Na Fronteira do Mundo

o misticismo cristão no limite da existência

Natanael Pedro Castoldi
5 min readSep 29, 2021
St. Jerome Reading in the Countryside , Giovanni Bellini

Muito me tem impressionado a figura do santo cristão, do místico, daquele que vive alheio ao fluxo massivo da Cidade.

O tipo humano do santo ocidental é herdado do profeta e o eremita do Oriente Próximo. Há cerca de 14 mil anos, houve um aquecimento do clima na região do Oriente Médio e os animais migraram para a Europa e para a Ásia, que conheceu o clímax de sua macrofauna. Além do declínio da caça, o aquecimento trouxe condições mais ideais para a produção de cereais, que se tornaram a base da alimentação de muitas aldeias. Remonta há 11 mil anos o trabalho desses orientais na seleção de grãos para a agricultura que, visto a caça estar escassa, também domesticaram rebanhos, guardados em apriscos e celeiros para que fosse garantido o suprimento de carne e, mais adiante, de leite. O desenvolvimento precoce da agricultura e da pecuária estimulou o ajuntamento humano e viabilizou a formação da primeira sociedade citadina do mundo. É ao redor da Cidade que o Oriente Próximo se desenvolveu.

Há um outro fator que levou o ethos da Cidade a ser gestado na região: a umidificação do Oriente Médio em função do aquecimento do clima, transformou áreas de vales em terrenos férteis, com vegetação farta, mas não alterou substancialmente a maior parte do cenário, que seguiu extremamente árido. Há um termo hebraico até mesmo para o deserto estritamente mineral. A pouca disponibilidade de boas terras e a precocidade do desenvolvimento das cidades, produziu uma cultura baseada na modelação excessiva do ambiente natural, que pode ser ilustrada pela criação dos jardins, dos chamados Paradeisos, propriamente recintos fechados, como o Éden, dentro dos quais a distribuição vegetal era calculada, visando a beleza e a produção de frutos, e também possibilitando a observação de aves, de outros animais selvagens e do céu noturno.

Essa submissão do meio natural à ação constante dos homens constitui a principal inovação do Oriente Médio neolítico, berço da agricultura intensiva”— Vallet, 2002, p. 15

A Cidade, baseada na agricultura, nasce inserida num dilema ético. Os caçadores da macrofauna, como os europeus neolíticos, viviam em pequenos bandos oportunistas, sempre dispostos a predar os animais que aparecessem em seu caminho. Os agricultores, contudo, deveriam renunciar ao consumo imediato e ao oportunismo em favor do planejamento e da espera pela colheita futura. Isso favorece uma estrutura cúltica ligada às beatitudes da vida eterna contra os prazeres do presente. Mas o ajuntamento excessivo de homens em amontoados de casas, favorecia todo o tipo de dissolução às ocultas, de roubos, de adultérios, de ganâncias e de cobiças, inclusive porque a abundância era maior do que nas pradarias. A própria proxemia, o contato imediato e contínuo entre as muitas pessoas, gerava um desgaste que pedia por expiação, por apaziguamento ritual.

Ao lado dos estreitos vales aluviais, como o Nilo, o Jordão e o Tigre, repousavam plenos e perenes os desertos. O monolitismo da paisagem árida, imensa e uniforme, é também mobilizador de sentimentos éticos, baseados do assombro da pequenez humana diante do Mundo, da posição do homem frente à vastidão numinosa. Os ermos estavam, pois, ao alcance de poucos passos, e aqueles que, estimulados pelo impacto visual do horizonte infinito e pela natureza moral do modo de vida da Cidade, desejassem se afastar de suas degenerações, poderiam muito facilmente se isolar em fendas, em montes e em ribeiros silentes. Toda a configuração geográfica, econômica e sociológica do Oriente Médio viabilizou contínuas revoluções espirituais, quase sempre fundadas na oposição à Cidade. Um exemplo dramático disso foi o abandono da grande cidade de Tebas e de seu complexo Templo-Palácio para a fundação da pequena cidade de Amarna, bem no meio do deserto, onde Akhenaton procurou honrar Áton, o Único Deus. Foi no deserto, também, que Maomé recebeu a sua revelação, aumentando a oposição da cidade de Meca. Foi no ermo que Abraão experimentou Iavé e foi no meio do nada que Moisés viu a sarça ardendo. Também foi dos desertos que João Batista clamou, e para lá Jesus se retirou.

