O Fim do Éon Cristão e o Abate dos Ímpios

Os injustos se colocam no campo dos bodes

Natanael Pedro Castoldi
8 min readNov 3, 2023

Durante a leitura do Arquétipo do Apocalipse (Edinger), deparei-me com uma tremenda sentença de Jung: “A imagem de Deus domina toda a esfera do humano e é expressa involuntariamente pela humanidade.” Como é sugerido ao longo do estudo da presente obra, há certas imagens que, uma vez instaladas no cerne da psique coletiva, estabelecem ali seu arquétipo correspondente e constelam, ou reordenam todo o imaginário segundo a sua própria lógica interna. Em termos melhores: quando uma civilização é cooptada por um princípio, ou um motivo-básico, ela tende, de maneira até certo ponto fatalística, a se organizar para a sua realização ou o seu desdobramento total. Edinger chega a considerar infantilismo o julgamento anacrônico do éthos cristão ocidental nascente como nefasto, porque “patriarcal” e, portanto, opositor do “feminino” do Mundo Antigo — esse éthos foi assimilado civilizacionalmente pela própria caducidade ou pelo termo da energeia do princípio feminil/telúrico do espírito mediterrânico antigo, e uma vez instalado no epicentro imaginal coletivo, vai progredir até o seu próprio limite.

Mas o que se tem no cerne do espírito ocidental não é apenas um oposto simbólico do feminino/telúrico pelo favorecimento do masculino/uraniano — essas oposições estão estabelecidas de maneira dramática no Ocidente desde a infusão dos indo-europeus na Hélade, na Itália, na Gália e no Norte, e chegaram a zênites “patriarcais” notáveis no Império Romano e na teologia grega. O que temos se instalando com a infusão do cristianismo é o monoteísmo revelacional, que Assmann chamará também de monoteísmo político. Diferentemente do monoteísmo cosmoteísta gentílico, que chegou à concepção da divindade única na base do panteão por meio de um desenvolvimento orgânico decorrente do alargamento das fronteiras imperiais e do progresso especulativo dos gregos, o monoteísmo revelacional não é o resultado de um processo, mas de uma ruptura — daí Assmann considerá-lo revolucionário. Ele vem, à semelhança da chamada Distinção Parmenidiana (há Ser e Não-Ser / Verdade e Erro), como Distinção Mosaica, que se impõe com exigências totais: só há um único Deus e Pai, nenhum outro, e todos os que estiverem fora d’Ele estão condenados, e todos os que forem achados n’Ele, pois, de antemão salvos.

Esse é um sentimento especificamente judaico, e o monoteísmo revelacional é considerado por Freud um problema psico-histórico, na medida em que a Distinção Mosaica inaugura uma nova disposição psicológica e uma nova espiritualidade, estabelecida sobre o firme monólito da obediência obstinada, às raias do impossível, e de uma consequente carga de culpa e de medo do “Deus Irado” mobilizadora de uma tensão psíquica tal que, sublimada e canalizada para outros setores da vida (exige a posse de todos eles), viabilizou as extraordinárias conquistas morais da “religião paterna monoteísta” (Assmann, p. 148), dentre as quais a fundação da História em termos lineares e a prolífica e monumental literatura judaica, sobretudo a Bíblia Hebraica e seus comentários. Entre os cristãos, evidentemente, a influência gentílica redefiniu alguns horizontes, mas foi toda magnetizada pelo irresistível apelo da Revelação, apelo que o cristianismo disseminou, de maneira irrefreável, em toda a extensão da Europa, da Ásia Menor e do Norte da África.

O monoteísmo revelacional está no coração da civilização ocidental, e ali ainda reside irremediável. O seu vulto determinou a formação da Europa medieval e moderna, com seus estados nacionais, e está sempre impondo o Juízo Final no horizonte. Enlouquecido pelas heresias, nutriu as ideologias modernas e contemporâneas, que intentam imanentizar o Eschaton e antecipar o Juízo Final, e hoje rege os rebelados, comandando, em nível inconsciente, os seus empreendimentos idólatras, que intentam a fundação de uma religião biônica universal e a revogação do Fim por meio de uma burocracia internacional e globalista de matiz ambientalista — estão todos se alinhando, querendo ou não, ao previsto espectro do Anticristo, porque não podem fazer o que pretendem fora do vulto cristão, uma vez que necessariamente devem ser anticristãos.

