Moisés e a Serpente de Fogo
Simbolismo ofídico no Êxodo
A representação draconiana da metamorfose do cajado de Moisés é viável em vista da tradição e do hebraico bíblico. A correlação entre a Serpente e o Fogo, no caso da Sarça Ardente, corresponde aos Serafins (as serpentes abrasadores e anjos de fogo no Antigo Testamento). Ademais, o termo “serpente” utilizado em Êxodo 7:9 para a segunda metamorfose do Cajado é “tannin”, que quer dizer “dragão”.
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Na sequência, trago três estudos que realizei sobre o tema:
Moisés, o Dragão de Deus e a queda de Faraó
O termo hebraico utilizado para Serpente em Êxodo 7:9, no advento da metamorfose do Cajado em Arão diante de Faraó, é “tannin” — Monstro. O comentarista da Torá (Ed. Sêfer) afirma que o hebraico para os Grandes Peixes de Gênesis 1:21 é “Taninim” e significa, propriamente, Dragões — “no relato do Gênesis nenhum animal é designado particularmente, exceto os Taninim”, donde o seu caráter especial e cosmológico, pois no contexto da cosmogonia mesopotâmica, os Dragões (Caos) foram derrotados pelos Deuses para a imposição de Ordem no Cosmos (no caso do Gênesis, mesmo os Dragões são criaturas de Deus). Na Septuaginta, o “tannin” de Êxodo 7 é traduzido por Drákon, que é propriamente Dragão. Essa é uma palavra muito específica, pois para fazer referência à serpente comum, o hebraico traz “nachash”, que é “ófis” na versão dos Setenta.
Curiosamente, Ezequiel 29:3 profetiza contra o Egito nos seguintes termos: “Eis-me contra ti, ó Faraó, rei do Egito, grande dragão [Tannin], que pousas no meio dos teus rios, e que dizes: O meu rio é meu, e eu o fiz para mim.” Posteriormente, em Ezequiel 32:2, o próprio Faraó é chamado de Tannin. No contexto, é dito que Faraó será reduzido por Deus de Dragão revolvedor dos rios em “leãozinho”.
Embora a palavra para Serpente em Êxodo 4, na revelação de Deus por meio da Sarça Flamejante, seja “nachash”, devemos lembrar de que ali Deus transformou o bordão de Moisés em serpente, como um sinal a ser apresentado a Faraó. Essa “nachash”, ao chão, perseguiu a Moisés, voltando à condição anterior ao ser tomada pela cauda. É óbvia a conexão entre as duas metamorfoses, mas certamente a aparência monstruosa da segunda, na corte de Faraó, foi um verdadeiro assombro para o rei do Egito. Os egípcios conheciam em sua cosmologia a Serpente do Caos chamada Apófis e ela tentava engolir o Sol a cada alvorecer. A Deusa Serpente Uto, padroeira do Baixo Egito, era símbolo da realeza de tal modo a estar incrustada na coroa de Faraó (esse adorno era chamado de Ureu) como motivo de Soberania. O Faraó, portanto, não foi comparado por Ezequiel a uma Grande Serpente, ou Dragão, sem propósito, e Deus não reivindica a soberania sobre o Nilo sem antes mostrar que Ele é o Senhor dos Dragões e que engole o Sol.
Também é inegável uma certa equivalência gestáltica entre a Revelação na Sarça e a própria configuração do Éden: ali, Moisés, um antitipo de Adão, está “nu” diante da Árvore ígnea (o Jardim das Hespérides, do mito de Hércules, apresenta a árvore guardada pela Serpente como possuindo um fruto dourado [o ouro é um equivalente do fogo], e ente os nórdicos o fruto da Vida Eterna é também dourado), sendo reencontrado pela Serpente, que o persegue. Se aqui temos um anúncio do combate de Deus com Uto e do Seu controle sobre Apófis (uma outra versão de Tiamat, o Dragão-Fêmea da Babilônia, transformado no Gênesis 1 no Abismo Vazio, Tehom), podemos pensar na Serpente enquanto um ente feminino, o que reproduz em pequena escala todos os elementos básicos do Jardim. O próprio Egito, em Ezequiel, é descrito como um tipo de Éden entre rios, assumido com arrogância por aquele que se pensa soberano sobre tudo — é a mesma imagem que Ezequiel (28) usa para falar do rei de Tiro, no seu trono no meio dos mares.
