O Deus Menino nos Põe de Joelhos
Aspectos da arquitetura da Igreja da Natividade
O tradicional lugar do nascimento de Cristo, uma determinada gruta em Belém, tem sido sinalizado desde o tempo de Constantino, Séc. IV, com a Igreja da Natividade. É altamente provável que essa localização esteja correta, porque é Justino Mártir, que viveu nas redondezas de Belém por volta de 150 d.C., quem nos faz saber que o estábulo da Natividade foi de fato uma caverna — o que está de acordo com o costume local, uma vez que Belém se ergue no topo de uma serra rochosa e era comum o uso da rocha escavada nos fundamentos da casa como estrebaria. Outra evidência importante de a Igreja da Natividade estar na demarcação exata da gruta do natalício do Rei dos Reis é a construção, por intenção profanadora do imperador pagão Adriano, de um templo a Adônis nesse local — depois substituído pela Igreja.
Convém observar que a substituição, promovida por Adriano, de Cristo por Adônis é por si mesma sugestiva, indicando o conhecimento de que ali havia um santuário dedicado a Cristo, a ser assumido por uma divindade que compartilhava algumas características do Deus Jesus. Originalmente o Tammuz babilônico, chamado por Stein Jr. de “O Messias Semítico”, Adônis era uma divindade primaveril ligada à vegetação. O Filho Divino, dotado de exuberante juventude, seguia o ciclo da semente, morrendo e ressuscitando sazonalmente — sua morte, a ‘katábasis’, o levava aos Ínferos para junto de Perséfone; sua ressurreição, a ‘anabasis’, o fazia ressurgir desde a superfície da terra e para junto de Afrodite, deusa da fertilidade. Na época helenística, um dos ritos para Adônis envolvia o deitar do “corpo” morto do deus num leito de prata e recoberto de púrpura, para que fossem depositadas junto dele miríades de oferendas — frutas, flores, perfumes e folhagens postas em cestos prateados. No dia seguinte, o “corpo” do deus era atirado no Mar (o Abismo) junto das oferendas. Após isso, havia intensa alegria, pois Adônis ressuscitaria junto das chuvas da próxima estação. A morte prematura de Adônis está ligada ao nascimento e à coloração de certas flores, como a anêmona, divisada enquanto uma metamorfose do deus morto, e a rosa, que, conforme amadurece, vai do branco ao vermelho, como que tingida de sangue.
Ora, o Dia da Ressurreição de Jesus, o Dia Terceiro, é também o dia da eclosão vegetal sobre a Terra do tempo genesíaco, o que quer dizer, também, que é o dia da emergência da Vida na Criação. Similarmente, o Nascimento de Cristo no ventre da Terra, e o Seu ocultamento até a ocasião propícia para a Sua manifestação à luz do Dia, ou aos olhos dos homens, respeita esse simbolismo. Pode-se mesmo acrescentar uma outra camada de entendimento: a Encarnação, que é a descida do Deus Filho para o Corpo da Morte, é como a inseminação da Semente Divina na carne do Velho Homem, ali guardada até o momento propício da Sua eclosão teofânica — quando a verdadeira natureza de Jesus é revelada aos discípulos na Transfiguração (2 Pe 1:16–18) e, desfeito o Corpo da Morte como um “grão de trigo” (Jo 12:24), no Corpo Pneumático e Glorioso da Ressurreição (Cl 2:9).
… a atitude espiritual que deve ter o cristão ao se aproximar do Menino Deus: de joelhos, reclinando-se sobre o pequeno…
A Igreja da Natividade impõe dramaticamente a assimilação do primeiro movimento, que é o do humilde despir da Glória Celestial que antecipou a Encarnação e o Nascimento do Menino Divino (Fl 2:6–7). A descrição de William Barclay de sua arquitetura vai nessa direção: o ingresso na Igreja só podia ser feito através de uma porta tão pequena, que apenas se podia passar por ela agachado. Em todos os mistérios antigos, o agachamento para passar por uma pequena porta, sobretudo em estruturas de pedra, simulava por si a entrada em uma caverna, que era o local privilegiado das iniciações — o lócus dos labirintos — e dos cultos ctônicos, notadamente os cultos das Crianças Divinas, como Apolo. Em termos simbólicos, e isso já aparece nos santuários megalíticos do Neolítico, essa passagem pela “porta estreita”, a ser feita agachado, era como um regresso à condição nascitural, de criancinha, e a volta ao útero materno como uma espécie de morte antecipatória de um novo nascimento — neste caso, um nascimento espiritual.
A Igreja da Natividade se abria aos olhos do peregrino após o “buraco de agulha”, desdobrando a Caverna bem abaixo do altar principal, desde o qual o peregrino descia, como descendo à profundeza da Terra. Chegado na Caverna, se deparava com um pequeno e escuro lugar, com quatorze metros de comprimento e quatro de altura, e iluminado por cinquenta e três lâmpadas de prata. No piso ele via uma estrela, porque uma antiquíssima tradição fala de um pilar de luz prateada que desceu da Estrela diretamente para dentro da Caverna, e ao redor deste signo lia a sentença latina: “Aqui nasceu Jesus, da Virgem Maria”.
O drama da entrada do peregrino para dentro da Igreja e para o fundo da Caverna, que está embaixo do altar, demanda por si mesmo e através do gesto corporal a atitude espiritual que deve ter o cristão ao se aproximar do Menino Deus: de joelhos, reclinando-se sobre o pequeno, que jaz adormecido na manjedoura, como quem se curva diante de um Novo Rei e como quem se abaixa, em espírito leve e contemplativo, para ver um Novo Nascido. É essa a postura de humildade, e que fez os reis e sábios do Oriente também se curvarem, que nos deve ser instruída pelo Presépio, porque é por meio dela que, despidos de nossas próprias glórias humanas, de todas as nossas conquistas e de nossa posição social, nos tornamos como meninos, entregues à beleza da Criança e à alegria da Salvação que ora nos chega. Neste ínterim, o nobre rei se rebaixa à Criança Enfaixada, enquanto o pobre pastor se eleva, porque o Deus Jesus, o Senhor dos Senhores, veio ao mundo sem nada.
De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens. E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz.
- Filipenses 2:5–8
É aqui que inicia a jornada da vida cristã, porque é quando assimilamos à nossa existência o Mistério da Encarnação, ajoelhados, humilhados, rebaixados ao Corpo da Morte, que também recebemos, infundida em nossa alma, reabilitada pelo Espírito Santo, a Semente Divina, que é a promessa da nossa Ressurreição (1 Co 15:20–23).
Porque Deus, que disse: ‘Das trevas resplandeça a luz’ [Gn 1:3], ele mesmo resplandeceu em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Jesus Cristo.
- 2 Coríntios 4:6
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 20 de dezembro de 2024.