A humanidade ocidental “expressa involuntariamente” a imagem de Deus no sentido de organizar-se segundo seus comandos arquetípicos.

Nisso se encontra claramente o sentido daquilo que Jung disse: “A imagem de Deus domina toda a esfera do humano e é expressa involuntariamente pela humanidade.” A lógica interna dos desdobramentos do motivo revelacional no Ocidente é o fator de fundo da organização de toda a sociedade ocidental, que ganha crescente explicitude na medida em que o arquétipo do Deus Pai, com todo o seu caudal de arquétipos associados, se aproxima do zênite de suas implicações, constelando sob si o chamado Arquétipo do Apocalipse — ao longo do último milênio, a fronteira desse arquétipo apocalíptico foi aproximada algumas vezes em situações de crises vastas, mas essa fronteira nunca foi atravessada de maneira cabal e tal como tem sido agora, uma vez que o éon cristão está no fim e seu motivo, de fato, parece estar atingindo o limite de sua potência, donde a manifestação inequívoca da rebelião dos reis e de suas nações contra o Cristo (como nunca se vira antes em nosso hemisfério), à semelhança do oráculo de Daniel, que viu as bestas pagãs se reerguendo depois do abatimento da última besta, o dragão (tradicionalmente interpretado como o Império Romano).

A humanidade ocidental “expressa involuntariamente” a imagem de Deus no sentido de organizar-se segundo seus comandos arquetípicos. Esse “sentimento” ou impulso direciona os justos, aqueles que se renderam ao Deus Único, à condição de consagração e santificação, numa crescente de ímpeto moral inversamente proporcional ao crescimento da iniquidade. Esses justos são as ovelhas, o rebanho de Deus que já está se separando para o “caminho da direita”, e não temem a Volta e nem o Juízo, porque se sabem marcados como filhos de Deus Pai. O mesmo sentimento impulsiona os impuros mais fundo na vereda da impureza e da concupiscência, e vão se prost1tu1nd0 junto de Babilônia, com consciência cada vez mais clara de sua inimizade para com Deus e um alargamento da culpa, que se mostra na intensificação do medo do Fim — pavores, ao ponto do desmaio, mediante os bramidos dos mares e os sinais celestes. Quanto mais se clareia a consciência da própria vilania e os apelos de Babilônia se conservam irresistíveis, tanto mais cresce a culpa e o medo, todavia sem culminar em arrependimento, porque Babilônia é-lhes insuportavelmente sedutora, e se afundam sempre mais obstinadamente na maldade. Eles estão, portanto, separando a si mesmos como bodes e se alinhando à “esquerda”. Não há, pois, como fugir da imagem de Deus, que está assentada no coração do Ocidente: ou Ele é amado e obedecido, ou odiado em luciferiana rebelião, de maneira que todos os partícipes de nossa cultura, ainda que inconscientemente, se ordenam espontaneamente ao redor dessa imagem — uns para ovelhas, outros para bodes. Repete-se: quanto mais perto do fim do éon cristão se chega, ou do limite interno do motivo revelacional, mais explícita e intensa fica essa movimentação, e o que transcorrera em mil anos se sucede em um dia, dando a impressão de o tempo se acelerar.

Quem é injusto, seja injusto ainda; e quem é sujo, seja sujo ainda; e quem é justo, seja justificado ainda; e quem é santo, seja santificado ainda. — Ap 22:11

Quem não é comigo é contra mim; e quem comigo não ajunta, espalha. — Lc 11:23

O que também quer dizer, ao fim e ao cabo, que, para os santos, Deus é Salvador, e mostra-Se no amor do Pai, mas, para os ímpios, pois, Deus não pode ser senão Deus Terrível, sombra de Juízo e “fogo devorador”. Daí os justos expressarem a “imagem de Deus” nos termos diurnos, ou benévolos, porque é assim que o Senhor lhes parece: bom pastor, Pai de amor. Daí os impuros expressarem a “imagem de Deus” em termos noturnos, ou fulminantes, porque é assim que o Senhor lhes parece: Juiz implacável, destruidor do Mundo. E tal como veem a Deus, se posicionam na Terra: os primeiros assumem caminhos estreitos e virtuosos, cheios da expectativa da Vinda, os demais se tremem de medo do Fim, se perdem em distrações viciosas, como se Fim não houvesse, mas se preparam para a fuga às fendas e cavernas quando o Dia chegar — e eles sabem que ele chegará.

