Monoteísmo Implícito
a experiência do Ser na religião primitiva
Como foi dito ontem a respeito do pensamento de Battaile (2015), dada a incognoscibilidade da Natureza (o homem jamais poderá conceber um mundo sem consciência, sem nosso traço significador, nomeador, adâmico), só se pode conceber o Nada em termos poéticos. O que é esse Nada? É como o Caos para Eliade (2010), é a Natureza tomada como um todo pré-cultural, pré-verbal, como o terreno do terror numinoso, atordoante, massivo. Natural e Sobrenatural necessariamente se fundem — no Caos, perambulam anjos e demônios, elfos e outros duendes, e também lobos uivantes. Na Cidade, onde há Ordem, pois há Cultura, se entronizam os deuses do Templo — mas o Templo vem depois da Montanha, a Acrópole chega mais tarde do que o Olimpo. Daí o inexprimível e dionisíaco Natural, poético, ser metafórico e alegórico, tal como serão os deuses culturais do panteão apolíneo. Eis a distinção entre os dois Sagrados: o Caos e a Ordem (Fluxo/Natureza e Forma/Ideia) hierofânicos, não profanos, pois não triviais.
O homem, ao olhar para o Nada, necessariamente intuiu um fundamento espiritual universal
Os filósofos gregos, que assumiram de modo consciente a qualidade metafórica e analógica dos deuses (TARNAS, 2003), acabaram redescobrindo um certo monoteísmo universalista primordial (VOEGELIN, 2014), visto o recurso à alegoria demandar uma unidade primeira, objeto último de todas as referências analógicas — deve haver uma “unidade verbal”, ideal, um Logos no fundo da Realidade (FRYE, 2021). Antes de se conceber a ideia do Ser, que é produto do desenvolvimento da inteligência, o homem, ao olhar para o Nada, necessariamente intuiu um fundamento espiritual universal, um Todo predecessor de qualquer distinção posterior, uma onipresença divina capaz de manifestar-se em “pontos quentes”, naquilo que Cassirer denominou de “deuses momentâneos” (manifestações hierofânicas) — os “deuses momentâneos” que perseveram tornam-se “deuses especiais”, recebendo um nome, donde se transformam em “deuses pessoais”. A essa base primordial de Não-Eu, culturas ancestrais chamaram de Mana, de Ka, de Moira… uma potência impessoal e universal capaz de “energizar” aspectos do visível — deve-se discutir se estaria ou não associada a uma divindade uraniana primeira, criadora, monoteística, como El, Ur, Pai Dia…
“A excitação espiritual provocada por um objeto que se nos apresenta no mundo exterior, é, ao mesmo tempo, o empuxo e o meio de denominar. As impressões sensíveis são as que o eu recebe ao encontrar com o não-eu e, dentre elas, as mais vivazes tendem por si mesmas à explicação vocal” — Cassirer, 2013
Uma vez nomeada a perseverarão hierofânica com o nome da atividade ou da coisa em si (cada instrumento e processo de trabalho agrícola, por exemplo, podia ser um deus especial), aos poucos o nome se separa da coisa e se liga à personalidade de uma entidade independente — esse é o deus pessoal. Quando o progresso linguístico torna os nomes desses processos, dessas coisas particulares, desses “deuses especiais”, ininteligíveis pela falta de uso (pense em mudanças culturais e tecnológicas), os deuses destacam-se dos processos e, portadores de nomes que já não mais encontram referência direta em procedimentos determinados, passam a se configurar como entidades autônomas, similares aos próprios entes humanos. Com a pessoalização dos deuses, a própria intuição de uma divindade universal pode adquirir conotações pessoais, estabelecendo-se uma consciência última e derradeira da qual as divindades, as pessoalidades menores, os diversos nomes, são apenas representações pontuais. Chega-se a uma divindade universal quando se volta ao inexprimível.
“Cada deus pessoal reúne em si uma profusão de atributos que originalmente pertenciam aos deuses particulares, os quais encontraram nele a sua síntese […]. Assim, guiado por ela [pela tendência para o geral], o pensamento mítico-religioso chega a um ponto onde já não lhe basta a multiplicidade, variedade e plenitude concreta dos atributos e nomes divinos, mas onde a unidade da palavra lhe serve de meio pelo qual procura alcançar a unidade do conceito de Deus. Mas nem mesmo neste plano se detém este pensar; tende a ir além, até um Ser, que, assim como não é circunscrito por nada de particular, tampouco pode ser designado por qualquer nome. Com isto se completa o círculo da consciência mítico-religiosa, pois, como no início, a consciência está agora diante do divino, em face de algo inefável, de um sem-nome. […] De todos os meios da linguagem, só restaram as expressões pessoais, os pronomes pessoais, para a Sua designação: ‘Eu sou Ele; Eu sou o Primeiro e o Último’” — Cassirer, 2013
BATTAILE, G. Teoria da Religião. São Paulo: Autêntica, 2015.
CASSIRER, E. Linguagem e Mito. São Paulo: Perspectiva, 2013.
ELIADE, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
FRYE, N. O Grande Código. Campinas, SP: Sétimo Selo, 2021.
VOEGELIN, E. História das Ideias Políticas IV. São Paulo: É Realizações, 2014.
Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 29 de setembro de 2021.