O Homem Instintivo
E a apresentação do instinto de imortalidade
Como observa fartamente Montpellier (Psiquismo no Homem e no Animal), todo o instinto tem a qualidade de um agente organizador da ação típica — o estímulo, interno ou externo, desencadeia movimentos orgânicos que mobilizam movimentos efetivos. A complexidade (quantidade e variedade) de atos estereotipados empreendidos pelo menor dos animais para satisfazer a uma única demanda instintiva pode surpreender — a montagem do ninho de um inseto é um bom exemplo. Isso significa que um instinto não é apenas o impulso repentino que leva de uma compulsão imediata a uma realização compulsiva, mas uma arquitetura ordenada de atos sequenciais e de diferentes processos, mais ou menos rígidos, para a satisfação de uma necessidade vital. Assim, pois, os elaborados rituais de acasalamento das aves e as caçadas da raposa-do-ártico. A adaptabilidade dependerá do nível de flexibilidade (ou de “inteligência”) do animal. De todo o modo, fome não é instinto, nem pulsão sexual — o instinto é para saciar a fome, seja caçar ou coletar; o instinto é para reproduzir, com toda a variedade que ele apresentará. Portanto, o instinto organiza o comportamento, é um movimento, um ímpeto para a satisfação de compulsões inerentes à criatura. Por conseguinte, o instinto possui um programa completo, que prevê e compreende todos os atos necessários (dentro de uma relativa normalidade).
O homem será instintual desde o momento em que é biológico e apresenta apetites orgânicos, compulsões animais típicas. Todavia, há um componente orgânico adicional inscrito no homem e por sobre os instintos primários: a memória — no sentido próprio da memória humana, linguística e imagética, ou episódica. Toda a memória existe, na medida em que a informação foi absorvida e instalada no homem, somaticamente — ela está estabelecida em filamento proteico, como informação orgânica, em diversos setores do sistema nervoso. Toda a memória é acúmulo de informação ambiental, colando informação (o que inclui imagem) com emoção correspondente, para demarcar lugares e objetos a serem desejados ou evitados. Essa é a matriz da autoimagem, do conhecimento de si a partir da perduração de um eu agente. Soma-se à memória a própria magnitude da inteligência humana, das quais o homem se serve na medida em que é consciente. O Intelecto per se, conquanto possa demandar memória e, certamente, o aparato cognitivo neurológico, existe eminentemente em um sentido espiritual — por iluminação e sem a exigência de uma preexistência mnemônica, pode se lançar diretamente às coisas e percebê-las em si mesmas (eis a chamada “experiência primitiva”, de Lavelle), mas uma vez que a percepção é apreendida psiquicamente e passa a habitar a psique, ela existirá corporalmente, enquanto memória. É pela memória e pela inteligência que o homem é incapaz de se servir dos instintos de maneira tão ingênua quanto os animais.
Os arquétipos, enquanto memória coletiva, existem corporalmente antes de existirem para a consciência…
Isso é assim porque os próprios instintos e os apetites aos quais se referem existem psiquicamente — ou seja, eles possuem uma forma, um modo de existência no sistema psíquico, porque são objetos da psique na medida em que são seus estimuladores. Ademais, as ocasiões de sua satisfação ou de sua frustração, que são eventos experienciados, ficam guardadas, de algum modo, enquanto memória. Se existem psiquicamente, os instintos, seus apetites e suas fontes excitatórias viscerais (como os órgãos internos), eles têm uma existência simbólica, aparente na vida onírica, e, ligados às memórias individuais (ontogênese / psicogênese) e da espécie (filogênese), arquetípica. Os arquétipos, enquanto memória coletiva, existem corporalmente antes de existirem para a consciência — apesar de sua existência de antemão ser psíquica, na medida em que a memória é, como já dissemos noutro estudo, “matéria psíquica”. Se existem corporalmente, instam como um tipo de memória procedural para mobilizar a ação, instigar o movimento, estimular a inclinação. Sua função será, então, análoga ao instinto nos animais, ou a forma apropriada de manifestação do instinto nos homens.
