Nekyia

Ou a crise da meia-vida na casa dos 30

Natanael Pedro Castoldi
5 min readOct 11, 2024

Observa-se que a meia-vida do homem, posta como ponto quiasmático nos 36 anos, é acompanhada de uma crise de tendência introvertida, crise essa que perdura entre quatro a seis anos, convencionalmente dos 35 aos 38 anos e não raramente antecipada ou postergada. Para o homem de gênio, ou de ideias, essa crise é vivida com maior lucidez, porque ela adquire, nele, um sentido menos material e mais espiritual, dado o seu próprio temperamento e a inclinação de seu intelecto, e redundará em um drama de envergadura cósmica, radicado em questões universais, que ora adquirem uma tônica sobremaneira pessoal e intimista: é ele mesmo que se vê sob o peso da Realidade, aos pés do Juiz implacável, sendo medido nas balanças do Criador, e tudo converge na visão do Todo e na visão de seu próprio lugar no cerne do Mundo. Tudo o que viveu e aprendeu, e que deve tê-lo vivido de maneira mais extrovertida ou objetal, agora se amontoa em sua mente como confusão, e ele precisa encontrar o fio de ouro que dará sentido e lugar a todo o sabido e a todo o vivido e que o legitimará, em sentido de acerto de contas, mediante o porvir — porque sente, nesta altura, o ardente dever de dar um bom curso à segunda metade da sua caminhada. Deverá, pois, saber quem é e assumir corajosamente os termos de sua Visão, porque já não pode mas ignorá-la sem severa culpa e angústia existenciais e não pode mais trocá-la facilmente pelo prato de lentilhas da aceitação social e de “classe”, deixando de dar cabo de sua Vocação.

Nesta hora de encruzilhada, todavia, ele corre o risco de sucumbir. Os espinhos dos inúmeros afazeres da vida e das pressões de rebanho podem sufocá-lo e acovardá-lo, levando-o a rejeitar a oferta e a ignorar a demanda para que possa seguir pelo caminho largo, na via das multidões, e manter-se como mais um a sobreviver neste vale de sombras. Ele estará optando, então, por uma vida regulada segundo parâmetros horizontais e materialísticos, e então precisará, agarrado às coisas, significar sua curta vida nos termos de progressão acadêmica e profissional, com titulações e promoções, sem os quais e sem essas distrações ver-se-á rapidamente submergindo nos abismos da falta de propósito, cujos vultos se somam no horizonte, porque os custos da rejeição da Vocação quererão um dia ser cobrados — ele, afinal, não atendeu à crise que nele se instalou. Mas se ele porventura decidir assumir os termos da crise, encontrar-se-á na trama de seu verdadeiro destino.

… se ele assumir os termos da crise, encontrar-se-á na trama de seu verdadeiro destino.

O homem que aceita o chamado da crise e que se permite ingressar nas suas sombras, viverá o que se convencionou chamar de Nekyia, o episódio da Odisseia, de Homero, no qual Ulisses desce à Morada dos Mortos. Não agarrado às exterioridades, será, então, arrastado para dentro de si mesmo, açoitado por uma revisão de todas as suas ideias, dilaceradas pelo peso da própria Realidade, ou da Verdade, e já não conseguirá mais enganar a si. Como que perdido nalgo do Tempo Absoluto, que é o tempo interior, estará às voltas com seu passado, com o que chegou a pensar, a dizer e a fazer, e sentirá vergonha de si mesmo, ao mesmo tempo em que entenderá que tudo cooperou para que chegasse à Fronteira. Saberá, pois, reconhecer entre os refugos todas as pequenas preciosidades que acumulou e entenderá que toda aquela confusão de vaidades, de imaturidades e de frenesis militantes, esmigalhada e embebida das Águas do Abismo, servirá de lodo ou de húmus para a Vocação — a nova estrutura que vem da morte do antigo e que, se saberá desde o começo, busca sua ‘energeia’ naqueles sentimentos ou intuições velhas, negligenciadas, mas que sempre se mostraram mais próximas da Visão, o que significa que parte substancial desse processo será o que assumir a Verdade a respeito de si e descobrir o que fazer consigo mesmo.

Em todos os casos que estudei, dentre os quais Freud, Olavo, Jung e Tolkien, esse período foi marcado por uma recusa a todo o desnecessário e supérfluo: o desligamento, na medida do possível, da vida pública, da participação em movimentos e em determinados grupos e das amarras da Academia para um ingresso cada vez maior na solitude, dando preferência a ambientes isolados e longas horas de autoimersão, prenhes de leituras e estruturadas em disciplinas espartanas, as quais viabilizam as jornadas interiores com menores riscos de enlouquecimento, maiores benefícios em termos de insight e uma melhor capacidade de produzir algo duradouro e que fundamente todo o restante da Obra. Com o tempo e amplas renúncias, sobretudo as renúncias de antigos sofismas, a Nekyia começará a evidenciar os seus frutos em um pensamento denso, robusto, embora límpido, bastante pessoal e intimista, sem deixar de ser estranhamente universal e verdadeiro (não entro aqui no meandro da “verdade” em Freud). De todo o modo, notam-se mudanças substanciais na direção e na natureza das ideias, não como se seus gérmens já não existissem, mas como se estivessem sendo reconfiguradas em uma nova constelação, que vem a partir da dominação da Visão ou do aspecto do Mito que magnetizou o espírito do sujeito — é o sentido de Noção, conforme Giegerich.

… o desligamento da vida pública para um ingresso cada vez maior na solitude, dando preferência a ambientes isolados e longas horas de autoimersão…

Tolkien deve tê-lo vivido na época de Northmoor Road, quando apresentou uma necessidade extraordinária por solidão, com uma dedicação quase doentia à sua mitologia, e Jung o viveu, note que sugestivo, durante os anos da Primeira Guerra Mundial — enquanto toda a Europa submergia no sangue e na fumaça das trincheiras, ele descia aos infernos da própria alma e combatia uma extenuante batalha interior. Fê-lo por anos, de 1913 até 1917, e dela saiu ciente de si mesmo e de sua circunstância, munido de todo o substrato que energizou e norteou a inteireza de sua Obra — note que uso Obra como realização da Noção ou da Visão. Afundou em si mesmo aos 37 anos e voltou à superfície, saído do retiro de sua torre, aos 41. Notou, dessa experiência, um aumento de sua extroversão. Perceba que, em ambos os casos, essa jornada para dentro do Tempo Absoluto não redundou naquilo que se deu com Nietzsche, que ingressou na Nekyia, mas ali sucumbiu para sempre. Não: Tolkien e Jung nunca deixaram, nesses anos, de atender às responsabilidades civis e familiares, e mesmo profissionais, de maneira que não se permitiram um desligamento excessivo do Mundo Real. Com Olavo, o mesmo — ele próprio dizia que o filósofo deveria começar a expor a sua doutrina no tempo da maturidade, perto da casa dos 40, como foi o caso dele.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 9 de fevereiro de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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