O Assombro do Messianismo

Do escândalo do Messias nos mundos judaico e cristão

Natanael Pedro Castoldi
12 min readOct 27, 2023
Aleksander Ivanov — A Aparição do Cristo para as Pessoas

Estudando algo mais da mística judaica, apercebi-me da ameaça incipiente do messianismo ao éon mosaico. A manifestação do Messias sempre está ligada, a partir do judaísmo do Segundo Templo, à emergência do Tempo Escatológico, ou dos Tempos Finais, em vistas do Fim da Era. O que significa que a expectativa judaica do Messias, segundo o demonstra o grosso da literatura apocalíptica, está impregnada de uma explosiva disposição antinômica, por assim dizer, uma vez que, da manifestação do Messias e da infusão do Eschaton no Mundo, fica em suspenso a História e caem por terra todas as estruturas socialmente relevantes — por definição, os poderes terrenos perdem legitimidade e serventia diante da revelação do Cristo (assuma “Cristo” como uso grego de “Messias”). Considerando que Messias, o Ungido, é sobretudo uma figura régia, e é Rei do Mundo, sua aparição demanda a queda de todos os reinos (em termos de legitimidade) e, uma vez que os reis sempre estão ligados à ordem cósmica, o reinado messiânico vem com a irrupção de uma nova ordem, uma Nova Criação.

Tudo isso já habitava há muito tempo os sentimentos populares dos judeus do tempo de Cristo, como vimos noutra ocasião a respeito da tentativa de fundação de uma comunidade de estilo qumrânico pelas multidões que seguiam a Jesus, no ermo. Daí a expectativa apreensiva e a resistência todo criteriosa das autoridades judaicas ligadas ao complexo templo-palaciano — sabia-se e sentia-se que a chegada do Messias significava uma suspensão de todas as atividades políticas e religiosas temporais, e não devemos ignorar o constrangimento e o terror íntimos que se escondiam sob os corações saduceus e sacerdotais, sem dúvidas cientes do quão questionável poderia ser o Templo herodiano. O Messias viria, então, não apenas para expulsar os invasores romanos, mas possivelmente para também derruir o próprio Santuário.

Os fariseus, mais abertos ao Eschaton, associavam a manifestação do Messias e a instauração do Seu Reino Eterno à ressurreição dos mortos, mas eram incapazes, assim como os judeus populares, de ver qualquer tipo de ressurreição de matiz escatológico como sendo um evento infrahistórico — eles claramente reconheciam retornos à vida no passado, como vemos sendo realizados por profetas, mas num sentido de continuidade imediata da vida profana, e não davam lugar à ressurreição massiva e em corpo refeito senão ao tempo pós-histórico, que é o Tempo Messiânico e o Milênio. Dessa maneira, assim que Jesus Cristo ressuscita Lázaro, já há três dias na sepultura e, portanto, em estado de decomposição física, uma agitação se instala em toda a Judéia, e multidões recebem-No em Jerusalém como a um rei, de fato o Rei Messias, e levanta-se a sombra, junto da chegada da Páscoa e da memória da libertação do Egito, da insurreição antinômica — porque a demonstração de Cristo da rejeição ao Templo herodiano e de seu sistema administrativo, pareceu às autoridades um prenúncio daquilo que as multidões fariam ao Santuário quando se inflamassem apenas um pouco mais.

As suspeitas de uma suspensão da aplicação temporal da Lei no advento da emergência do Messias permeiam os Evangelhos, nos quais encontramos diversos desafios farisaicos ao Cristo, pelos quais intentavam encontrar n’Ele alguma rejeição explícita aos Estatutos de Deus, para poderem acusá-Lo de ser falso mestre e mesmo falso messias. É paradoxal esse ponto, uma vez que o sentimento de que o verdadeiro Messias suspenderia o uso temporal da Lei era exatamente a geratriz dos desconfortos farisaicos para com Jesus. E não é de se surpreender que Cristo realmente põe em suspenso os usos temporais da Lei e seu intrincadíssimo sistema de aplicações severas e inumeráveis para cada setor da vida ao resumi-la, em semelhança ao que fizeram certos rabinos expoentes, ao amor a Deus e ao amor do próximo, pelo que desafiou diversas normativas farisaicas, como leis relativas ao Sábado. Não fossem as suspeitas de subversão messiânica da Lei, Cristo não teria precisado dizer aquilo que lemos em Mateus 5:17–18:

Não penseis que vim revogar a lei ou os profetas; não vim revogar, mas cumprir. Porque em verdade vos digo: Enquanto não passar o céu e a terra, de modo nenhum passará da lei um só i ou um só til, sem que tudo se cumpra.