Deve-se ter em mente que a experiência cumulada da espécie humana ao redor dos instintos primários, segundo o processo cultural multimilenário gene-cultura (E. O. Wilson), necessariamente alterou o programa básico do instinto ingênuo — se o instinto animal para a caça, visando o saciamento da fome, seguia um padrão consistente de atos variados até o alcance da presa, a experiência primitiva da humanidade caçadora, que viveu a caça primordial, ao longo de centenas de milhares de anos, com consciência inteligente e memória, além de vivê-la dentro de um sistema cultural intrincado (porque o cérebro humano é transdominial e metarrepresentacional), trabalhou e retrabalhou o instinto da caça segundo um rígido sistema de procedimentos simbólicos, imbricados religiosamente e prenhe de afetos, ao ponto de se articular a uma miríade de arquétipos altamente apelativos — ou seja, sai-se do instinto para a instituição da caça, a qual se dá ritualmente, segundo trâmites míticos e litúrgicos. Se um instinto caçador eclode, hoje, no homem, ele vem, como no animal, matizado em uma arquitetura de atos (ele é movimento), mas, sendo homem, esse matiz é todo ele impregnado de certa aura numinosa e de algumas demandas mínimas por gestos estereotipados, por procedimentos ligeiramente rituais, por algum tipo de reverência — sem os quais há bestialização e barbárie dolosas ao invés de caçada.
… o programa de satisfação do instinto sexual humano está profusamente arquetipizado…
O mesmo para a experiência do matrimônio, a qual Konrad Lorenz vê como a institucionalização racionalizada do instinto sexual, reprodutivo primevo, como uma forma de compensar a perda dos imperativos rígidos dos necessários ritos de acasalamento dos animais, os quais servem para a seleção de parceiros férteis a partir da imposição de dificuldades notáveis, vindo o matrimônio, com toda a sua série de implicações espaço-temporais, de atos e das suas etapas, garantir a boa saúde genética da espécie humana. Foram tantas centenas de milhares de anos de humanidade primitiva ao redor de ritos matrimoniais, com todos os seus processos, os quais vão do galanteio às núpcias, e com tantas implicações sacramentais e simbólicas, que é simplesmente impossível conceber no homem moderno um puro instinto sexual análogo ao dos animais — o programa de satisfação do instinto sexual humano está profusamente arquetipizado, simbolicamente matizado, prenhe de numinosidade, e só se realizará de fato se sua compulsão interna reverter nos atos aos quais estimula, com menor ou maior rigidez. O homem moderno, dirá Lorenz, quando despreza a instituição do matrimônio em favor do sexo fácil e livre, não está se assemelhando aos animais, porque estes são guiados por sólidos instintos, mas se tornando outra coisa, algo de bestial, de brutal.
O arquétipo, portanto, como a forma psíquica do instinto, do instinto propriamente humano, apresenta um programa de atos, um canal de movimentos que pode chegar a complexidades (variedades e quantidades) notáveis. Os grandes momentos da vida individual, de alto teor afetivo e mobilizadores de fartos montantes de energia psíquica, correspondem a instintos arquetipizados e devem ser vividos seguindo programas de tipo universal, padronizados na espécie, com a flexibilidade criativa das variações acidentais, mas sem o esvaziamento de seu núcleo substancial. A própria jornada da vida individual, na medida em que o medo da morte é um fator preponderante da existência humana universal, embora não redutível ao mero instinto de sobrevivência, porque a experiência mnemônica da espécie põe a morte como horizonte inevitável e como perturbação perene da consciência lúcida, mobiliza um apropriado instinto arquetipizado. O instinto da imortalidade, enquanto instinto, possui um programa interno de realização que está atrelado à duração da vida inteira, vista, então, como uma jornada estruturada, ordenada segundo atos e etapas, segundo tempos e em vista da maturidade. Esse instinto de imortalidade, que pode ser o mesmo instinto de divindade, unicamente humano e eminentemente espiritual, pode ser mesmo considerado um “arqui-instinto”, na medida em que apreende em si e se serve de todos os demais.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 10 de junho de 2024.