O Domínio do Homem
O governo autoritativo, não técnico, da Criação
O modo de domínio adâmico e pré-Queda sobre a Criação era baseado na autoridade espiritual, não no controle e na manipulação tecnológica da natureza. Pode-se dizer que se tratava de um domínio intelectual, assumindo por Intelecto a operação do Espírito.
Uma lenda judaica coletada por Bin Gorion faz Deus responder aos anjos, a respeito do homem, que o distintivo criatural humano é a Sabedoria. Para prová-lo, o Senhor aproximou dele todos os animais, perguntando-lhe o nome de cada um, ao que ele o respondeu muito bem. Quando questionado sobre seu próprio nome, o homem chamou a si mesmo de Adão e, enfim, ao ser inquirido sobre qual seria o nome de Deus, respondeu: “Tu, convém chamar-te de Senhor, pois tu és o Senhor de todas as criaturas.” É notável a escala ascensional na ordem da Realidade, subindo ao Ser: começa-se com as criaturas particulares, e cada uma é nomeada segundo a sua entidade (no sentido de ente), chega-se ao homem, distinto dos animais pela capacidade de apreender a sua (e a própria) forma substancial, e termina-se em Deus, o “Senhor de todas as criaturas”, de maneira que é d’Ele que se pode apreender a unidade na diversidade do Mundo. É de Deus, por conseguinte, que vem a Sabedoria, manifestação da própria forma substancial humana, que é Espírito, e pela qual o homem opera o Intelecto — ou seja, sabe o que são as coisas particulares a partir da intuição do Absoluto. Ademais, o conceito judaico de Sabedoria está inextricavelmente ligado ao Logos, à Palavra pela qual o Senhor criou tudo quanto existe — a Sabedoria é o Arquiteto da Criação (Pv 8.) e é Sábio aquele que, conhecendo a Deus, consegue discernir o que cada coisa é, porque apreende o seu lugar na Realidade. Isso corresponde a um conhecimento imediato das Quatro Causas: de qual matéria a criatura é feita (isso orienta ao entendimento das necessidades da alma vegetativa), qual é a forma substancial que a anima (isso orienta ao entendimento das inclinações da alma sensitiva), quem ou o que é o seu causador (o Criador, n’última instância) e qual é a sua finalidade (segundo o seu lugar na estrutura do Cosmos). Tudo isso é possível ao homem enquanto operação da alma intelectiva e lhe dá o entendimento sobre as necessidades e as razões de ser de cada criatura, as quais é capaz de compreender, de manejar e de conduzir, sempre visando seu máximo florescimento.
O seu modo de guardá-lo e de cultivá-lo, é necessariamente intelectual, espiritual
Em razão disso, o modo originário da condução adâmica do Jardim, o seu modo de guardá-lo e de cultivá-lo, é necessariamente intelectual, espiritual, e, por isso, substancialmente contemplativo. Isso inviabiliza a ideia de que Adão trabalhava no Éden. Ele não trabalhava. No Santuário de Deus, em Israel, não eram permitidas atividades laboriosas e produtivas, sobretudo no tempo sabático — o tempo do culto no Santuário era tempo festivo, improdutivo, de usufruto daquilo que o Senhor já havia dado e de confiança na Sua promessa de cuidado, baseada na aderência aos termos da Aliança. O Éden, enquanto recinto fechado, era o Templo Cósmico, o Santuário primevo, e ali, tal como na experiência de Tempo Forte do Deserto, no Êxodo, Deus garantiria o sustento. E se no Êxodo bastava ao homem colher diariamente o abundante maná, dispensado desde os Céus, a Adão bastava