O Aborto e a Vereda Propiciatória

a busca por justificação no coração humano

Natanael Pedro Castoldi
8 min readApr 9, 2021
Le bienheureux Guillaume de Tolose tourmenté par les démons, Ambroise Frédeau

O Estado Moderno, na crescente escalada de secularização pós-iluminista, desenraizando-se sempre mais da religião cívica, ou do consenso cristão que Montesquieu (2010) põe como base da estabilidade republicana, vai se enveredando na direção do modus pagão. Se a função elementar do Estado reside na administração da Justiça e se, segundo Rushdoony (2018), a Justiça não pode estar separada da justificação, e sendo a culpa visceral um dado universal do espírito humano (Pecado Original) e a sede por perdão retificador tão presente quanto o número de pessoas que andam na face da Terra (Graça), a intuição de que há algo errado, imperfeito e injusto em tudo o que o homem é e faz nunca está longe de nós. Paradoxalmente, mesmo que compreendamos em profundidade e sutilmente que tudo o que somos e fazemos está misturado ao barro, sendo ilegítimo, não podemos ficar sem uma esperança de salvação — e esse apelo é tão grande que, ainda que Deus seja esquecido pelos homens e o Céu se feche, a salvação, ou justificação, continuará sendo procurada, nem que seja na criatura.

Não há auctoritas sem auctor, não há potestas sem auctoritas (CACCIARI, 2016). Nenhum poder é aceito pelos homens se não tiver autoridade e não há autoridade sem autor, ou sem uma fonte de legitimidade que deve ser, em última instância, transcendental. O ídolo não deixa de ser um tipo de transcendentalização do imanente, que é posto pelo mecanismo ritual e pela narrativa mitológica acima do mundo dos relativos apenas para servir de Auctor, aquele que cede a Auctoritas à Potestas, que legitima o poder e autoriza o Estado pagão a funcionar como um instrumento de justificação da sociedade, já que é um instrumento da Justiça. Isso significa que a origem e a existência do Estado são religiosas e que ele atua primeiro em um nível espiritual para apenas depois lidar com materialidades periféricas. A ordem que o Estado promove é sempre metafísica, pois moral, e se ele não está polarizado com a Igreja, absorve em si toda a função pística da sociedade, assumindo-se “Igreja”, como é o caso de todos os povos pagãos, nos quais o poder político e o poder religioso são inseparáveis, com primazia ao político, que instrumentaliza o outro, e também de todo o Estado ateu, que é anticristão e busca reduzir a Igreja a nada justamente porque compete com ela por um território comum.

Há similaridades entre os estados pagãos e ateus: uma vez que o Céu lhes está fechado, a busca da Auctoritas para a Potestas virá com a idolatria e a eleição de um Auctor. Mas, embora a idolatria se configure numa busca desesperada por dissipação da culpa, inerente ao abismo sem fim do Pecado Original, e carregue algum traço de apelo por Graça, ou perdão, que vem da justificação, esse mecanismo revela-se insuficiente — a culpa não se dissipa, a Graça não chega e ninguém se sente realmente justificado. Ora, se o mecanismo idólatra que visa atribuir ao Estado legitimidade enquanto instrumento da Justiça é ele mesmo insuficiente, o Estado, ao fim e ao cabo, se revelará como ilegítimo. Com o sentimento de ilegitimidade, cresce o de injustiça, e com a obstrução do sistema justificatório, que deixa de atuar eficazmente no esvaziamento periódico dos acúmulos de culpas e de pecados das populações e das instituições, sempre sujas de barro, invariavelmente nalgum momento se chegará no limitar do cataclismo moral, espiritual e político da nação, cada vez mais adoecida e embrutecida pela falta de sentido, de esperança e de perdão.

