Mitologia e Literatura

Limites tênues e possibilidades

Natanael Pedro Castoldi
6 min readMar 7, 2023

Noutro dia fui advertido por um dos tradutores de Tolkien no Brasil sobre o fato de o erudito não ter se baseado apenas em mitologia nórdica, mas também na mitologia grega, noutras mais ao oriente e, enfim, no cristianismo. Um comentário pertinente que me levou a articular alguns pensamentos que eu tinha sobre o significado da mitologia nos tempos antigos, sobretudo medievais. Pensei que seria interessante compartilhar esses entendimentos, tomando por base a resposta que enviei a ele.

O ponto de partida aqui deve ser o do camponês inglês do medievo. Pense por um minuto sobre como seria estar no lugar dele, nos interiores da Inglaterra, no contexto de uma cultura eminentemente folclórica. Ele saberia distinguir exatamente quais seriam as influências gregas ou asiáticas em seu folclore? Para ele, aliás, a maior parte não se tratava propriamente de “mito”, mas da realidade presente, e ele não saberia, provavelmente, discorrer sobre as aventuras de Odisseu, mas poderia saber a respeito de sereias, nas quais acreditaria sem cogitar o mito homérico. Elfos e outros duendes eram entidades que podiam mesmo aparecer e conduzir aquele que andava distraído aos seus palácios ocultos. Há relatos de monges na Grã-Bretanha que prestaram culto a Ártemis e há registros na bruxaria ao longo da Europa medieval que trazem a presença de Diana. Centauros e faunos se comunicam com santos e elementos latinos estão presentes em registros de mitos nórdicos, como descobriu Dumézil. Para um pastor da Cornualha, pouco importava o nascedouro de algum motivo mitológico — para ele tudo estava integrado numa trama vital.

A delimitação clara do que seria a mitologia grega, ela mesma decorrente de uma miscelânea de influências orientais e africanas, é um fenômeno mais recente do que imaginamos. No contexto da antiga Grécia, havia variações de Zeus para além até mesmo das colônias gregas, abrangendo a Síria e outras regiões. Mesmo que os romanos tenham reconhecido os deuses gregos, e também os hebreus, as fronteiras jamais eram claras, visto não estarmos falando de um sistema fechado, como a mitologia se torna depois que sua cultura geradora morre, mas de um organismo vivo e aberto, que não possui apenas deuses, mas entidades menores, partícipes da vida imediata de pessoas que ultrapassavam as fronteiras dos povos e das nações. Ademais, o próprio paganismo, enquanto cosmoteísmo, possui qualidades que conduzem à universalidade, pois os deuses dos diversos panteões são todos intercambiáveis, uma vez que cumprem funções similares, e isso conduziu, nos tempos romanos, a um tipo de mitologia universal.

O conceito de “mitologia universal” é especialmente importante no que diz respeito aos mitos greco-romanos. Quando o paganismo institucional foi superado pelo cristianismo, as antigas e já tênues fronteiras entre os mitos dos povos pagãos foram rompidas e tudo foi atirado num mesmo magma. Daí Ártemis aparecer na Inglaterra, Ulisses desembarcar na cidade do Porto e Mitras (originalmente oriental) se transformar no Barrete Vermelho de Monsanto. A mitologia grega já era universal quando a Idade Média principia, tendo tido múltiplos séculos para se espraiar por toda a Europa, imiscuindo-se em influências locais — o que é típico do contexto folclórico. A Europa, com Roma, se transforma num gigantesco caldeirão de mitologias que se sobrepõem, daí a ideia de os paganismos serem todos reflexo de uma fé primordial, conforme antecipado a respeito do cosmoteísmo e de seu universalismo. Quando a Igreja ocupou o lugar de centro da Civilização, os capilares profundos dos motivos mitológicos se mantiveram bombeando seiva pagã na cultura popular.

Talvez os nórdicos tenham se preservado um pouco, pois estiveram além dos alcances de Roma, dando numa mitologia menos intrincada e diversificada — mais “pura”, se assim pudermos dizer, sem com isso realizarmos algum juízo de valor. Todavia, enquanto os escandinavos varriam a Inglaterra, sua religião perdia autoridade e definhava. Durante a Baixa Idade Média, quando compiladores cristãos ordenaram a mitologia nórdica em cânones, ela já estava em pleno declínio. A cristianização do Norte teve suas batalhas, mas não foi como se o cristianismo enfrentasse religiões vivas — o mesmo fenômeno ocorreu na época da cristianização de Roma. Assim, a mitologia nórdica pôde ser capturada logo após o seu clímax e congelada na literatura sem ter havido tempo o suficiente para se deteriorar e se impregnar de motivos estranhos, oriundos do contato dos escandinavos com o restante da Europa e com o Oriente. E como a cristianização do Norte foi relativamente tardia, bem afirma Dawson, nem todos os demônios do paganismo foram bem exorcizados, reaparecendo com vigor no Romantismo Alemão e nos desdobramentos posteriores.