O confronto que ocorreu na corte faraônica, entre o Dragão de Deus e os dois dragõezinhos dos magos de Faraó (em geral se pensa em dois, pois sabemos de dois nomes para os magos — Janes e Jambres), foi um confronto entre o Apófis de Deus (Seu Leviatã) e Uto, a sustentação da soberania do rei do Egito. Quando o Dragão de Deus engole o as duas representações de Uto, ele está engolindo, analogicamente, o próprio Faraó, Filho de Rá, o Deus-Sol. É o Apófis de Deus engolindo o Sol, como acontecerá nas últimas das Dez Pragas. Além disso, o próprio número dois, das Duas Serpentes, é muitíssimo significativo para o Egito, sempre dividido entre o Alto e o Baixo Egito, para os quais havia, inclusive, duas coroas diferentes — o Faraó governava um Egito unificado, de maneira que o aspecto dual nunca deixou de existir, e a coroa do rei sobre os Dois Egitos era ofídica, também. Deus anunciava, pois, que estaria curvando a soberania do rei do Alto e do Baixo Egitos.
Como há, contudo, uma simbologia edênica inserida aqui, partícipe também da condenação do rei de Tiro, podemos ver em tudo isso um desdobramento pontual de uma batalha cósmica e atemporal, que reaparecerá no sonho de Daniel a respeito do Dragão do Caos, o Império Grego que conquistou Jerusalém e profanou o Templo, e no Apocalipse, quando o mesmo Dragão, a Antiga Serpente, estará encarnado em Roma e seu Império.
(19 de junho de 2021)
Há interessantíssimos motivos orientais que, ao discorrerem a respeito da natureza dos deuses, os encontram dualizados entre a Luz e a Sombra, cujos principais símbolos são o Campeão Solar e a Serpente Diabo. Na Rig Veda, o primeiro é identificado com Indra, dos Devas, e o segundo é identificado como o Dragão Vrtra e os Asuras. Mas o fundo desse combate polar, conforme assegurado pelos mitos, é de uma unidade consubstancial — noutros termos, os Devas e os Asuras eram um antes da Criação do Mundo, considerados como filhos de um Pai único. Essa natureza dual está expressa, por exemplo no que se diz dos Adityas, os Sóis, que eram originalmente serpentes, mas, despojando-se de suas peles mortais, ou vencendo a Morte, conquistaram a imortalidade, tornando-se os Devas.
De fato, na Índia védica, assim como noutras tradições, se despojar da “pele” é símbolo para a libertação do “velho homem” e um renascimento em juventude num patamar superior. Esse mesmo comportamento, que Eliade chama de “reptiliano”, aparece igualmente nos deuses: o nascer do Sol, diz-se no Sátapatha Brahmana, quando ele se desvencilha da Noite, é como Ahi, a Serpente, se libertando de sua pele velha. Entre os antigos xamãs, o ritual de rastejar para fora de uma cobertura de peles era iniciático e confirmava a purificação dos pecados e a libertação da vida profana. Um outro exemplo mitológico é o do deus Agni, o Fogo, luminoso por essência, como consubstancial com a Serpente Ahi, das Trevas Submundanas e homóloga de Vrtra, o Dragão. No Rig Veda, Agni é chamado de Serpente Furiosa, e assim como Agni é consubstancial a Ahi, Ahi é da substância de Agni — ou seja: a Serpente é uma virtualidade do Fogo da mesma maneira que as Trevas são Luz não manifesta. Agni, assim, é Fogo tal como a Serpente que sobe se arrastando das fendas da terra: ele brota, desponta de súbito e num filete ardente, da matéria inerte e opaca, como Vida que vem da Morte. No Rig Veda, o fogo recém-acendido é descrito como sem pé e sem cabeça, ou sem as extremidades, à imagem da Serpente Enrolada, ou Ouroboros, cuja separação está nas bases do processo de fragmentação que possibilita a Criação, vinda da segmentação da Unidade Primordial.
