O Deus Um, Deus Justo
A diminuição do forte e a exaltação do fraco
Quando se crê no Deus Um, se pode ter, como se percebe nas lendas judaicas, uma inversão na economia cósmica. Veja bem: num cenário cosmológico, de panteão, crescem e se elevam os mais fortes, mas num universo regido desde a matriz por uma divindade única e insuperável, a lei da força perde seu apelo, porque Deus, já estando acima de todas as coisas, punirá todos aqueles que queiram ir além de seus próprios limites, que são os limites impostos pelo Criador, e que procurem se elevar aos céus, onde Ele reina sozinho.
Uma das lendas mais elucidativas, que encontrei em Bin Gorion, é a da criação do ferro:
“No Terceiro Dia Deus criou todas as árvore do paraíso e da terra, eram árvores que carregavam frutos e árvores que não carregavam frutos. Quando porém, os cedros do Líbano, os carvalhos de Basan e todas as árvores altas perceberam que foram criadas em primeiro lugar, levantaram suas capas e tornaram-se atrevidas. Mas o Senhor falou: Odeio o orgulho e a altivez, ninguém é mais alto do que eu! E logo depois criou o ferro.
Quando as árvores viram que o Senhor criara o ferro, estremeceram e choraram diante do Senhor. Então o Senhor lhes perguntou: Por que chorais? Elas responderam dizendo: Choramos porque criaste o ferro para que nos seja colocado à raiz; considerávamo-nos mais fortes do que tudo na terra e agora nos surge um destruidor. Então o Senhor falou: Eis que para o machado é preciso tirar primeiro o cabo de madeira, se voz quer derrubar; é assim que procedo: primeiro tendes o poder sobre o ferro e depois o ferro sobre vós. E assim o Senhor obteve a paz entre eles.”
Além da magnífica lição sobre a tecnologia (“primeiro tendes o poder sobre o ferro e depois o ferro sobre vós”), o relato subsequente reforça o amor de Deus pelos pequenos: “Não existe nenhuma ervinha na terra que não tenha sua estrela no céu, que a impele e lhe diz: Cresce, torna-te grande.”
Essa tônica está clara ao longo de todas as lendas, esclarecendo sobre o característico temperamento do povo judeu, que encontra no seu Deus uma preferência pelos fracos. É deles o Deus que fortalece aqueles que eram desprezados por todos e, com isso, faz-se glorificar, mostrando que a Sua sabedoria é maior do que a sabedoria dos homens e que a Sua fraqueza é mais forte do que a força dos homens.
Tal dinâmica aparece já desde os relatos iniciais da Criação, quando o Senhor defende a Terra, vulnerável, do atrevimento das Águas, que tentavam inundar o mundo novamente, como fizeram no Princípio, e prossegue no estabelecimento dos chamados Quatro Guardiões da Terra, que são criaturas cósmicas, regentes de certos aspectos da Criação. São eles os Serafins, que protegem os seres humanos do ataque dos demônios; o Touro das Mil Montanhas, ou Reem, cujo mugido espanta os predadores e protege o gado e os animais domésticos; a Grande Águia, ou Ziz, que, com seu canto, espanta as aves de rapina e protege as aves menores; o Leviatã, que protege os peixes miúdos dos peixes maiores. Ocorre, contudo, que, dos Guardiões, Leviatã e Reem não possuem suas fêmeas, para que não se reproduzam, sendo as únicas criaturas da Terra que não têm parceiras. Por qual razão? Porque são grandes e fortes demais e, caso se multiplicassem, quebrariam o mundo no meio, por isso Deus castrou os machos e abateu as fêmeas, cuja carne salgou e guardou para o vindouro banquete dos Justos.
A respeito de outras criaturas, continuamos vendo como Deus se preocupa em limitar a força: a Toupeira está confinada ao subterrâneo porque, caso visse a luz do dia, derrubaria qualquer outra criatura; a Serpente, se tivesse patas, superaria e mataria até o cavalo; o Sapo, se tivesse dentes, mataria qualquer animal das águas. E quando um sapo cresceu demais, até o ponto de atingir o tamanho de uma cidade de sessenta casas, foi engolido por uma serpente, que, por sua vez, foi engolida por uma gralha. E ao homem, cujo rebanho apavorou a Terra, porque consumiria todo o seu alimento e ainda teria fome, Deus controlou assumindo para si a Noite e deixando a Terra cuidar do Dia: à Noite o Senhor faz os homens dormirem um sono revigorante, que poupa a Terra.
Os que querem se elevar são rebaixados, enquanto os pequenos são exaltados, porque ninguém é mais alto que Deus.
Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 14 de março de 2022.