Homens desmaiando de terror, na expectação das coisas que sobrevirão ao mundo; porquanto as virtudes do céu serão abaladas. E então verão vir o Filho do homem numa nuvem, com poder e grande glória.
Ora, quando estas coisas começarem a acontecer, olhai para cima e levantai as vossas cabeças, porque a vossa redenção está próxima. — Lc 21:26–28

Então, todas as montanhas e ilhas foram removidas de seus lugares. E aconteceu que os reis da terra, os príncipes, os generais, os ricos, os poderosos; todos enfim, escravos e livres, buscaram refugiar-se em cavernas e entre as rochas das montanhas. — Ap 6:14–15

Pelo seu pavor, os concupiscentes já mostram o lugar que escolheram ocupar — sob o aspecto sombrio e relampejante do Senhor. Pela sua confiança, os santos de antemão evidenciam o caminho que trilham — à luz do Pai, por meio do Filho. Nas massas da humanidade, imperativos escatológicos se cumprem e as pessoas individuais, nesse sentido, estão sendo arrastadas segundo os comandos cosmológicos da teodiceia cristã. Põem-se, portanto, no lugar terrível no qual a lenda judaica pôs Leviatã, Beemote e Ziz: princípios cósmicos do Abismo e do Caos, os monstros primevos serão abatidos por Deus no Dia e serão servidos no Banquete dos Justos, diante do Trono do Senhor. No Apocalipse, os abatidos, que serão banquete, são os ímpios, conforme de lê no capítulo 19:17–18:

E vi um anjo que estava no sol, e clamou com grande voz, dizendo a todas as aves que voavam pelo meio do céu: Vinde, e ajuntai-vos à ceia do grande Deus; para que comais a carne dos reis, e a carne dos tribunos, e a carne dos fortes, e a carne dos cavalos e dos que sobre eles se assentam; e a carne de todos os homens, livres e servos, pequenos e grandes.

Enquanto os ímpios, os bodes, são abatidos para o banquete, os justos, Noiva de Cristo, chegam para as Bodas. Os justos, a Esposa, servir-se-ão do banquete nupcial, como é dito no mesmo Apocalipse 19, versículo 7. O significado disso não deve, obviamente, ser entendido como literal, mas pelo que de fato quer dizer: as Bodas do Cordeiro se cumprem no “devoramento” de Tohu/Bohu, na completa aniquilação do Abismo e de dos filhos das trevas, que estão nas trevas da própria sombra do Divino. Ou, partindo do simbolismo antigo, serão eles os sacrifícios propícios dos festejos nupciais.

Indo mais fundo na intensificação dessa polarização, deve-se considerar o começo do abate dos ímpios, marcado em Apocalipse 7:13–15, sobretudo no trecho: “Estes são os que vieram da grande tribulação, e lavaram as suas vestes e as branquearam no sangue do Cordeiro”. Segundo os estudos de Edinger em J. M. Ford (1975), somado a Isaías 63:1–6, a ideia de “lavar a própria túnica no sangue do Cordeiro” pode significar juntar-se ao abate dos inimigos do Cordeiro. Conquanto o significado de superfície indique o martírio, o derramamento do sangue do mártir à semelhança do derramamento do sangue de Cristo pelas mãos dos inimigos de Deus, deve haver, conforme Ford, um revés: os que foram sacrificados pelos ímpios, os mártires, agora entram na batalha ao lado Cristo como guerreiros. Quanto a isso, todavia, não tenho informações adicionais e suficientemente consistentes, exceto o próprio apelo da ideia: os santos, quando se diz que “julgarão o Mundo todo” (1 Co 6:2), julgarão para aniquilação (pois eles, os justos, já foram separados) e participarão da Vingança, como agentes do Deus Terrível, que vem rasgando o Céu com suas hostes de guerra.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 12 de Setembro de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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