O Éden do Medievo

a respeito da Mulher e do Dragão

Natanael Pedro Castoldi
7 min readApr 2, 2022

Notas sobre o tema redigidas e publicadas entre 17 e 18 de novembro de 2021, no meu perfil em uma rede social.

#1 — A Serpente, ligada ao Jardim, fora uma divindade masculina adorada no Levante por pelo menos sete mil anos antes da redação do Gênesis. No Louvre há uma peça de 2050 a.C., dedicada ao rei Gudea de Lagash, que faz referência ao consorte da deusa chamado Ningizzida, o Senhor da Árvore da Vida. A peça traz duas serpentes (note a dualidade) enroscadas num pilar e copulando (lembra o caduceu de Hermes, ligado ao conhecimento místico e ao renascimento) e dois dragões alados. Por isso penso ser simplista e até ingênua a interpretação de John Walton sobre a Serpente de Gênesis ser um tipo de trickster no imaginário do Oriente Médio — são fartas as suas conexões com divindades, sendo ela mesma divina. O conjunto Jardim (Árvore), Eva (“deusa”) e a Serpente macho (enrolada na Árvore, ou no Pilar), é padrão nos motivos religiosos mesopotâmicos e ao texto bíblico e não pode ser ignorado. O Gênesis mostra a Mãe de Todos os Homens não como divina, mas como pecadora, e a Serpente não como seu consorte, mas como inimiga do único Deus. Mas esse não é meu foco nesse momento.

A Serpente está ligada ao renascimento em função de sua mudança de pele e de seu ressurgimento das fendas da terra, nas quais se esconde. A Lua é o símbolo celeste do renascimento, enquanto a Serpente é o terrestre. A Lua mede os tempos e regula o ciclo menstrual, por isso está ligada à Vida e ao útero da Mulher. O útero está simbolicamente ligado às covas e cavernas. A Lua, além disso, rege as águas e regula a vida vegetal, que emana do solo — assim, ela cuida tanto das águas uterinas e de sua fertilidade, quanto das águas exteriores, que regam as margens. A Serpente também é senhora das águas e vive na terra, entre as raízes das árvores e ondulando até os córregos para beber. Por isso seu território simbólico é o Jardim! Ela sobe nos galhos e circula dos troncos, verticalizando-se, e é fálica, ou fertilizadora, já em seu aspecto visual. Sua conexão com a Mulher está também em sua qualidade de engolidora e retentora de conteúdos, assemelhando-se então ao sistema reprodutor feminino. Eis a perpetuação da dualidade da Serpente: Morte e Vida, Feminino e Masculino e, veja bem, Aquática e Ígnea. Há um fogo interior na Serpente, revelado em sua peçonha letal, e há uma qualidade atmosférica em sua verticalização e em seu bote fatal. Sua língua é bifurcada e sua natureza é terrestre e aérea. Fertiliza e Mata, Morre e Ressuscita — é o uróboro: a Serpente cósmica que morde a cauda, no ciclo eterno de destruição e recriação. Daí sua conexão com a Árvore da Vida. Nos mitos gregos, a Serpente protege a Árvore dos Frutos Dourados. Não dá para ignorar que a ação da Serpente no Gênesis é, de algum modo, obstrutora: ela desvia os homens da Árvore da Vida e da imortalidade.

Há dois mitos de indígenas brasileiros que remetem à qualidade fertilizadora da Serpente — quando as moças entram no rio e são fertilizadas pela Cobra Grande — e à qualidade atmosférica e ígnea — quando a flecha de um caçador era, na verdade, uma serpente peçonhenta muito similar a um galho de árvore (ela sempre caía em postura vertical).

Disso para a imagem do Dragão, da grande serpente alada que se esconde nas covas e que guarda um fogo terrível no peito, não é necessário muito esforço. Tanto é que os dragões já estão ligados à Serpente desde pelo menos 2000 a.C.

#2 — Tendo em vista o pano de fundo mitológico que esbocei na publicação anterior, parece-me fazer sentido pensar na Serpente como dracônica antes de ser amaldiçoada por Deus. Ora, se a Serpente sempre é lida como oscilando entre opostos, não faz sentido que o seu rastejar sobre o próprio ventre tenha sucedido um andar quadrúpede ou bípede. Se ela é lançada ao solo, com seu ventre inteiramente ligado ao chão, é viável que pensemos a sua queda como sendo a descida de uma condição alada e atmosférica para aquela telúrica, imersa no pó. A beleza da Serpente talvez estivesse ligada à sua glória draconiana. Não me é estranho pensar em Satanás sendo lançado do Monte Santo, do “Jardim Mineral” descrito aos pés do Trono de Deus, ao “Jardim Vegetal”, onde seria posta a Imagem de Deus, mas não perdendo de imediato qualidades tipicamente angelicais. Temos duas quedas luciferianas e cada queda é um novo rebaixamento: do Céu, do Ouranós, para a Atmosfera e da Atmosfera para a Terra (reino Telúrico). Uma terceira queda está reservada para Satanás: da Terra para Baixo da Terra (reino Ctônico).

