O Cristianismo é Sobre Felicidade

Sobre a plena satisfação em Cristo

Natanael Pedro Castoldi
11 min readJun 5, 2024

Estranha-me a ênfase que se dá nalguns círculos à ideia de que o cristianismo não tem mais relação com felicidade do que com sofrimento. Isso se lerá em sentenças que dispensam constrangimento a quem buscar a felicidade em Cristo. Talvez se baseiem no temor e no zelo piedosos, volta e meia excessivos, visando garantir que o evangelizado saiba que terá que renunciar a muitas coisas por Jesus, e isso tem legitimidade. O problema é o pressuposto de que o ouvinte do Evangelho, quando inflamado pelo desejo de ter a Paz do Senhor Jesus, deva ter já e de início a maturidade para compreender a dimensão mais espiritualizada da entrega que está prestes a fazer. A Boa Nova é de felicidade, porque é de Salvação, e se é provável que desencontros vertam de evangelizações incompletas, é mais verdade que o problema nevrálgico está no processo ulterior, quando o neófito deveria receber a instrução necessária, dentro da vereda da Metanoia, para elevar o seu entendimento dos Mistérios de Deus em Cristo.

Esse chamamento à felicidade está claro no Ministério de Jesus, em Sua pregação, na medida em que Ele não desconstrói de todo o senso judaico a respeito do Reino Messiânico — o Reino Eterno, de liberdade paradisíaca e de larga prosperidade e beleza, porque todas as coisas, assim como a consciência do homem, floresceriam ao máximo esplendor, dando frutos gordos, tal como a Tradição concebia o governo de Adão Glorioso no Éden e, posteriormente, o reino de Salomão. Quando o Senhor Jesus falava do Reino aos pobres da terra, despertava em seus corações imagens genesíacas luxuriantes, análogas às imaginações israelitas sobre Canaã, contrastando-as com o estado tenebroso em que se encontravam os judeus do Primeiro Século, dominados por um invasor estrangeiro e por um governo local corrupto, padecendo fomes, toda a espécie de doenças e sob a maldição e os açoites de legiões de demônios. Não se pense que as multidões dos pobres da terra, que prontamente largavam o pouco que tinham para se lançar violentamente às barras do Reino, donde chamados por Jesus de “os fortes” (Mt 11:12), o faziam por razões outras que não as da conquista do Paraíso sob o Ungido de Deus, Filho de Davi. Essas mesmas multidões começam a se dispersar quando a pregação de Jesus passa a deixar patente o sentido de Sua Vinda, que é, a Primeira, não para o empreendimento zelóquico de rebelião armada e refundação do reino davídico, esclarecendo que o Seu “Reino não é deste mundo” (Jo 18:36) — o que não implica na diluição da Promessa dos Bem-Aventurados, ou Felizes, mas na perspectiva da postergação de sua consumação.

… estava clara entre as populações camponesas a demanda escatológica que inauguraria o Reino de Deus…

Ademais, e F. F. Bruce o compreende muito bem, estava clara entre as populações camponesas a demanda escatológica que inauguraria o Reino de Deus, o Reino das Beatitudes: um tempo de elevadas renúncias pessoais e de ingresso em marcha e campanha típicas de Êxodo, com possibilidades de Pequena Guerra Santa (luta armada contra os Inimigos de Deus). A renúncia pessoal e a disposição ao sacrifício sempre estiveram ligadas à perspectiva da eclosão do Reino, e era assim que apóstolos como Pedro e as multidões que desejaram fundar comunidade qumrânica no ermo, elegendo a Cristo como Rei, entendiam. O teor carismático do sentimento escatológico judaico, ao qual Eliade identifica múltiplas imagens arcaicas e de tipo genesíaco, é devido ao fato de ele ser eminentemente popular e praticamente inexistente na elite do Complexo Templo-Palácio, representada, então, pelo Sinédrio, regido, no tempo de Jesus, pelo partido dos saduceus — altamente conservador, no sentido tradicionalista, ao ponto da desconfiança da Torá Oral (mais literalista na leitura da Lei) e do apego formalista à instituição do Templo e da Liturgia consagrada.