A oposição religiosa entre o deserto, habitado por espíritos imateriais, bons ou maus, e a cidade, povoada por ídolos de pedra e sacerdotes, era comum nessa região, onde surgiram as primeiras cidades do mundo.— Vallet, 2002, p. 18

No História da Solidão e dos Solitários, Minois (2019) demonstra com que desconfiança tendiam a ser tratados os eremitas na Antiguidade. Tidos como antissociais, sua conduta de rejeição à Cidade abrangia a opção pela castidade, pois a geração de filhos demandaria a perpetuação de herança e, portanto, de propriedade. No A Comida como Cultura, Montanari (2008) descreve a rejeição dos ermitões às comidas e aos prazeres da Cidade como uma clara demonstração da revolta com a Cultura. Negar carnes assadas, grãos cultivados e bebidas fermentadas era, para muitos deles, a fuga dos produtos da Cidade — evitavam, assim, ingerir qualquer coisa que não fosse lhes dada exclusivamente por Deus, o legítimo semeador das ervas do campo. Além disso, a negação dos prazeres da boa comida era um exercício de privação ascética — daí alguns dos Pais optarem por dietas sempre mais extremas. Michel de Certeau (2015), no A Fábula Mística, narra a história de monja muda, de perfil místico, que bebia apenas as águas das panelas que lavava e comia apenas as migalhas que sobravam na cozinha do convento. Essa monja, chamada também de louca, estava no limite da vida e, uma vez que seu corpo material era mantido e feito pelo alimento que consumia, entendia que ele era constituído de sujeira e dos farelos, daquele Nada desprezível.

Na imensidão mineral, una, ele fica exposto apenas às questões últimas

Eis a condição do santo cristão de estirpe antiga e medieval: ele está sempre na fronteira, no limite do nada, do vazio, no extremo último da existência. Ao negar a Cidade e as suas quantidades, ao se afastar das multidões e de suas pequenezas cotidianas, vai nu à imensidão, que o quebra, que o esmigalha, que o refaz doutro modo. Enquanto a Cidade flui em direção a pães quentes, carnes gordas, almofadas novas e oportunidades de sexo, e as pessoas de lá ocupam seus pensamentos com os afazeres de amanhã, o eremita está sozinho no Limiar. Ali, fora da Cultura, sem instituição, sem mediação, ele jaz inclinado para dentro do Sobrenatural. Por isso é perturbado por demônios e servido por anjos. Na imensidão mineral, una, ele fica exposto apenas às questões últimas, prestes a escorregar da Vida para a Morte, do Terror à Beleza, do Nada ao Todo, do Vazio ao Tudo. Está, ao fim e ao cabo, ao pó e às cinzas vendo a Deus e, portanto, oscilando do Êxtase à Crise, já que o contato direto do Homem com o Criador varia facilmente da sensação de completude, de estar sendo visto e querido pelo Senhor, à sensação mórbida e terrível do abandono, que vem com o silêncio divino. Não há, por conseguinte, como essa relação não ser sempre Ética: aos pés de Deus, o sujeito está à mercê do julgamento, já que habita desnudo à sombra imediata da Verdade.

CERTEAU, Michel de. A Fábula Mística. São Paulo: Forense Universitária, 2015.

MINOIS, G. A História da Solidão e dos Solitários. São Paulo: Unesp, 2019.

MONTANARI, Massimo. A Comida como Cultura. São Paulo: Senac, 2008.

VALLET, Odon. Uma Outra História das Religiões. São Paulo: Globo, 2002.

Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 25 de setembro de 2021.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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