O Cristão: Filho da Liberdade

Um estudo na ética paulina

Natanael Pedro Castoldi
6 min readJul 17, 2024

O rabino que conseguisse interpretar a Escritura corretamente em todas as suas tradicionais camadas de entendimento — Peshat (sentido literal), Remaz (sentido sugerido), Derush (sentido implícito) e Sod (sentido alegórico) — alcançava a “Glória do Paraíso” — P R D S, “Paradisus”. O apóstolo Paulo, formado rabino, aplica o Sod aos textos de Gênesis 16/17/21, discernindo o seu significado alegórico. Como dirá Enih Gil’Ead, com a revelação do Eschatos, o Cristo, todo o sentido do Antigo Testamento está dado e não é necessária nenhuma complicação cabalista e de mística judaica posterior e desviante em seu entendimento. Paulo, pois, encontra o sentido profundo e espiritual, donde eterno, de Gênesis em Cristo.

Sem crer ser necessária uma explicação minuciosa do discernimento paulino nas histórias de Abraão, Sara, Agar, Ismael e Isaque, basta-nos aqui o sumo: ter filiação carnal desde Abraão não é suficiente para herdar a Promessa, porque Ismael era filho de Abraão pela carne e foi expulso da casa do Patriarca, sendo antes necessária a ascendência de Abraão através da Promessa, como é o caso de Isaque, filho pela carne, mas herdeiro do Patriarca porque filho da Promessa. A Jerusalém do tempo de Paulo, resistente ao Evangelho, se valia sobretudo do vínculo carnal com Abraão, e nisso não era diferente dos ismaelitas, sucedendo antes a Ismael do que a Isaque, ainda presa ao Sinai, ou à Lei, que está e que vem da Arábia. Eram, pois, os judeus, filhos de Agar, no sentido de serem filhos da escrava, relacionados com Deus por meio da carne, enquanto aos cristãos coube descendência de Abraão através da Promessa, da Aliança Abraâmica (Gn 12:1–3), que é pela Fé, donde a filiação divina por meio do Espírito. Filhos da livre, Sara, os cristãos foram libertos dos rudimentos pagãos e judaicos para que permanecessem livres — renascidos espiritualmente, não deveriam recair no vínculo carnal, que não é pela Fé, mas pela Lei.

… renascidos espiritualmente, não deveriam recair no vínculo carnal, que não é pela Fé, mas pela Lei.

Alguns manuscritos da Vulgata chegaram a juntar num mesmo verso Gálatas 4:31 e 5:1, pelo que teremos: “Portanto, irmãos, não somos filhos da serva, mas da liberdade para a qual Cristo nos libertou.” Isso é assim, pois a Promessa passa por Isaque, um tipo de Cristo, e chega, ou culmina, no Senhor Jesus. Daí o alerta do apóstolo contra o regresso à Lei por meio da circuncisão, o sinal carnal da aderência prosélita à descendência literal, e não espiritual, de Abraão — quem o faz, se prende à Jerusalém “de agora”, recaindo da “Jerusalém do Alto”, a Nova Jerusalém, “que é livre e é a nossa mãe”. Os Nascidos do Reino são como que “paridos” da Nova Jerusalém, herdeiros legítimos da Promessa Abraâmica pelo Espírito e não possuem pátria terrena. Se, contudo, impuserem um mediador carnal entre eles e Deus, substituindo Cristo por sinais de qualidade imanente e horizontal, ou corporal, e que não são se não “sombra” do Corpo de Cristo, retroagem ao regime da escravidão, que é da Lei, abandonando o regime da liberdade, que é do Espírito, e desprezando o Amor pelo qual foram concebidos na Nova Jerusalém.

