O Homem — Metatron, Cristo e a Igreja
Elementos de Cosmologia e de Escatologia cristãs
Metatron (Enoque glorificado) é chamado “Menino” por ser o mais jovem dentre as hostes celestiais, e também de Senhor, o Pequeno, e o “Príncipe do Semblante”. Metatron, diz-se, foi estabelecido por Deus como o Princípio da Criação, formado pessoalmente pelo Criador, membro por membro, nos dias de Adão, e retirado para a Sua Glória quando a estirpe ímpia do Dilúvio chegou. Disposto no Palácio Celestial e junto do Santuário, que está 18 milhas acima do Templo de Salomão, no Monte Sião, está aos pés do Trono e da Carruagem de Deus, ladeado pelos querubins, pelos “seres brilhantes” (Chashmalim) e pelos serafins (Gorion, As Lendas do Povo Judeu, p. 80). Príncipe no Céu, Príncipe dos Anjos, veste-se à semelhança do glorioso Adão de antes da Queda (Ez 28:12–14):
Transformei sua carne num facho de fogo e os membros do seu corpo em braseiro ardente. Tornei seu aspecto como um raio e fiz brilhar para sempre a luz de suas pálpebras; fiz o brilho do seu semblante ser como a luz do sol, fiz seus olhos brilharem, como brilha o trono da minha glória. Depois o envolvi em magnífica veste, toda brilho e fausto, e vesti-lhe um manto cheio de altivez e glória.
[…] Fiz com que soubesse de todas as coisas ocultas e coloquei seu trono ante a entrada do meu palácio; ali deveria sentar-se e proferir julgamentos sobre a parentela celestial.
- Gorion, p. 81
Não é necessário qualquer esforço para identificar no descrito acima as qualidades do Filho do Homem divisado pelo profeta Daniel no Céu, tal como se lê em Daniel 7:1–10, donde as descrições do Metatron serem a mesmas do Cristo Ressurreto de Apocalipse 1:12–20. Mais: a preexistência de Metatron, conhecido por Deus antes da Fundação do Mundo e por Ele criado no Princípio, isto é: a preexistência de Metatron ao próprio Enoque enquanto arquétipo da Humanidade (“Pois este é o homem a quem Deus criou à Sua imagem e ao qual deu a forma celestial, pura e íntegra” — Gorion, p. 82), impõe-lhe uma condição análoga à do Logos Divino. Doutro modo: segundo a tradição, no mesmo ato da Criação de Adão Glorioso e prevendo a sua Queda, tornado Adão o patriarca da humanidade caída, Deus criou também Metatron, a quem preservaria da Queda e em quem conservaria intacta a Sua Imagem e a Sua Semelhança — Metatron será, então, o patriarca da humanidade ressurreta, glorificada segundo a medida de sua própria glória, que é a glória arquetípica do Homem enquanto Imagem e Semelhança de Deus. Nesse ínterim, o corpo mortal de Enoque, filho de Jared, foi transfigurado e assimilado à Glória do Senhor, desvelando nele e através dele o princípio da Criação, a saber: o fundamento e o propósito de todas as coisas, porque tudo se fez a partir do e para o Homem (“Deus falou: Produza a terra alma viva. Com isto quis dizer: o espírito do primeiro homem.” -Gorion, p. 36), o que significa: para o próprio Deus, que tem no Homem a Sua Imagem e a Sua Semelhança. Metatron, no Princípio, estava com Deus, pois era ele o Princípio de todas as coisas.
Adão, primeiro homem, era a luz do mundo e o sangue do sangue do Eterno.
A Terra era deserta e vazia, a escuridão pairava sobre a profundeza e o espírito do Rei Messias, dizem outros, o espírito de Adão, pairava sobre a água. — Gorion, p. 37
O próprio governo de Metatron sobre os anjos testemunha do lócus cosmogônico e cosmológico do Homem, que é a Imagem e a Semelhança de Deus, isto é: o Princípio e o Fim da Criação. Porque Adão Glorioso, dispõe a tradição, no mesmo instante em que recebe o Espírito pelo Sopro do Senhor em suas narinas, é posto pelo Criador diante dos anjos para que os anjos a ele se prostrem, como prostrados à Sua Imagem que está na Terra. Deste ponto irradiam muitas histórias da Rebelião de Lúcifer, o Querubim da Guarda, portador do zênite da Glória de Deus, porque ele não suportou a ideia de curvar-se ao Homem — os anjos, é dito, sentiram inveja do Homem, mas apenas uma fração deles acompanhou o Opositor na Rebelião.