Assuma-se, por conseguinte, a complexidade dos sentimentos judaicos do Primeiro Século. Não se buscava inquirir Jesus apenas para demonstá-Lo como transgressor, mas para testar a validade de Suas afirmações messiânicas, procurando capturá-Lo nalguma contradição ou nalgum escândalo, porque era mister que todas as precauções e todas as reservas fossem assumidas mediante tão delicada e tão arriscada circunstância. Havia o sentimento de que, uma vez coroando-O como o Ungido, de fato a inteireza do sistema jurídico e religioso de Israel seria abalada e abrir-se-iam as portas para a infusão do Eschaton em toda a face da Terra, com a suspensão da totalidade das amarras temporais, já que se conheceria, então, o Milênio, ou o “tempo” Pós-Histórico. Como os fariseus não puderam capturá-Lo em contradição e erro, o que invalidaria as qualidades salomônicas da Inteligência do Messias, e como Jesus conseguiu demonstrar-Se como o próprio cumprimento da Lei e dos Profetas, o seu fechamento ou a sua finalização em termos de ressignificação total, procuraram n’Ele sinais de pecaminosidade — donde os apontamentos de Seu andar com figuras subversivas e os modos que Ele permitia aos seus próprios discípulos. Contudo, acusações tais tinham serventia nos termos jurídicos e religiosos em vigor, para minar a opinião popular e viabilizar uma potencial condenação formal de Jesus, mas não eram argumentos eficazes para contestar-Lhe enquanto Messias, já que pertencia ao éthos messiânico algo de escândalo, baseado na supracitada suspensão de certos imperativos temporais e a ressignificação do sentido convencional da Lei. E se os discípulos comportavam-se sem “modos” e subvertiam normativas relativas ao Sábado, era porque eles já viviam no Tempo Escatológico, na medida em que estavam junto do Messias, e atuavam à semelhança dos veterotestamentários profetas, quando em comissão sagrada, e do próprio rei Davi, que comeu os Pães da Proposição.

Não se trata exatamente de Cristo contestando desvios farisaicos da Lei para uma recuperação da Lei mosaica em termos exódicos, mas do cumprimento mesmo da Lei enquanto Éon

Note bem: o sentido de Mateus 5 é eminentemente escatológico, e os fariseus o sabiam. Não se trata exatamente de Cristo contestando desvios farisaicos da Lei (embora os houvesse) para uma recuperação da Lei mosaica em termos exódicos (à semelhança dos apelos proféticos), mas do cumprimento mesmo da Lei enquanto Éon, se pudermos dizê-lo assim. Aos judeus, como o apóstolo Paulo diz em Romanos, estivera vetada toda a possibilidade de enxergar o cerne ou o princípio da Lei, o Mistério que Deus conservou ocultado nela, a saber, a Graça pela Fé em Cristo Jesus, de maneira que a Lei fora-lhes, por milênios, intérmina e, por conseguinte, impraticável — assim sendo, não há propriamente um erro farisaico, mas o prolongamento extensivo das implicações da Lei tal como inteligível pelos judeus. O Senhor Jesus cumpre-a no sentido de ser a revelação do Mistério da Graça, o princípio e o fim da Lei, de maneira que Ele não a revoga, mas a revela em sua inteireza, e o faz sobretudo com Sua Morte, prenunciada na Transfiguração e junto de Moisés e de Elias. Embora aos fariseus, principais interlocutores de Cristo, tal clareza em Mateus 5 ainda não fosse possível, sem dúvidas eles compreendiam que Jesus falava enquanto Messias e o apreenderam em termos escatológicos. Ainda assim, as implicações seculares e políticas de suas lideranças impediram-nos, enquanto partido, de avançar pacificamente nesse entendimento.

O principal fator de condenação de Cristo foram a Sua postura e as Suas palavras a respeito do Templo. Quando prenunciou a destruição do Templo, Jesus falava segundo o sentimento escatológico: Ele, ressuscitado ao Terceiro Dia, edificaria a Sua Igreja, o Verdadeiro Templo, no Seu próprio Corpo, do qual os Seus seguidores eram como que pedras santas, e também apontava para a Jerusalém Celestial, o Templo Cósmico aguardado para após o Tempo do Fim, ou a Era Escatológica, que Ele mesmo inaugurava. Os fariseus e os saduceus, todavia, não quiseram compreendê-Lo nesses termos e, tementes da insurreição popular, puderam associá-Lo a figuras rebeldes tais como Barrabás. Tudo sugere que as multidões da Entrada Triunfal não foram exatamente as mesmas que se aglomeraram para pressionar Pilatos — o Templo tinha meios de cooptar um grande número de pessoas para tal. E quando Cristo, tendo se rendido aos guardas do sumo sacerdote, não alimentou a rebelião intentada por Pedro, a maior parte dos discípulos se escondeu, assim como se dissipou a multidão de Seus apoiadores.