Isso impõe um imperativo ético que será segundo o “espírito da Lei” (Fp 4:5), ou aquilo que a Lei verdadeiramente significa desde o Princípio, o Mistério que nela esteve oculto até a sua revelação em Cristo Jesus: a Graça de Deus. Razão pela qual a liberdade de Jesus não é o mesmo que libertinagem, mas a replicação do Amor do Senhor, pelo qual nascemos para a liberdade. Não é, pois, o próprio Cristo quem sintetiza a Lei em duas sentenças? “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento” e “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22:37 e 39). Paulo recupera a última sentença em seu argumento, “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, pressupondo que o Nascido do Reino já está no Amor de Deus pela Graça, o Mistério da Lei em Cristo. A regressão do “espírito da Lei” para seu uso literal, enquanto Letra que Mata, porque vem para conservar todos os homens na condição de Pecado (Gl 3:22), impõe um princípio de Morte, que é o princípio da carne, cujo desdobramento lógico é o da progressão na maldade e na dissolução. Apenas os nascidos do Espírito para a liberdade de Cristo podem apresentar legitimamente o Fruto do Espírito (Gl 5:22), uma vez que, nascidos do Amor, vivem segundo o maior interesse dos seus irmãos, não conforme o autointeresse daquele que tudo faz para obter benefícios, sejam eles materiais, sejam eles “espirituais”, ou “soteriológicos”.

… nascidos do Amor, vivem segundo o maior interesse dos seus irmãos, não conforme o autointeresse…

A condição de nascido livre em Cristo é, todavia, antes ontológica do que necessariamente prática. Quero dizer: é-se nascido n’Ele de jure, mas ainda se há de manifestar de fato a potência ou a substância desse nascimento. Cabe ao cristão a tomada de posse de sua condição de liberdade no Amor de Deus, o que nos remete mais a um processo de amadurecimento do que a um patamar para o qual todos os crentes devem tentar saltar de súbito. A perspectiva de que a liberdade de Cristo, latente e em vias de se manifestar plenamente, é assumida progressivamente e durante a jornada cristã está posta mui claramente em 1 Coríntios. No capítulo 10, por exemplo, Paulo orienta aos cristãos de Corinto que não temessem o consumo das carnes dos açougues pagãos, cheios de escrúpulos frente à possibilidade de as carnes neles vendidas terem vindo dos sacrifícios aos ídolos. Que comprassem e comessem sem medo, sem questionar, porque a elas Deus havia de antemão santificado (At 10:13–15; 1 Co 10:26), e que soubessem usufruir das refeições para as quais fossem convidados por amigos pagãos sem impor empecilhos desnecessários. Agora, caso viessem a saber por outro da origem cúltica das carnes, então que não comessem, todavia não por causa das carnes em si, mas por causa da consciência daquele que os advertiu. Isso deve envolver tanto a consciência do pagão, caso ele advirta por compreender de determinada maneira a ética dos cristãos, quanto a consciência do cristão, para quem a aproximação daquelas carnes seria uma ofensa direta a Deus. Isso é assim, pois o cristão amadurecido não deve ceder à tentação de escandalizar e nem de provar nada a ninguém, nesse sentido (1 Co 10:32–33) — pode vir a ser, caso queira fazer prevalecer o seu ego em circunstância tal, um inibidor da confiança do pagão (e do judeu) na seriedade de sua fé cristã e um tentador daquele cristão menos amadurecido, ainda carente de formação (Hb 5:12).

Cabe aos amadurecidos aquela tolerância baseada no Amor…

Em Romanos 14:1–6 tudo isso fica ainda mais claro. Ali há uma comparação entre “fracos” e “fortes”, sendo os “fracos” provavelmente os Carnais, ou Neófitos, cuja maturidade e cuja consciência ainda precisam se apegar a certos sinais exteriores, como a evitação do consumo das carnes ou a guarda de dias. Cabe aos amadurecidos aquela tolerância baseada no Amor, a qual Paulo remete em Filipenses 4:5 e em Colossenses 3:13–14, respeitando os limites da Fé de cada um (Rm 14:5). Apreendemos aqui algo do itinerário do desenvolvimento da liberdade de Cristo como, de fato, um avanço para maiores medidas de autonomia (autarkés — Fp 4:11) de consciência, propícia não ao egoísmo, mas ao autossacrifício em favor dos outros.

O que se vê, ao fim e ao cabo, é que há a consideração formal por diferentes “níveis” de Fé, os quais não se deve qualificar em termos de superioridade e de inferioridade, mas de entendimento — para o Carnal, ou Neófito, que ainda está no “leite”, é justo e necessário que se conservem certos usos e costumes; para o Espiritual, ou Perfeito, é esperada, na sua dieta de “carne”, a evidência de uma Fé sobremaneira desapegada. Esse desapego, reitero, não é egoístico, mas altruístico, porque “maior é aquele que serve” (Mt 23:11).

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 17 de julho de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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