Noutros termos: sem Deus, sobra a vereda idólatra da absolutização do relativo, feito Auctor e legitimador do Estado, seu instrumento de Justiça, mas, contra a expectativa de salvação e frente à realidade do Céu fechado, a contradição que habita na relação dual do homem com sua obra, intuindo nela algo de decaído, mas tendo apenas ela como instrumento para justificação, chega ao limite do esfacelamento. Essa tensão se revelará na intensificação cada vez maior dos sacrifícios, sempre mais numerosos e mais frequentes, visto crescer no homem o entendimento de que o Estado é ilegítimo e seu sistema justificatório de apaziguamento da ira e de esvaziamento da culpa, ineficaz. Mais e mais grupos sociais são tomados como causadores da desordem irresolúvel e abatidos enquanto sacrifícios cruentos, feitos objetos da ira transbordante e do anseio cada vez mais gritante e doentio por justificação. A violência crescente desse desconforto social crônico conduz a justiçamentos de toda a espécie e a uma sobrecarga de excitações e humores alterados que pedirá, em turba, por mais violência e por mais sangue, e as pessoas entrarão em frenesis coletivos, em êxtases comunais, em vórtices de euforia orgiástica sempre que mais sangue puder ser vertido. A negação da ineficácia e da iletigimidade do Estado, dada a falta de esperança pela ausência de alternativas, coopera para o embotamento das consciências e a barbarização dos espíritos, cada dia mais broncos e insensíveis.

Contudo, como antecipado, um sistema insustentável não pode durar para sempre, já que é contraditório em si mesmo e incompatível com as reais necessidades salvíficas do homem. Os estados pagãos invariavelmente desembocaram em tiranias, pois, como afirma Rushdoony, a sua sobrevivência, uma vez perdido o apelo redentor entre as populações, passará a ser procurada pela imposição da força. Uma Potestas sem Auctoritas não pode ser aceita pelo homem, pois a ausência de Auctoritas, que revela a desconexão com o Auctor, indica ilegitimidade e impossibilidade de aplicar Justiça e de justificar. A Potestas sem Auctoritas, portanto, só poderá se manter artificialmente, pela administração da brutalidade e do medo.

Numa sociedade que já não mais partilha do consenso cristão (SCHAEFFER, 2013), a ilegitimidade justificatória do Estado dará lugar a um esfacelamento social crescente e ao empreendimento de uma série de iniciativas civis, feitas de grupos sectários e fanatizados, que visam, em compensação à falência do Estado Justo, expurgar a sociedade por seus próprios meios, revertendo-a à Justiça. Em nosso meio, isso aparecerá na substituição do apelo do Estado Nacional por movimentos militantes de caráter universal, internacional, ligados a ideias e a práticas revolucionárias, e também no florescimento de diversas seitas e heresias. O próprio Estado rapidamente se verá em papel subserviente, mero instrumento desses imperativos globalistas de revolução e reinauguração cósmicas. Mas toda essa mudança é meramente estética, aparente: o lócus da ilegitimidade apenas migra do Estado para o Mundo (MINOGUE, 2019). Não tarda e as tentativas de salvação global, enraizadas na atribuição de Auctoritas a novas Potestas, que são certos organismos internacionais e determinadas instituições, revelam suas vísceras imundas: também estão sujas de barro. Não importa o quanto os Estados se totalitarizem para, enquanto servos da Revolução, garantirem por vias burocráticas os caminhos da Justiça Global: a contradição e a ilegitimidade sempre aparecerão e a justificação jamais é sentida como plenamente realizada. Tenta-se melhor definir de onde vem a culpa profunda que assola o homem, assimilando-a a certas opressões sociais, mas nenhuma explicação abstrata e ideológica realmente satisfaz, e seguimos sem esperança. Sacrifícios em forma de abortos e de prostituição ritual, independente do quanto sejam tomados como panaceia, são aclamados com festivais bacantes num dia de euforias dionisíacas, mas na manhã seguinte o sol nasce sobre um vale de ossos secos e nada sobra senão uma melancolia sombria e desolada. Nada foi resolvido, mesmo após muitos milhões serem sacrificados e todos terem adentrado no caos informe da indiferenciação sexual de orgias públicas. O mundo não nasceu de novo, e nem o homem, e nos vemos um passo mais próximos do Tártaro, com mais culpa e com mais remorso.

