Apóstolo Paulo e a Distinção Entre Judeus e Gentios
A respeito do programa missionário paulino
É altamente improvável que o apóstolo Paulo, em Romanos 11, na medida em que distingue o remanescente de Israel, do qual ele mesmo faz parte enquanto israelita, dos gentios, não considere uma relação direta e objetiva do remanescente com Israel enquanto povo e nação. Não se trata, de maneira nenhuma, de uma mera alusão ao fato de que os primeiros cristãos eram judeus convertidos, uma vez que isso, acidental e não substancial, tornaria o evidente empenho de Paulo nesse argumento totalmente desnecessário, além de ir contra todo o precedente judaico para o uso do termo “remanescente”, que aparece, nas Escrituras, em 1 Reis, no contexto das conversações de Elias com Deus, e em Miquéias 4, nos oráculos proféticos do Dia do Senhor (Paulo, em Romanos 11, assume largamente esse profeta menor), assim como em grupos judaicos zelosos, como aquele de Qumran — comunidades como a do Mar Morto pensavam a si mesmas como aquelas dos últimos servos fiéis de Deus, enquanto toda a Israel afundava em apostasia, e o que se sabe da tentativa de acordo de Abraão com o Senhor para o desvio da ira que recaiu sobre Sodoma é que uma porção minúscula de justos era tomada como mostra suficiente e representativa de um povo inteiro. Além disso, há outros documentos cristãos primitivos, como atesta Craig Keener, corroborando o bom uso paulino: à semelhança dos precedentes qumrânicos, por exemplo, era comum que cristãos de matiz judaico (considere o contexto da Diáspora) acreditassem que aqueles que negassem o Messias Jesus, conjuntamente rejeitavam a Lei e os Profetas — representados na Transfiguração — e, dessa maneira, tornavam-se a Israel apóstata, enquanto eles eram o remanescente.
Assumir por fortuito o supracitado argumento do apóstolo é igualmente ignorar aquilo que transparece em sua práxis missionária. Paulo iguala, sim, em termos soteriológicos, a precondição salvífica para judeus e gentios, uma vez que apenas a Graça de Deus em Cristo é eficaz, e nesse sentido não há mesmo judeu e nem grego. Todavia, ele evidencia, em intenção e em ato, uma preferência pelo atingimento dos judeus, antes do atingimento dos gentios, pelo Evangelho. Nisso, o apóstolo repercute a Comissão de Atos 1, assim como a progressão soteriológica estabelecida por Cristo: começa-se em Jerusalém e por aqueles da Casa de Israel. Esse princípio acompanhou Paulo, na medida do possível, em quase todos os seus campos missionários — não é apenas por uma questão pragmática que ele sempre priorizava as sinagogas onde quer que ingressasse, apresentando O Caminho primeiro aos judeus e apenas depois aos gentios. Na realidade, do ponto de vista prático, apesar de a sua erudição se voltar mais ao pensamento judaico, através do farisaísmo, a preferência pelas sinagogas tendia a trazer-lhe mais problemas do que vantagens, porque a resistência dos judeus ao Evangelho, dados os seus escrúpulos religiosos, é recorrentemente apresentada como mais severa do que aquela dos gentios, às vezes até mesmo obstruindo as portas para a sociedade gentílica. Não se justifica, portanto, a hipótese pragmática.
