psique objetiva. Sua descida em busca dos metais correspondentes indica que cada espírito-metal procura sua própria encarnação terrena. Desejam ser concretamente atualizados na experiência consciente de um ego individual. Trata-se de um sonho arquetípico, que exibe claramente um significado coletivo e pessoal. — Edinger, 2006, p. 23–24.

CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus: mitologia ocidental. São Paulo: Palas Athena, 2004.

EDINGER, Edward. Anatomia da Psique. São Paulo: Cultrix, 2006

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Ideias Religiosas I. Rio de Janeiro, Zahar, 2010.

HUGHES, Glenn. Transcendência e História. Curitiba: Danúbio, 2019.

REICH, Wilhelm. Psicologia de Massas do Fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

TERRA, João E. M. O Deus dos Indo-Europeus. São Paulo: Loyola, 1999.

TERRA, João E. M. O Deus dos Semitas. São Paulo: Loyola, 2015.

Texto de Natanael Pedro Castoldi redigido para este perfil em 15 de maio de 2021.

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Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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