Desse modo se sucedeu até a ocasião da Ressurreição em Corpo Glorioso — todo o tempo no qual Cristo perambulou entre os discípulos, após a Ressurreição e até a Ascenção, foi sentido como um período de suspensão temporal e de todos os compromissos mundanos. O símbolo disso é a aparição de Jesus aos discípulos que pescavam, ou seja, que retomavam a vida profana, e a realização da Pesca Milagrosa — sinal para que nunca mais regressassem às redes de pesca e para que se dedicassem até seu último suspiro à propagação da Boa Nova, já que eram “pescadores de homens”. A Igreja viveu no Tempo Eterno até algumas décadas depois da Ascenção. Por isso os cristãos convertidos no Pentecostes estabeleceram uma comunidade de estilo milenarista, como uma espécie de protótipo do Paraíso, procurando conservá-la até que tal empreendimento se tornou insustentável, devido à demora da Volta — quando, sobretudo com o apóstolo Paulo, a Igreja redefiniu-se em termos mais sólidos, porque compreendeu que o Tempo da Paróquia poderia perdurar muito mais do que imaginavam, reabilitando o exemplo dos judeus do Exílio Babilônico, que deveriam conservar-se em suas vocações e prosperar, na medida do possível, até o Dia. A própria ideia da Parousia traz consigo esse precedente: o Messias veio primeiro como Servo Sofredor, descido da glória que tinha junto do Pai para estar com os caídos e resgatar para Si e no Seu Santo Sangue aqueles que reconhecessem a Sua voz, e virá uma segunda vez, esta sim enquanto manifestação solar e plena de Sua Realeza, e nesse Dia buscará todos os que peregrinaram no Tempo Escatológico, Seu Exército, e descerá juízo e matança sobre todos os Seus inimigos — isto é: os reis e os poderosos deste Mundo. A expectativa da Promessa, que só o Pai sabe quando sucederá e que se efetivará por arbítrio divino, consumada após a História e o Fim do Éon, foi o grande fator de contenção dos ânimos apocalípticos no cerne da Igreja, estabelecida então como Katechon para refrear a eclosão, desde dentro de si mesma, da anti-Igreja e do Anticristo, até o tempo oportuno.

A mística judaica, tão pesadamente influenciada por sentimento messiânicos, uma vez que os judeus rejeitaram o Messias Jesus, adquiriu, principalmente durante a Idade Média e sob influências neoplatônicas e gnósticas, um ímpeto escatológico peculiar. Parte substancial do esoterismo judeu, o que se pode apreender em seus expoentes, como Isaac Luria, mestre cabalista, jaz prenhe de messianismo milenarista, de maneira que a leitura esotérica da Escritura, que é uma leitura considerada espiritual, busca extrair de cada passagem do Texto Sagrado algum significado oculto, definido segundo a gematria e mecanismos alegóricos. Rondando uma espécie de panteísmo universalista (fica claro no “maquinário” cósmico especulado), culminará numa visão espiritual da Lei que será a sua total suspensão e inversão lógica, uma Não-Lei, e, nutrida pelo potencial antinômico do messianismo redentivo e libertador, o verá em termos também espirituais — o “Espírito do Messias” como experienciável pelo místico judeu, pelo qual empreenderá uma Visão ou mesmo uma União Mística com Deus, ingressando ele mesmo no Eterno, no Um, que é antes e posterior à História, ou atemporal, e ali há liberdade total (Nachman de Breslov vivia indo e voltando desse “lugar”). Porque, se o Messias de fato não lhes chega literalmente, poderá ser antecipado espiritualmente, e o Seu Espírito verdadeiramente o antecipa, e talvez o resuma e seja Ele inteiro, a ser assimilado por um Corpo Místico, à semelhança de Adão Kadmon: uma comunidade eleita de iniciados.