Aliás, é com o Renascimento que temos com mais clareza um princípio de distinção e de delimitação da mitologia greco-romana, transformada em artefato de um passado civilizacional já perdido e em vias de ser recuperado pelo humanismo, e já não mais partícipe diluída de uma cultura folclórica viva, como o era na Idade Média. O Renascimento latino estimulou, por sua vez, um tipo de “renascimento” ao Norte, entre os povos germânicos, assentado sob a sombra da Reforma, que Dawson definirá como uma primeira exacerbação dos traços teuto-medievais contra a intrusão romana através da Igreja. Todavia, foi apenas com o Romantismo e seus apelos nacionalistas que as mitologias nacionais foram bem delimitadas, integrando os pilares dos países nascentes. De algum modo, exagerando um pouco, podemos pensar em termos de “mitologia grega”, “mitologia romana”, “mitologia celta”… apenas se fizermos uso de certa arbitrariedade e se recortarmos um período histórico determinado, porque nenhuma mitologia está isenta de influências exteriores e de alterações interiores, e todas as supracitadas transbordaram para fora de si mesmas, criando algo diferente delas próprias, como bem consideramos a respeito da Idade Média. Nem mesmo a mitologia nórdica pode ser encontrada de maneira plena, pois sua redação foi realizada a partir de olhares cristãos.

Os esquemas básicos dos mitos são universais e podem ser encontrados repetidamente em povos do mundo inteiro

A questão sobre Tolkien ter tomado de empréstimo motivos da mitologia grega para a construção de suas histórias, como a recapitulação de Orfeu em Beren e Lúthien, não desqualifica a afirmação de que ele realizou um trabalho temperado pelo clima do Norte europeu. Os esquemas básicos dos mitos são universais e podem ser encontrados repetidamente em povos do mundo inteiro, pois há universalidade nos mitologemas. Os mitos, na essência, são pré-textuais. As coisas mudam pra valer apenas quando determinado mito é fixado no texto de um povo e na sua língua — é aí que ele obtém verdadeiros contornos étnicos. Não há helenismo na adoção do motivo órfico, pois o que determina o seu temperamento é o seu uso na língua e na imaginação de quem escreve, de onde escreve. O Dilúvio aparece entre os sumérios e entre os hebreus, por isso deve ter sido extraído de uma fonte pré-textual anterior, mas conseguimos identificar na forma pela qual o mito é fixado pelas diferentes culturas algo do temperamento de seus respectivos povos. Há, inclusive, uma fortíssima linha especulativa que atribui à obra de Homero uma origem nórdica, da Era do Bronze — isso significa que um antiquíssimo mito hiperbóreo, uma vez fixado no grego, assumiu as qualidades da Grécia e ajudou a Grécia a delinear-se a partir de si mesmo. O temperamento do texto tolkieniano insta na atmosfera do Norte, pois isso pertence mais ao reino da linguagem e da roupagem do que da estrutura básica dos mitos.

E quando repito que a obra de Tolkien é temperada pelo espírito do Norte, o faço respeitando o que o autor disse em tardias cartas. Inclusive porque o próprio cristianismo de Tolkien é o cristianismo que conheceu na Inglaterra, não em Turim, e os seus estudos em literatura cristã se reduziram, em grande parte, aos manuscritos cristãos redigidos no inglês médio e em outras línguas antigas do espectro anglo-saxônico. Uma vez que ele buscou o cristianismo na língua dos antigos cristãos ingleses, é natural que seu estilo e sua influência cristãs tomem raízes na obra dos medievais e que sejam, mais uma vez, temperados pelo espírito do Norte.

Certo, ele realmente não disse com todas as letras que desejava legar uma “mitologia para a Inglaterra”, mas um de seus ímpetos iniciais foi, do encontro com o finlandês e com o Kalevala, o deslumbramento e a triste constatação de que não havia algo similar na sua amada nação. Desde criança, ele mesmo diz, o Norte distante o magnetizou. Sua obra teve por estopim o impacto do mito escandinavo. Ele mesmo descreveu seu trabalho como embebido “na temperatura e no temperamento do Norte”. A palavra que conduziu ao início de seu trabalho foi “Earendel”, encontrada por ele no poema cristão de Cynewulf e escrita em inglês antigo. Não está fora de questão pensar seu trabalho nos termos de uma mitologia -ao- Norte ou de uma homenagem estética aos seus próprios ancestrais, cujos ecos ouvia em sonho. É lógico que há muito mais do que isso, mas defendo que essas coisas não são descartáveis simplesmente porque alguém não gosta.

Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 18 de fevereiro de 2022.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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