Não eram poucos os oponentes populares da classe sacerdotal e dos ofícios cúlticos no Templo Herodiano — tanto é que não apenas o Cristianismo Primitivo, mas outros movimentos escatológicos resgatavam a Tradição Salomônica ligada ao Primeiro Templo, embora em termos simbólicos e místicos (à luz da visão profética de Ezequiel do Templo Celeste, o arquétipo eterno do Templo Terrestre). Donde a Pequena Guerra Santa, do embate literal, ser apenas a face objetiva da Grande Guerra Santa, escatológica per se, de envergadura cósmica e contra “principados e potestades das regiões celestes” (Ef 6:12) — uma guerra universal que só poderia ser travada na alma de cada um. As multidões que afluíram na direção do Cristo no ermo intentavam a fundação de uma comunidade de eleitos análoga às dos essênios, pretendendo estabelecer o Reino no Deserto e preparar Guerra Santa (nos dois níveis) contra o Mundo — com a Grande se sobrepondo à Pequena, santificando-se e purificando-se continuamente enquanto eram alimentados milagrosamente pelo Novo Moisés. Cristo não o quis e as repreendeu vigorosamente: não haveria Pequena Guerra Santa, porque não haveria Congregação do Deserto. Seu Reino não vem de “aparência exterior”, mas tem raízes apenas “dentro de vós” (Lc 17:20–21), e o Pão do Céu que Ele dera de comer às multidões não era o mesmo Maná do Êxodo, mas símbolo do Verdadeiro Pão do Céu, a Palavra de Deus e Ele mesmo, o Logos Divino, entregue aos homens para ser despedaçado — quem come a Carne e bebe o Sangue do Filho participa da Sua Morte para, então, participar da Sua Ressurreição (Jo 6:52–71).

Impõe-se, aqui, a perspectiva da Vinda do Messias enquanto Cordeiro para ser imolado, morto pelos homens. Evidentemente, o Mistério do Pão e do Sangue não estava, e nem poderia estar, esclarecido para a multidão de João 6, e foi sendo instruído ao círculo próximo dos Discípulos apenas gradualmente, para ser compreendido de fato somente depois da Ressurreição. O que está claro desde o começo, todavia, é que a felicidade, enquanto realização ou atualização última de todas as potencialidades humanas, quando religado o Homem ao Criador, é uma aspiração legítima, mas que só terá efeitos plenos após a Parúsia e no ingresso da Igreja, a Noiva, nas Bodas.

… jaz notório o Eschatos, Deus Filho em Corpo Glorioso entronizado na Nova Jerusalém, a certeza da Felicidade Eterna junto do Pai…

Está implícito no texto joanino, segundo os estudos de Voegelin no Evangelho e Cultura, o conceito clássico, platônico, da Atração (Helkein) do Homem ao Alto, ao Divino, enquanto resposta à Busca (Zetein) do Homem por realização — é como se, entre uma trama de fios escuros que puxam para interesses terrestres, um fio dourado ligasse o Homem ao Céu. Por natureza, os apelos dos particulares sensíveis, os quais correspondem mais imediatamente à Ananké (necessidade), mantém o Homem aprisionado ao regime da imanência e aos apetites da Carne, que busca satisfazer de maneiras absolutas porque Busca (Zetein) realização — por si mesmo, todavia, o Homem é arrastado para baixo, colado à “parede da Caverna”, regido pelo que podemos chamar de Eros Pandêmico, inflamador dos apetites (Hybris). Essa Atração Descendente (Anthelkein) tende a superar a Atração Ascendente (Helkein). Na soteriologia platônica, cabe ao Homem enquanto Eu (Autos) acolher o Fio de Ouro da Helkein e, pelo reto uso da Razão (Logos) e do bom Juízo (Logismos), enfraquecer os apelos da Hybris e dirigir seu Espírito, desprendido da “lei da Carne”, aos Universais (a Segunda Navegação) — ali as Formas Eternas, conhecidas pelo Espírito no Hiperurânio, são reabilitadas, desprendidas das suas aparências. Em João 12, como se vê no versículo 32 (“E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei [Helkein] a mim”), está transparecido algo do supracitado — note a envergadura cosmológica do versículo! Atua aqui Eros Urânio, o Amor Divino, a Graça Eterna, o Sangue do Cordeiro “conhecido antes da fundação do mundo” (1 Pe 1:19–21), que dá “liga” à Realidade (“a Realidade é Cristo” — Cl 2:17 [NTLH]) e pelo qual todas as coisas refluem para Deus (Rm 11:35–36) — as “escamas dos olhos” caíram para todos quando da Elevação e da Ressurreição de Cristo (At 17:30–31), jaz notório o Eschatos, Deus Filho em Corpo Glorioso entronizado na Nova Jerusalém, a certeza da Felicidade Eterna junto do Pai, e todos são convocados, ouvida a Boa Nova, à tomada de posição.