O Satã, porém, maior do que todos os anjos do céu, falou ao Senhor: Senhor do Mundo! Criaste-nos do brilho da tua glória e dos dizes que nos prostremos diante de alguém, que fizeste do pó da terra. O Senhor disse: O que é do pó da terra tem sabedoria e entendimento, o que tu não tens. — Gorion, p. 44
Os escritos enóquicos, o Enoque Etíope, Os Segredos de Enoque e o Enoque Hebraico, podem remontar até ao Séc. V a.C., passando pelo Séc. III a.C. e chegando ao Séc. I d.C. Isso significa que as tradições por eles representadas são, no mínimo, tão antigas quanto o Novo Testamento e não refletem tentativas judaicas de atribuir a um outro parte daquilo que os cristãos atribuíam a Cristo. Na realidade, o que deve ter acontecido, e bem o diz Barker (O Profeta Perdido), é o contrário: desde pelo menos Qumran as qualidades do Messias eram aproximadas de Metatron e Enoque pertence ao espectro da escatologia e do apocalipsismo, daí a intuitiva assimilação de Metatron por Cristo. Não há espaço aqui para a exposição exaustiva desse argumento, bastando-me asseverar: os cristãos primitivos, sobretudo os palestinos, conheciam a tradição enóquica e discerniram que tudo ao que ela se referia era aplicável ao Jesus Glorioso, o verdadeiro Menino, governador dos anjos, entronizado junto do Pai, o Princípio e o Fim da Criação — o verdadeiro Filho do Homem, plenitude da Imagem e da Semelhança de Deus no sentido de Colossenses 2:9–10, o Segundo Adão e o Logos Divino. Deus coeterno com o Pai, mas gerado Filho de Deus antes da Fundação do Mundo, para que o Mundo pudesse ser feito, isto é: iniciado e terminado no Homem. Coeterno com o Pai, gerado Filho no advento da Criação — Imagem e Semelhança do Pai e arquétipo do Homem no Paraíso Celestial para a Criação do Mundo e no Homem no Paraíso Terrestre. Caído o Primeiro Adão, permanece o Filho, Imagem e Semelhança do Pai no Santuário Celeste — isto é: a Face visível d’O Entronizado, a Quem o profeta João de Patmos viu no Trono, mas cuja Face é indescritível (Ap 4).
Daí, Eterno, ser mais antigo do que todos os anjos, mas também ser o mais jovem dentre as hostes celestiais, porque é gerado Filho…
O Filho Encarna para, descendo ao Mundo em Corpo da Morte, restaurar pela Ressurreição a Imagem e a Semelhança de Deus na Terra, donde “Segundo Adão”, derrotando o princípio de corrupção ligado ao Adão Terreno e impondo o princípio de Ressurreição ligado ao Adão Celeste pela vitória sobre a Morte, derrotada a Antiga Serpente nos Ínferos. Ascende aos Céus na Nuvem da Glória e ingressa no meio do Trono de Deus com todos os méritos daquele que desceu ao sepulcro no Corpo da Morte do Homem, do Abismo retornando no Corpo da Ressurreição do Homem, que é o Corpo do Primeiro Adão Glorioso (antes da Queda), para adentrar no Santuário Celeste com o Corpo Glorioso do Homem, sendo neste corpo, como Verdadeiro Homem e Verdadeiro Deus, que ora está à destra do Pai “até que ponha a teus inimigos por escabelo de teus pés” (Hb 1:13). Daí, Eterno, ser mais antigo do que todos os anjos, mas também ser o mais jovem dentre as hostes celestiais, porque é gerado Filho para a Criação e é ingresso no Arawot em Corpo de Glória, levando novidade ao Santuário Celestial, novidade cantada pelos anjos em cântico novo, nunca antes ouvido no Paraíso Celeste (Ap 5:9).
Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de tudo, por quem fez também o mundo.
O qual, sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da sua pessoa, e sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, havendo feito por si mesmo a purificação dos nossos pecados, assentou-se à destra da majestade nas alturas; feito tanto mais excelente do que os anjos, quanto herdou mais excelente nome do que eles.
Porque, a qual dos anjos disse jamais: Tu és meu Filho, Hoje te gerei? E outra vez: Eu lhe serei por Pai, E ele me será por Filho?
E outra vez, quando introduz no mundo o primogênito, diz: E todos os anjos de Deus o adorem. E, quanto aos anjos, diz: Faz dos seus anjos espíritos, e de seus ministros labareda de fogo.
Mas, do Filho, diz: Ó Deus, o teu trono subsiste pelos séculos dos séculos; Cetro de equidade é o cetro do teu reino. Amaste a justiça e odiaste a iniquidade; por isso Deus, o teu Deus, te ungiu com óleo de alegria mais do que a teus companheiros. — Hebreus 1:1–9
Como estamos no terreno do Mito, da Verdade nos termos da Transcendência, é evidente que não lidamos com uma cronologia exata e literal. No Eterno, onde não há efetivamente mudança, econômico no sentido de conter em si apenas o substancial e arquetípico, sem os acidentes, não há sequência de eventos — ela os há para os homens, quando tentam entender o Mito -, mas a concomitância contínua e sincrônica de tudo o que é fundamento para o Mundo — o Tempo Forte é uma sempiterna atualidade e tudo nele há tão densa e completamente que ele é, ao fim e ao cabo, imóvel (em sentido metafísico). E como a Realidade, ou o Mundo, se firma em atos divinos, o Eterno é o palco de todos os atos fundacionais do Mundo, porque é o Ato, ou todas as perfeições do Mundo. Isso significa que tudo nele É para que as coisas que são apenas em parte, aquilo que pertence ao Mundo, não deixem de ser. Significa, portanto, que a imagem divisada por João de Patmos em Apocalipse 5 e o texto místico de Hebreus 1 apresentam o próprio evento da Geração do Filho no seio da Eternidade, que é o mesmo evento da Geração do Filho no advento de Seu reingresso no Paraíso Celestial quando, Ressurreto, Ascende aos Céus. Do ponto de vista do Eterno, os dois movimentos são um só e único, sobrando o Mistério da Encarnação e da Ressurreição — de que maneira a Encarnação, ou a geração do Filho do Homem enquanto Imagem do Pai, pressuposta para a Criação, repercute na Eternidade.
… a imagem divisada por João de Patmos em Apocalipse 5 e o texto místico de Hebreus 1 apresentam o próprio evento da Geração do Filho no seio da Eternidade…
O fato é que os místicos judeus que conheceram e desenvolveram as tradições enóquicas de Metatron transpareceram uma das visões mais enobrecedoras e magníficas sobre o que é o Homem diante de Deus, considerando necessária a presença do Homem Eterno, Glorificado, dentro do Paraíso Celestial e junto do Trono de Deus, sendo ali a Imagem e a Semelhança do Pai no Santuário Celeste, para que o próprio Mundo fosse criado, porque é do Homem e para o Homem que o Mundo foi feito — o que quer dizer: para Deus, porque o Homem é a Sua Imagem e a Sua Semelhança. Metatron absorveu toda a excelência dessa desnorteante visão e Cristo, Verdadeiro Metatron, absorve-a em Si. Filho do Homem, o Homem Eterno, por Ele e para Ele foram feitas todas as coisas (Rm 11:36). N’Ele, no Cristo, herdeiros da Sua Ressurreição, temos a promessa do Corpo Glorioso, que é a verdadeira Imagem e Semelhança do Senhor (2 Co 3:18). Seremos, então, um só com Ele, como Ele é um só com o Pai. Seremos, portanto, o Homem — aquele que foi no Princípio e que é o Fim.
Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou a estes também chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou.
- Romanos 8:29–30
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 28 de agosto de 2024.