estender o braço e tomar para si todos os frutos que, no Pomar, lhe apetecessem — exceto um único, cujo consumo representaria a quebra da inocência auroral (que não era ignorância) e a perda do Paraíso. Deve-se mesmo imaginar que Adão, conhecendo exaustivamente todos os animais, dos domésticos aos selváticos, sabia como dominá-los com a voz, com o olhar e com gestos autoritativos, e podia mesmo dirigir o crescimento vegetal. Por isso, sua presença no Jardim não era cultural, nem técnica — se assemelha mais ao formato dos jardins filosóficos da Grécia tardia, com direito à melancolia e à solidão (inevitável na condição absolutamente individual e exclusiva diante do Criador, sem nenhum outro homem a quem nomear — Adão inicialmente só podia conversar com Deus). Repito: a presença de Adão no Jardim não era cultural, nem técnica, porque não era necessário o levantamento de cercas para o afastamento de feras, tampouco para a criação de rebanhos, ou a abertura de canais de irrigação ou sulcos na terra, já que o Jardim de Delícias era regado pelo próprio Deus, dos vapores que Ele fazia descer do Monte Santo, e pelas fontes do Abismo, da Água Viva do Oceano Primordial, sobre o qual o Trono de Deus vagou antes da emersão da Terra Seca, em cuja primeira porção visível foi plantado o Jardim — o Templo do Senhor na Terra, espelhando o Éden Mineral que está no Céu, o Templo Celestial e Eterno, que descerá ao Mundo depois do Fim sob a forma cúbica de proporções cósmicas chamada Nova Jerusalém, que é o Paraíso propriamente dito e o arquétipo celeste do Éden adâmico.
Cristo Jesus, a Sabedoria, o Logos, é, pois, o Segundo Adão. Sua ida ao Deserto para ser tentado por Satanás carrega todo o simbolismo edênico. Uma tradição judaica conta que, tendo sido Adão criado segundo a imagem de Deus, o arcanjo Miguel ordenou que todos os anjos o adorassem (vide Hebreus 1:6), mas Satanás, argumentando que era mais antigo do que Adão, recusou obedecer, porque ele seria mais digno de adoração do que o homem. Assim, expulso do Céu, desejou desde o princípio destituir o homem de toda a glória. Uma outra versão diz que foi o Senhor que ordenou aos anjos que se prostrassem diante de Adão, mas Satanás, o maior dos anjos, contestou, porque ele e as hostes celestes eram feitas do brilho da glória divina, enquanto o homem era fruto do pó da terra, e Deus o censurou, porque disse a Satã que Adão, ainda que pó da terra, tinha infundida nele a Sabedoria, qualidade que os anjos não têm. Com a tentação no Jardim, a Serpente conseguiu fazer com que Adão e Eva, de alguma maneira, a adorassem, levando-os à perda das vestes de luz. A mesma Serpente procurou fazer o mesmo com o Segundo Adão, no Deserto, solicitando d’Ele adoração. Cristo, contrariamente ao Primeiro Adão, resistiu. Por quarenta dias jejuou, e negou a sugestão satânica da transformação de pedras em pães (porque Satanás conhecia o autoridade de Cristo sobre a natureza [atente para a fórmula: “manda que estas pedras se transformem…” — Mt 4:3]), para, enfim, ser de todo servido e saciado pelas feras e pelos anjos (Marcos 1:13). A ideia de Jesus no ermo, entre as feras e os anjos, é um símbolo cosmogônico, um retorno ao Sexto Dia, e Ele estar sendo servido pelos animais e adorado pelos anjos é uma imagem que destaca a autoridade espiritual de Adão sobre as criaturas e o seu status dentro da estrutura da Realidade.