Das diferenças e semelhanças entre a soteriologia platônica e a soteriologia cristã, não se ignore a coincidência num dos termos principais: todos os homens buscam a felicidade e todos, por natureza, recaem na imediatez compulsiva da expectativa de sua realização através dos relativos e particulares sensíveis, sendo necessário o cultivo, a preparação da alma, para o amadurecimento dos apetites e a elevação as aspirações, visando a identificação das “Formas”, porque suas aparências não podem apetecer — a fome de Deus é fome do Absoluto. Disso nós devemos absorver o imperativo da não idealização do alcance intelectivo do ouvinte primário do Evangelho — o Espírito Santo trabalha no convencimento do coração e há um potencial inato no Homem para o reconhecimento do Divino, quanto este é apresentado, além de uma disposição latente de, constrangido pela consciência da falta e da falha, ou do Pecado, o ouvinte do Evangelho se arrepender de seus “maus caminhos” e se entregar ao Senhor Jesus, inicialmente mais como quem busca alívio no “jugo suave” do Salvador, uma vez “cansado e sobrecarregado” (Mt 11:28–30), do que como o comissionado ao Ide (Mt 28:19–20).

… excessos úteis ao infante, mas que gradualmente devem ser superados, conforme a Mente de Cristo se desenvolve…

É esperado, e não deve ser diferente, que o Neófito sinta seu coração “queimar” diante da perspectiva de Salvação, embora conceba a Salvação nos termos de uma imaginação ainda bastante sensorial, bastante concretista, objetiva, baseada na referência dos apelos prazerosos e satisfatórios que conhece a partir de sua própria vivência natural — ele terá em Cristo a perspectiva de saciamento pleno, mas ele imaginará esse saciamento como satisfações de tipo elementar, donde suas imagens do Paraíso não reconheceram nos símbolos as Formas Eternas, mas o aspecto mais trivial e visível, ou literal, que o símbolo apresenta. Ele se deliciará vislumbrando o Banquete do Cordeiro como quem de fato come “suculentas carnes saborosas”, bebe “vinho envelhecido” (Is 25:6) e se farta do “mel que destila dos favos”. No Batismo ele confessa a morte do Velho Homem, sepultado com Cristo, e o nascimento do Novo Homem junto de Jesus Ressurreto, mas o praticará nos termos de uma santificação menos amadurecida, embora válida para seu nível de entendimento, através do apego às restrições de tipo alimentar, à guarda de dias e a outras limitações, às quais Paulo identifica com os ascetismos gentílicos e com o “paidagogos” veterotestamentário (Gl 3:25) — excessos úteis ao infante, mas que gradualmente devem ser superados, conforme a Mente de Cristo se desenvolve no cristão (isto é: a Fé).

O Neófito, chamado também de Carnal, ainda conserva uma perspectiva consideravelmente imanentista, materialista, da Felicidade. Ele, como bebedor de “leite” e em vias de bem discernir os “rudimentos do Evangelho”, se inclinará à demonstração pública de carisma espiritual com o objetivo de angariar admiração e status, buscará se valer de vantagens ou suposta superioridade cívica para tomar para si uma parte desproporcional da refeição comunal da congregação, se admirará e exultará da boa retórica… Como o apóstolo Paulo o diz, tanto aos Coríntios quanto aos Hebreus, atitudes tais são aguardadas dos imaturos, não dos maduros — o que quer dizer: havia uma compreensão, e até uma medida de tolerância apostólica, da tendência horizontal do novo convertido. O iniciado n’O Caminho, aquele bem instruído na Sã Doutrina, chamado de Perfeito e de Espiritual, todavia, já não pode mais sucumbir aos apelos sensíveis, como quem deposita satisfação nos “tesouros da terra” e retroage aos “rudimentos do mundo” — este, formado na compreensão dos Mistérios de Deus em Cristo e na vivência cristã, deve ter reconhecido a vaicuidade e a vaidade dos empreendimentos terrestres, a sua desimportância enquanto “sombra” da Realidade, o Eschatos, o Jesus Glorioso.

