O Arquétipo do Andarilho
O Homem Verde nas tradições
Em meus estudos de ontem em Edinger (Ciência da Alma), deparei-me com uma personagem intrigante: o Homem Verde, El Khidr, que se encontra com Moisés na 18ª sura do Corão. Embora não seja mencionado pelo nome [El Kihdr] no Corão, a tradição identifica a misteriosa personagem da sura com essa figura, nela [na sura] descrita como um servo justo de Alá, possuidora de excepcional sabedoria e de conhecimento místico. Em tradições islâmicas e não-islâmicas, El Khidr é tomado por anjo, por santo e por profeta, guardador do mar, ministro de ensinos secretos e ajudador dos homens. Sincretizado entre os armênios e israelitas, aparece nestes ora como Elias, ora como Samael, e, naqueles, como São Jorge e São João Batista, tendo também se misturado a figuras locais do Irã e da Índia.
Na 18ª Sura, o Homem Verde vem a Moisés na junção dos mares, após Moisés ter perdido um peixe que pretendia comer. Insistindo em acompanhar o Homem Verde para dele aprender a sabedoria, foi aceito, mas alertado de que não teria paciência com as ações de Khidr. De fato, Moisés questionou Khidr, assombrado com a natureza de suas ações destrutivas, pois testemunhou o Homem Verde afundando um navio, matando um jovem e retribuindo a falta de hospitalidade com a reparação de um muro. Em retorno aos questionamentos de Moisés, o Homem Verde explicou como cada uma de suas ações era de fato justa, apelando para razões desconhecidas por Moisés: o barco foi danificado para evitar que seus proprietários caíssem nas mãos de um rei mal; o menino era desobediente, e seus pais, fiéis, ganharam uma criança melhor em seu lugar; o muro foi reparado para resguardar um tesouro a ser descoberto por órfãos, quando fossem adultos.
A leitura da narrativa imediatamente me remeteu a uma das tradições judaicas coletadas por Bin Gorion (As Lendas do Povo Judeu), na qual o Homem Verde é substituído por Asmodeu, o Príncipe dos Demônios, um análogo de Samael: capturado por Salomão e no caminho de Jerusalém, Asmodeu derrubou uma árvore e fez desabar uma casa, mas poupou a casa de uma viúva, depois orientou a um cego, e em seguida a um bêbado, para que fossem pelo caminho certo, chorou ao ver a alegria dos jovens num casamento e, enfim, riu do homem que vira encomendar do sapateiro uma bota para sete anos e do mágico que realizava seus truques. Determinadas ações de Asmodeu são tão questionáveis quanto as do Homem Verde, mas no sentido de ele ter amparado homens bons e homens maus, pelo que é inquirido por Benaia, a quem responde: ajudou o cego, pois aquele que alegra o justo é digno; ajudou o ébrio, pois um malfeitor consumado só merece castigos, de modo que um momento de alegria na sua vida é uma pequena graça; chorou no casamento, pois vira que o moço morreria em trinta dias e que a moça deveria aguardar treze anos para casar novamente; riu-se da encomenda do homem ao sapateiro, pois ele só viveria mais sete dias; e riu do mágico, pois notou que ele foi incapaz de usar suas artes para adivinhar que havia um tesouro enterrado logo abaixo dele! Quando chegou a Salomão, que buscava dele o verme Schamir, útil para cavar os fundamentos do Templo, respondeu ao rei que o verme pertencia não a ele, mas ao “Príncipe dos Mares”.
… o Mago que vaga pela superfície da Terra observando e interpretando os homens e seus segredos mais íntimos…
É interessante como a tradição do Khidr nos remete à figura do Andarilho, do Sábio ermitão, do Mago que vaga pela superfície da Terra observando e interpretando os homens e seus segredos mais íntimos, e avaliando a real natureza de suas ações. Esse papel também é assumido pelo Opositor, divisado no livro de Jó como um atento perscrutador da humanidade, procurando brechas em sua disposição moral para ter do que acusar aos homens diante de Deus:
Então o Senhor disse a Satanás: Donde vens? E Satanás respondeu ao Senhor, e disse: De rodear a terra, e passear por ela.
E disse o Senhor a Satanás: Observaste tu a meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, temente a Deus, e que se desvia do mal.
- Jó 1:7–8
Em casos outros, esse vagante solitário, testemunha dos homens de todos tempos, porque separado da humanidade como se fosse externo a ela, é não tanto um acusador, mas um benfeitor, um auxiliador dos necessitados, sendo capaz, pois circula fora do regime da cultura citadina e de seus regulamentos, de encontrar uma raiz de legitimidade em ações que os “bons cidadãos” julgariam como más — Jó, separado da humanidade pela sua tragédia e pelo peso de seu embate com o Divino, exerce esse papel em sua própria consciência, defendendo-se das suspeitas e das acusações de seus amigos e também argumentando, como advogado de si mesmo, diante de Deus.
… quando os senhores se tornam ímpios, deposita no “forasteiro” um fator de ordem transcendental…
Um exemplo notável da envergadura desse arquétipo é o de Wotan, quando este é descrito como um andarilho solitário, sempre vagando pelos ermos e inesperadamente entrando nas cidades e aldeias, impondo uma aura divinal na persona do estrangeiro, cuja presença exótica, de aparição inesperada na comunidade e nas casas, é tratada com a desconfiança de ser ele o portador do demônio, que vem buscar aberturas hipócritas e más intenções como pretextos para fazer o mal, ou de ser um verdadeiro anjo, a quem é devida a boa hospitalidade — daí a depravação de Sodoma, pois os anjos, os “estranhos”, não são tratados com temor (Gn 19:4–5). Em todo o caso, o estranho é, via de regra, o objeto ideal para a projeção da Sombra, das culpas pessoais fundadas na má consciência e das expectativas punitivas de, exposto ao escrutínio do “olhar estranho”, ser achado em falta. Noutros casos, pode ser também o perfeito receptáculo para uma projeção do Si-Mesmo, na perspectiva de socorro divino ao sofrimento e à injustiça, quando se está na condição de vítima da opressão dos poderosos — porque a ocasião do degeneração da justiça local, quando os senhores se tornam ímpios, deposita no “forasteiro” o potencial de intrusão, na sociedade menor, de um fator de ordem transcendental, capaz de punir os líderes corruptos e de impor um novo regime de ordem e de lei.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 4 de fevereiro de 2025.