Se Paulo o fazia sempre que havia uma sinagoga na cidade, é óbvia uma intenção de matiz não meramente estratégico, mas projetada para o cumprimento de uma demanda missional necessária, não supérflua. E ele o fazia previamente ciente de que esse empreendimento sempre estaria fadado ao fracasso, uma vez que Deus cegara e entregara à sonolência a absoluta maioria dos judeus — quer dizer, era aguardada a resistência, assim como eram aguardadas as implicações dessa resistência, com uma perturbação contínua, aparentemente desnecessária, na eficácia de seu trabalho apostólico. Todavia, sendo essa a vontade do Senhor, Ele garantiria o progresso, segundo o Seu querer, da comissão paulina. E o querer de Deus, naquilo que Paulo deixa claro em diversos lugares, mas sobretudo em Romanos 11, era duplo: despertar os israelitas eleitos, os remanescentes, de entre Israel (da Diáspora) e intensificar, através da resistência ao Evangelho, o endurecimento dos corações dos não eleitos, para conservar a Israel endurecida pela Lei incompleta na condição de agente propício e escatológico na Economia da Salvação. Uma vez que o Evangelho havia sido priorizado aos judeus em todas as partes e por eles massivamente negado, e uma vez separados de entre eles os eleitos, Paulo podia ofertar a Boa Nova aos gentios, não porque os gentios fossem uma espécie de “segundo plano”, mas justamente porque eram o objeto final, previamente estabelecido por Deus no Mistério da Graça ocultada na Lei e na conservação de Israel em condição trôpega. A Promessa do Senhor a Abraão, de uma descendência pela Fé tão numerosa quanto as estrelas, uma bênção para todas as famílias da Terra, se cumpre dessa maneira. “Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos!” — Rm 11:33
Pertencia à Economia da Salvação e ao momento escatológico a ida aos gentios sempre depois da passagem pelos judeus
Pertencia à Economia da Salvação e ao momento escatológico a ida aos gentios sempre depois da passagem pelos judeus e, desde a pregação aos gentios, constranger Israel ao arrependimento, porque a adoção dos gentios da parte de Deus era-lhe escândalo e motivo de inflamado ciúme — quando Paulo associa parte de seu propósito na pregação aos gentios à expectativa de “salvar” alguns judeus, donde, também, a sua preferência apostólica pelos gentios, entenda-se por “salvar” como a sua retirada da condição endurecida e condenatória. Os eleitos, por conseguinte, eram despertados à Verdade já num primeiro momento, por isso eram como primícias, outros ainda viriam posteriormente, por constrangimento. Essa visão piedosa para com os judeus, assim como a consideração de que todos os cristãos, enquanto Igreja, nasceram como enxerto por sobre o mais antigo tronco judaico, e de que os cristãos da maioria das localidades da passagem apostólica receberam o Evangelho objetiva e diretamente após a sua oferta e a sua rejeição da parte dos judeus, deveria conduzir uma vasta comunidade de cristãos romanos, a maioria dos quais já gentílica, não judaica, à humildade e ao bom trato com o remanescente de Israel que integrava com eles o Corpo de Cristo.
Que se possa compreender, repito, que a práxis evangelística paulina, enquanto expressão de missão sagrada, que é o sentido de missão apostólica, recapitulava localmente, como que ciclicamente, o aspecto macro e ontológico daquele momento da Economia da Salvação e da transição de dispensações divinas — em termos universais e de envergadura cósmica, o Evangelho fora primeiro entregue aos judeus, Cristo morreu e ressuscitou na redondeza de Jerusalém e os primeiros cristãos estavam firmemente instalados nos umbrais do Templo, já antecipados de que deveriam, a partir daquele ponto, se disseminar ao redor da orbis terrarum. Vê-se aqui, em Cristo, uma mudança de Éon, uma inauguração de Era, o início do Tempo da Paróquia ou da Peregrinação, num sentido que vai de Jerusalém para fora. Esse exato movimento, como éctipo, é “reencenado” ou atualizado / efetivado em cada parte, em todo o lugar no qual houvesse uma sinagoga ou um grupo de judeus.
Isso era assim porque, da rejeição contínua de Israel, a medida dos gentios ia se enchendo para que, uma vez cheia, Israel mesma fosse salva, ou libertada de sua sonolência, pela qual o enchimento da medida gentílica se tornara possível. Todavia, Israel não cairia para sempre. Quando se fala da salvação de “toda a Israel”, seguindo uma fórmula rabínica convencional, o que se quer dizer é que todo o remanescente e todos os israelitas que pudessem ser salvos pela integração à Igreja de Cristo, foram finalmente alcançados. A Aliança de Deus com Israel se cumprirá, então, através da Salvação pela Graça em Cristo Jesus, quando os pecados de Israel forem finalmente expiados.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 21 de Outubro de 2023.