A ligação da Serpente macho com a Mulher está preservada no folclore europeu

#3 — A ligação da Serpente macho com a Mulher está preservada no folclore europeu na imagem do Dragão que conserva para si a donzela. O Dragão comumente é macho, daí assumir o papel típico do Rei Louco, que acumula tesouros e mulheres para si de maneira avarenta, sem saber que uso lhes dar. Convém lembrar que o ouro simboliza o fogo e que o seu acúmulo no ventre da terra é similar ao acúmulo do fogo no ventre da Serpente. Não é sem razão que a Serpente das Hespérides está protegendo frutos dourados, numa fusão entre o conceito de imortalidade, a Árvore da Vida, e o Fogo — na mitologia nórdica as maçãs douradas mantém os deuses joviais. No conjunto do folclore medieval, os elementos do Jardim (Mulher, Árvore e Serpente) estão preservados: a Mulher é a donzela, a Árvore pode ser a Torre/Caverna (explico abaixo), ou a própria Mulher que gera o Fruto dentro de si, e a Serpente macho é o Dragão. Nesse caso, tal como o Dragão guardaria ouro para si, a Mulher passa a pertencer ao seu tesouro particular.

A substituição da Árvore pela Torre é altamente significativa. Há no folclore do leste europeu antiquíssimos costumes que conectam o isolamento da princesa, obrigada pelo rei, seu pai, a ficar retida num cômodo isolado e escuro, a uma tentativa de preservar-lhe a virgindade. É ancestral a conexão da virgindade com a divindade, sendo a virgindade um tipo de pureza quase sobrenatural, um tesouro a ser mantido bem fechado — em todos os sentidos. A prostituta sagrada, no mundo antigo, era considerada sempre virgem, pois à serviço dos deuses, e os homens se valiam de sua virgindade perpétua como meio de obter graça. Deve, pois, haver um “guardião” impedindo a passagem para “dentro”, se é que me entendem. A superstição entendia que se um facho de luz solar, do fogo celestial, descesse ao ventre da mulher, ela seria fecundada. Não muito distante disso está a chuva de ouro pela qual Zeus fecundou uma de suas amantes, a princesa Dânae, que foi aprisionada pelo pai numa torre de bronze para preservar-lhe a virgindade. Zeus escorreu como chuva por uma fresta no teto da torre. Nesse sentido, a Caverna é como a Torre: um recinto escuro e isolado que guarda em seu interior um tesouro, a donzela e sua virgindade, de exuberante fertilidade intocada, ligada à Vida como os frutos dourados guardados pela Serpente. Mas este fruto dourado, sagrado, está sob a vigilância do Dragão.

Não podemos esquecer, contudo, que a Serpente macho, um símbolo fálico e atmosférico (o elemento atmosférico está ligado à fertilização, à chuva), intenta tomar para si a donzela para ter sob seu poder a sua virgindade e, dessa maneira, poder tirá-la. Isso torna o combate empreendido pelo Cavaleiro contra o Dragão ainda mais significativo: movido por amor cortês, o Cavaleiro quer a donzela virgem para si e espera salvá-la para poder ser digno, aos olhos do rei, de casar-se com ela e gerar-lhe filhos. O combate contra o jovem heroico, atraente para a jovem dama, é o terror do Rei Louco, que quer aprisionadas suas mulheres de maneira que sejam inacessíveis aos demais pretendentes.

Quando olhamos as coisas sob tais perspectivas, entendemos que há muito mais elementos em jogo aqui do que meramente um “patriarcalismo”, que só vê a donzela em perigo e o “hômi” como salvador. Essa é uma visão ideológica e ridiculamente simplista. Esse esquema, herdeiro da imagética do Éden (Adão não “resgatou” Eva da Serpente macho), só funciona se a Mulher precisar ser resgatada — não há como a Serpente macho tomar para si o Cavaleiro e esperar que a donzela o salve. Isso não bate com nenhum arquétipo e não funciona enquanto símbolo.

#4 — Conversando com minha esposa (Gabrielle Castoldi) sobre um texto que publiquei ontem — a respeito das Três Quedas de Lúcifer (do Céu para o Ar, do Ar para a Terra, da Terra para Baixo da Terra) -, ela teve um insight sobre a estrutura do trabalho redentor de Cristo. A narrativa da Natividade nos traz com clareza a descida do Filho desde o Céu até o Ar (a movimentação intensa de anjos e a declinação da luz da Estrela sobre Maria), do Ar para a Terra (Nascimento e Ministério), da Terra para o Tártaro (Crucificação e Sepulcro). Estão aqui recapituladas (e tipificadas) as “três quedas” de Lúcifer, a falsa Estrela da Manhã. Mas Cristo não termina no Tártaro. Ele sobe do Tártaro para a Terra (Ressurreição), vai da Terra para o Ar (Ascenção) e do Ar para o Céu, onde está sentado à destra do Pai.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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