… mesmo a abundância já não pode dominar o Espiritual…

Da evidência neotestamentária pode-se abstrair a convenção apostólica de um ensino formal, de tipo iniciático, de cerca de três anos, conduzindo o Neófito à condição de Perfeito — isso aparece no arquétipo dos Três Anos dos Doze com Cristo, dos Três Anos de Paulo na Arábia e dos Três Anos de Paulo com os Doze de João Batista, em Éfeso. Via de regra, esse processo compreendia um primeiro ano de instrução elementar, antecipatória do Batismo, mais um tempo de orientação pormenorizada na Sã Doutrina e nos Mistérios — a saber, na elucidação dos símbolos batismais e eucarísticos, assim como dos símbolos apocalíticos, litúrgicos, da mobília e da arquitetura do lugar do culto e, por fim, éticos. A Mente de Cristo, a Metanoia, se desenvolvia conforme se transcendentalizavam os apetites e se tornavam conhecidos os objetos últimos e verdadeiros aos quais os símbolos todos se referiam, alocados metafisicamente no Aravot. Culminavam, aqui, um desapego das coisas do mundo, no sentido de uma progressiva independência das aparências (o sentido paulino de Vocação [Ef 4:1–6] e do “como não” [1 Co 7:29–31]), e um contentamento invejável com as posses, poucas ou muitas (Fl 4:11–13), porque delas, então, não se espera mais algo que elas não podem dar (a realização do Homem), de maneira que mesmo a abundância já não pode dominar o Espiritual (1 Co 6:12).

O cristianismo é sobre felicidade — a felicidade em seu sentido mais extremo, porque vai à raiz ontológica da insatisfação (o desligamento de Deus) e da redenção (o religamento ao Senhor, com a promessa de plenitude na Visão Beatífica do Pai Entronizado). Pertence ao ensino cristão a ideia de uma felicidade possível, relativa, junto dos particulares sensíveis, porque o crente, na Liberdade de Cristo, é chamado à gratidão e à satisfação com aquilo que o Senhor lhe deu na Criação — evidentemente, é da vontade do Pai que estejamos contentes com as coisas que Ele criou para nosso uso. Pertence igualmente ao ensino cristão o imperativo da transcendentalização do olhar, para que se navegue dos particulares sensíveis, que são apenas aparências e relativos, para a Visão dos universais, do Absoluto, do Eschatos — do Cristo, a Plenitude da Divindade. Porque Ele é a Verdade e o Único Caminho para o Pai — somente em Deus, na Eternidade, a felicidade (que Lewis chama “Alegria”) será plena — hoje a vivemos parcialmente, “como que por espelho”, como reflexo do Entronizado, a Quem veremos “face a face” (1 Co 13:12).

O grande problema está no ensino fornecido dentro das igrejas…

Não vejo, portanto, como o maior dos problemas a abertura das portas das igrejas aos que, tocados pela Boa Nova de Salvação, queiram encontrar descanso, isto é: felicidade, em termos mais imediatos e concretos do que espirituais e substanciais. Este não é o verdadeiro problema, porque é esperado do Neófito que seu olhar, conquanto apaixonado pelo Cristo, ainda esteja deveras preso ao que os seus olhos conseguem ver e ao que seus ouvidos podem ouvir. O grande problema está no ensino fornecido dentro das igrejas — porque é por meio dele, cotejado ano após ano e junto de uma vida eclesiástica ordenada e constante, que ocorre Metanoia, a elevação do olhar às “coisas do Espírito”, às quais o Homem Natural é incapaz de compreender (1 Co 2:14). A pedagogia do Neófito era resolvida na Igreja Apostólica por um ensino que se mostra relativamente bem organizado (“… pastores e doutores…” — Ef 4:11–12), sistematizado (a Sã Doutrina — Tt 2:1) e gradativo (“… devendo já ser mestres pelo tempo…” — Hb 5:12).

Alegrem-se sempre no Senhor. Novamente direi: alegrem-se!
Seja a amabilidade de vocês conhecida por todos. Perto está o Senhor. Não andem ansiosos por coisa alguma, mas em tudo, pela oração e súplicas, e com ação de graças, apresentem seus pedidos a Deus. E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os seus corações e as suas mentes em Cristo Jesus. — Fl 4:4–7

-SE- vocês suportarem sofrimentos injustos, sabendo que esta é a vontade de Deus, ele abençoará vocês por causa disso. — 1 Pe 2:19

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 05 de junho de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em antropologia e crítica literária. Casado com Gabrielle Castoldi.