A conexão da Serpente com o Fogo, que verterá nos dragões mitológicos, e da ideia da Serpente como o Fogo Interno, ou subterrâneo, e da sua troca de pele como símbolo das transformações espirituais do homem, pode se associar, muito primitivamente, às imagens dos Serafins, que são as serpentes abrasadoras e anjos de fogo do Antigo Testamento (Isaías 14:29), e do Querubim, que esteve entre os fogos no Monte Santo de Deus e que caiu ao Mundo como Serpente, e às imagens edênicas, sobretudo da tradição judaica, da pele ígnea, ou luminosa, de Adão e Eva, que foi perdida quando da queda pela tentação luciferiana. Essa mesma imagem, de perda da pele da morte para o revestimento de uma pele nova, aparecerá em Paulo, principalmente em 1 Co 15, sob uma roupagem escatológica, como a recuperação pelo Segundo Adão, de Corpo Glorioso, da antiga glória do Homem.
(28 de janeiro de 2023)
O Querubim, a Serpente e a Árvore da Vida
Dois emblemas antigos associam a Serpente macho ao leão-pássaro, também conhecido como Querubim.
Um deles, sírio-hitita, mostra Gilgamesh duplicado atuando como guardião de um santuário. Esse santuário é simbolizado como axis mundi, o pilar cósmico formado por uma serpente enrolada — o conjunto se refere à Árvore da Vida. No topo dela e acima de dois chifres está um sol cercado de quatro círculos que simbolizam os Quatro Rios do Éden e que são o sinal da totalidade cósmica — os Quatro Quadrantes do Mundo. À esquerda dessa cena, está o leão-pássaro, o Querubim, conduzindo o dono do selo. O Querubim segura numa mão um balde e na outra, a direita, um ramo. Após ele e o dono do selo vem a deusa, a Grande Mãe. Na base da imagem está um entrelaçado labiríntico, o Submundo. O balde, mais próximo do Submundo, simboliza a água e o caos criador. O ramo, erguido, parece simbolizar o espinheiro, símbolo do fogo e também da axis mundi.
O segundo emblema vem de Lagash e é de 2025 a.C. Ao seu centro estão duas serpentes entrelaçadas, o aspecto dual do Senhor da Árvore da Verdade, chamado de Ningizzida, a Serpente macho, consorte da Grande Mãe. Portando um bastão cada, há dois dragões, ou leões-pássaro (Querubins), guardando a Árvore.
A conclusão que se pode ter é a de que Querubim e Serpente estão desde muitos milênios simbolicamente articulados. O Querubim (ou um par deles) aparece aqui como guardador da Árvore da Vida. A função do Querubim é precisamente essa: cobrir/proteger a Glória de Deus (Ez 28), ou guarnecer a Árvore da Vida. De alguma maneira, Satanás desviou Adão e Eva da Árvore da Vida conduzindo-os à Árvore do Conhecimento. Contudo está claro no texto bíblico que ele, já caído do Céu, não estava no Éden como guardador da Árvore da Vida, mas como inimigo de Deus. Eu penso que são o Homem e a Mulher, Imagem de Deus, os “querubins” responsáveis por guardar e cultivar o Jardim, inclusa a Árvore. Mas tal como Lúcifer, o Querubim guardador da Glória, caiu, Adão e Eva, guardadores do Jardim, caíram. Quando a porta do Jardim foi fechada pela Espada de Fogo, significa que Adão e Eva, já não mais guardadores da Árvore, agora eram seus inimigos.
Como já argumentei aqui em junho desse ano, a Árvore da Vida foi simbolizada no Templo de Salomão, guardada na Arca da Aliança, no interior do Santíssimo, e guarnecida por dois querubins. Trata-se do Cajado de Arão. Como dito, Querubins são flamejantes, solares (leão-pássaro) e se a Arca e a Árvore são simbolicamente guarnecidas por eles, é natural que quem tocasse a Arca (banhada de ouro [símbolo do fogo]), padecesse fulminado.
(19 de novembro de 2021)
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 6 de Abril de 2023.