O Deus dos Teus Afetos
como despertar e dirigir as paixões
A hamartiologia antiga, uma das bases teológico-filosóficas da psicologia clássica, começa no Amor Próprio, chamado Filáucia. Encontrei autores que separam a Má da Boa Filáucia (AZEVEDO JR., 2009). O princípio é simples: todo o vício, toda a doença espiritual, com seus desdobramentos psicossomáticos, teria como matriz a falta de sentido, de propósito, de uma imagem sólida da Vida Boa. Nos desenvolvimento da chamada psicologia tomista, que defende a aquisição de virtudes contrárias aos vícios decorrentes da Má Filáucia, que é o Amor Próprio Desviado (para si ou para um ídolo), é dado por pressuposto para toda a cura espiritual o despertar do Amor por Deus, que dará na Boa Filáucia. Noutros termos: conquanto tenha valor a afirmação de um Criador justo e castigador, irado e terrível, é ainda mais importante, para fins do progresso na luta contra o pecado e pela semelhança de Cristo, a ênfase no Pai amoroso, no Deus sacrificial, no Espírito consolador. Devemos alimentar em nossas mentes uma imagem de Deus que faça o mínimo de jus à Sua Beleza, que é perfeita, à Sua Glória, que é fulminante, à Sua Bondade, que chega a ganhar ares maternais — “Quantas vezes Eu quis reunir os teus filhos, como a galinha acolhe os seus pintinhos debaixo das suas asas…”, Mt 23:37.
Uma das funções da Palavra é o despertamento de nossas paixões para que sejam nomeadas e canalizadas
O Amor é alimentado desde os afetos e envolve, através daquelas imagens que vão sendo formadas na leitura da Escritura, o despertamento e o aquecimento de emoções aprazíveis, do Eros (FAUS, 2020). Nossos fervores e nossas paixões, todas essas inclinações profundas, precisam encontrar seu objeto legítimo — se ficarem soltas, irão à busca de substitutos, que são ídolos. Uma das funções da Palavra é o despertamento de nossas paixões para que sejam nomeadas e canalizadas para os seus destinos legítimos, com o primeiro e principal sendo o próprio Senhor. Precisamos, pois, alimentar, disciplinar e conduzir a nossa imaginação, e a Beleza de Deus, tão caseira e tão olimpiana, quando gestada com todos os fulgores em nosso coração, nos puxará para a frente por seu magnetismo. O progresso existencial, que vai adiante, e a luta contra o pecado, que está logo abaixo, dependem, sobretudo, desse amor por Deus, que nos enche de inspiração e de boa vontade.
Quando Tolkien afirma que os contos de fadas têm como uma de suas funções o resgate das belezas da Criação, ele está afirmando que a narrativa feérica brota do assombro dos homens pela beleza (e também pelos horrores, em contraste) e, por conseguinte, desperta naqueles que os leem essas impressões originárias, de espanto com as coisas que Deus fez (aqui entra Chesterton [2008], também). Lewis (2021) e Tolkien (2017) não separam inteiramente a Escritura dos contos e dos mitos: o que acontece com Jesus Cristo aparece, de modo sutil, em filhos dos deuses dos mitos antigos. A diferença, que muda tudo, é que Jesus realmente existiu, realmente morreu e realmente ressuscitou, realizando dentro da História aquilo que a imaginação humana procurou por todos os milênios anteriores. A Beleza do Mito Encarnado e do Mito Profetizado pode ser buscada na Bíblia, também, como ela sempre foi procurada, pois desejada, nas histórias divinais de todos os povos, e pode ser lida, eventualmente, com o mesmo espírito de curiosidade e deslumbramento que levamos para os contos de fadas. Só assim, deixando a análise intelectual de lado por um pouco, poderemos sentir o espanto dos discípulos quando hipnotizados pela imagem do Cristo transfigurado e, depois, ressurreto.
“Deus assim procedeu para que a humanidade o buscasse e provavelmente, como que tateando, o pudesse encontrar, ainda que, de fato, não esteja distante de cada um de nós” — At 17:27
AZEVEDO JR., Paulo Ricardo de. Um Olhar que Cura: Terapia das doenças espirituais. São Paulo: Editora Canção Nova, 2009.
CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
FAUS, Francisco. A Conquista das Virtudes. São Paulo: Cultor de Livros, 2020.
LEWIS, C. S. Cartas de C. S. Lewis. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021.
TOLKIEN, J. R. R. Árvore e Folha. São Paulo: Martins Fontes, 2017.
Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 23 de julho de 2021.