Não é de surpreender que Joaquim de Flora tenha absorvido larga inspiração cabalista, que verteu na sua formulação revolucionária das Eras do Mundo — a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo -, aguardando a Era do Espírito nos termos do mileranismo messiânico, como infusão infrahistórica do Tempo Eterno e a instauração do Reino de Deus sob uma forma sinárquica. Essa Era do Espírito é um tempo de Não-Lei, porque não haverá maldade e nem condenação, e todos serão um — Adão Kadmon — com Deus. Vê-se aqui uma imanentização do Eschaton em termos cristãos e uma perversão panteísta do sentido da Parousia — o Messias está mais para a irrupção do Seu Espírito e a formação do Corpo Místico Universal. Assim, ingressou no pensamento cristão, sob influência cabalista e sob influência gnóstica, a ideia do Messias enquanto Espírito Messiânico. Em termos revolucionários, a instauração da Era do Espírito, uma Era de Ouro, foi entendida como necessariamente prenunciada por um aumento vertiginoso do Mal, da Violência e da Anarquia, ou seja, da Antinomia, e é dessa maneira que ela foi assumida pelos revolucionários franceses e marxianos — a imanentização do Eschaton deve ser precedida pelo aprofundamento da Maldade e, então, pela aplicação cabal e brutal do Juízo Final da parte dos eleitos, ainda dentro da História (ou, segundo o que pensam alguns marxista, já na Pós-História, uma vez que o mecanismo histórico chegou ao seu termo). Como vimos, todavia, essa é uma adulteração do apocalipsismo cristão, que igualmente aguarda o morticínio dos inimigos de Deus (e a participação nesse morticínio), mas após o termo da Era, quando Jesus Cristo regressar por entre as nuvens.

Um extremo muito notável do messianismo esotérico judaico é vislumbrado na experiência de Shabetai Tzevi (1626–1676), no qual foram identificados todos os supostos sinais do Messias, do Eleito, inclusive aquele das fraquezas — as dores — e das tentações. Quando o Messias Tzevi é revelado por Abraham Nathan em 1665, Nathan “toma uma atitude antinomista, revogando as práticas de luto e substituindo-as por festas de regozijo em honra a Shabetai” (Eliade). Mesmo quando Tzevi fez-se apóstata, Nathan conservou o entendimento a respeito de seu messianismo, estimulando um largo movimento de apostasia dentro da comunidade judaica, assim como diversas práticas antinomistas. Um discípulo tardio de Tzevi, que considerava a si como sua encarnação e, portanto, o Messias, Jacob Frank (1726–1791) intensificou as práticas antinômicas e o repúdio à Torá.

… a antinomia e a rejeição escatológica da Torá, na medida em que a manifestação do Messias põe em suspenso toda a ordem temporal…

Esses extremos, vê-se, levam às últimas consequências os pressupostos incipientes no esoterismo judeu e, por desvio, conduzem ao zênite o espírito do messianismo judaico pós-cristão, enlouquecido com a perda do Messias Jesus: a antinomia e a rejeição escatológica da Torá, na medida em que a manifestação do Messias põe em suspenso toda a ordem temporal e supõe uma intensificação anárquica como prelúdio da instauração do Milênio.

Um movimento místico judaico mais moderado, de matiz popular e, portanto, exotérico, deve ser aqui citado: o hassidismo. Deve ser, uma vez que alega não carregar em si as características messiânicas que enlouqueceram Tzevi e Frank, embora as apresente sob uma roupagem espiritualista mais genérica, igualmente panteística, pela qual a comunidade, em União Mística com Deus, conserva-se messiânica. É notável, porque as características do hassidismo se assemelham muito a movimentos cristãos de redenção cultural que parecem ter substituído o éthos escatológico nos termos do apocalipsismo cristão primitivo, que é muitíssimo literal, por um sentimento pueril e distante da Volta, virtualmente esquecida, que reverte numa atitude milenarista, de transformação terrestre, para com o Mundo, às vezes baseada num romantismo, numa minúscula Era de Ouro estabelecida na comunidade de Cristo e dos discípulos e em uma rejeição de toda a história eclesiástica posterior — ou seja: apega-se a uma imagem fixa, tornada eterna, da comunidade messiânica ideal (sempre vista aqui por antinômica [“amor”]), na qual busca um motivo extático para consolidar uma comunidade eleita no tempo presente, que é aquela que já vive no Espírito Messiânico, ou na Era do Espírito, imanentizando o Eterno, de maneira que a Parousia já não mais é necessária, porque acontece sempre no Corpo Místico dos eleitos — não é isso que Bultmann acabou dizendo?

Os hassidistas reconhecem a presença de Deus nas mais humildes atividades de seu corpo e praticam a ‘adoração física’ […], ou seja, o louvor a Deus não só na prece e nas cerimônias ‘sacras’, mas também em meio às atividades mais profanas, como a união s3xu4l, as refeições e o sono. É a intenção que conta, e, se ao praticar o ato a pessoa visar ao ‘devekut’, o resultado será o êxtase. — Eliade, Dicionário das Religiões

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 27 de Outubro de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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