Sacrifícios em forma de abortos e de prostituição ritual são aclamados com festivais bacantes num dia de euforias dionisíacas, mas na manhã seguinte o sol nasce sobre um vale de ossos secos e nada sobra senão uma melancolia sombria e desolada

A multidão de pecados não foi coberta e o preço não foi pago. O sentimento de culpa não pode jamais ser superado e, com ele, só se inflama o clamor por Justiça. Mas quem nos justificará? Sem Deus e com o reconhecimento incontornável que não há salvação, sobra um sentimento niilista deprimente e corrosivo, e o pessimismo pirrônico segura firme seu cetro de poder. Ninguém pode negar que o mundo é um vale de ossos secos e não há fantasia que nos desvie das moscas e dos vermes. Sobra-nos aceitar a realidade de um mundo sem Cristo e nos conformarmos à vida larval, dados aos impulsos, instintos e desejos mais baixos e ventrais. Hedonismos e bestialismos canibais se mesclam com uma postura que combina submissão e rebeldia. Por um lado, passo a aceitar do Estado qualquer coisa, contanto que me dê certas liberdades de expressar-me em minhas imoralidades mais doentias, me deixando viver sem esperança, mas sem a minha esperança, fazendo o que bem entender com o lixo de vida que me sobrou. Todavia, no fundo, não importa o que eu faça, sigo injustificado e culpado — é sem escapatória a minha sina. E se não posso ser justificado, pelo menos há algo que possa fazer para tentar realizar a Justiça: não havendo mais caminhos expiatórios, há, contudo, caminhos propiciatórios, e se não há salvação, pelo menos há punição. Para o homem injustificado, é impossível suportar para sempre a fuga do Deus Irado e chegará o momento em que preferirá ser destruído a suportar eternamente a própria miséria.

Algo de hedonismo pode residir aqui também, assim como todas as formas de conduta viciada, homicida e suicida. Mesmo que habite abaixo de um sorriso de prazer momentâneo, a prática aniquilatória carrega em si um fundo propiciatório: estou julgando a mim mesmo enquanto me destruo. Se os sacrifícios cruentos dos outros não satisfizeram minha sede por justiça, não podendo atuar como legítimos bodes expiatórios, talvez o sacrifício de mim mesmo, anulando a minha existência em função da destruição do meu corpo e da minha mente, façam algo pela justiça que procuro. Rushdoony (1995) entende que muitos movimentos militantes de nosso tempo bebem dessa fonte: sob pretextos superficiais, na verdade arregimentam pessoas desesperadas por uma culpa profunda e jamais resolvida e interessadas em dilacerar seus corpos e suas identidades. Outros movimentos militantes funcionam por outra vereda: se não há expiação para os homens e para a sociedade, que os homens e que a sociedade sejam punidos, desfeitos nas chamas inquisitoriais. O que é ilegítimo, quando não redimível, simplesmente não tem legitimidade para existir. Eis uma perspectiva ontológica para entender o que tem acontecido no mundo contemporâneos com muitas das nações mais depravadas, que parecem se lançar numa marcha insana, enlouquecida, em direção a todo o tipo de irracionalidade, mergulhando de cabeça em cada abismo que se abre ao longo do caminho.

Tamanho interesse na própria autodestruição e obsolescência, sempre acompanhado da turba eufórica, cheia de um prazer sádico, que parece vir de algum tipo de alívio por sentir que uma justiça profunda está sendo cumprida (a justiça que existe na própria aniquilação e dissolução da ilegitimidade da própria existência), só pode ser bem compreendido quando, misturado a todos os entendimentos nesse texto descritos, considerarmos esse impulso justificador propiciatório. É apenas assim que eu consigo ver com mais clareza a derrocada masoquista da Argentina, que festeja em êxtase a própria eliminação, indo ansiosamente dos infernos do comunismo, passando pela imolação dos milhares em lockdown, até culminar no assombro do aborto, com suas fornalhas sacrificiais. Mas esses bebês não são mais apenas sacrifícios tendo em vista alguma expiação: são objetos para descarrego de uma violência extrema, de uma excitação que se acumula, de um desconforto existencial que não tem solução e que, aprisionado, se adensa num poço de ira anticriacional, que se quer aliviar pela destruição e pela anulação de tudo quanto há.

CACCIARI, Massimo. O Poder que Freia. Belo Horizonte: Editora Âyné, 2016.

MINOGUE, K. A Mente Servil. São Paulo: É Realizações, 2019.

MONTESQUIEU, C. Do Espírito das Leis. São Paulo: Martin Claret, 2010.

RUSHDOONY, R. J. Cristianismo e Estado. Brasília, DF: Monergismo, 2018.

RUSHDOONY, R. J. Politics of Guilt and Pity. Vallecito, Califórnia: Ross House Books, 1995.

SCHAEFFER, Francis. Como Viveremos?. São Paulo: Cultura Cristã, 2013.

Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 30 de dezembro de 2020.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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