É essa a base do ascetismo cristão primitivo, ou mesmo do ascetismo dos grandes profetas judeus. Essa imersão eremítica na vastidão lítica, desértica, entre os animais selvagens e para dentro do território dos demônios, era como uma saída do tempo e do espaço profanos, da Cidade e da Cultura, visando o Tempo Forte e o Espaço Sagrado, de características edênicas. É concomitante a experiência de reclusão no ermo e o convívio entre as feras, que chegam a servir ao profeta, como é o caso de Elias, que foi alimentado por corvos, além de ter sido servido pelo anjo de Deus. A condição andarilha do profeta, que não tinha a Cidade por lócus fixo e mantinha-se no Tempo Sagrado na medida em que estava em missão no Nome de Deus, o conservava numa condição análoga às origens, de modo que Eliseu, ao defender-se de jovens hostis (que ridicularizaram o distintivo profético da cabeça raspada) com uma maldição, foi acudido por duas ursas. Não esqueçamos de Daniel, lançado no submundo, na Cova, entre leões que emudeceram e se recolheram à presença do Anjo, e nem de Jonas, engolido pelo Grande Peixe do Quinto Dia e recoberto milagrosamente pela abobreira do Terceiro Dia. João Batista é outro magnífico exemplo: seu traje de peles de animais era uma negação das vestes de tecidos, extraídas da cultura (Mt 11:8), e sua alimentação restrita aos produtos silvestres, que coletava, era uma negação das comidas fabricadas (cultivadas, moídas, assadas ou fermentadas) e uma afirmação da dependência exclusiva do Senhor. Por isso João Batista bradava desde o Deserto, entre as feras.
Montanari (A Comida como Cultura) sustenta que parte substancial da vinculação a uma comunidade humana e à sua cultura está na alimentação. Isso é elementar: um dos aspectos mais básicos e determinantes do gregarismo e de uma cultura é o uso da terra, as técnicas, a natureza dos produtos dela extraídos e os seus modos de preparo — seja o tecido do algodão ou da lã, que dá as vestes, seja a carne cozida e temperada, ou os legumes postos no ensopado. Não comer dos produtos da cultura é uma afirmação ativa da rejeição da Cidade e a negação, ou a suspensão, de toda a técnica e de todos os hábitos da vida ímpia. Foi justamente esse o ímpeto originário do eremitismo, mesmo antes do cristianismo, no Crescente: o precoce florescimento e crescimento das cidades do Oriente Médio tornou-as, rapidamente, ninhos de serpentes, antros de depravação e fontes de todos os vícios e frivolidades. Não se vestir de seus tecidos ou comer de suas comidas e viver fora de seus muros, entre fendas e em bosques nas montanhas, era uma proclamação profética per se. Consequentemente, estar na natureza bruta, consumindo apenas aquilo que emerge da terra selvagem, era uma espécie de mergulho no caos primevo, ou na Criação auroral, que sempre se repete da mesma maneira, hoje como nos primeiros dias. Há, aqui, reforço, uma desvinculação do tempo e do espaço profanos e o anúncio do pertencimento a uma comunidade eterna e atemporal, que é o Reino.
Na Idade Média também encontramos esse éthos eremítico, com todas as supracitadas características proféticas. A imagem do santo medieval é a de alguém que vive na última fronteira da realidade, longe da Cidade e da cultura, sendo tentado por Satanás e pelos seus demônios, indo ao encontro de criaturas míticas e monstruosidades do início da Criação e, naturalmente, comandando os animais autoritativamente. Citarei apenas um exemplo, o de Santo Antônio. Convém considerar a etimologia de “Antônio”: designativo do Primogênito Divino, que sai das Águas Genesíacas Primordiais, é Atu-Unu — Atu (Senhor) + Unu (Primogênito). A palavra egípcia “atuunu” foi se desmembrando em nomes conhecidos, como Athon, Adonis, Adam (o hebraico para “Homem”) e, enfim, Antônio. Na figura adâmica, no ermo, entre as feras e os anjos, Santo Antônio aparece fazendo-se entender pelos peixes, tal como consta na famosa lenda de sua pregação aos peixes.
E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado.
E estes sinais seguirão aos que crerem: Em meu nome expulsarão os demônios; falarão novas línguas; pegarão nas serpentes; e, se beberem alguma coisa mortífera, não lhes fará dano algum; e porão as mãos sobre os enfermos, e os curarão. — Marcos 16:15–18
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 16 de maio de 2023.