O Homem, os Anjos e os Demônios
Segundo os seus lugares na Criação
Relendo Bin Gorion (As Lendas do Povo Judeu) e uma das lendas a respeito da queda de Lúcifer, chamou-me a atenção a ideia de que Adão, feito do pó da terra, era maior do que os anjos, feitos do brilho da glória de Deus, porque a ele foi dada Sabedoria, não aos anjos. Isso me fez pensar sobre a natureza dos anjos e o que significaria eles não terem Sabedoria. O início da resposta está na própria lenda: se Satã estava indignado com o homem, feito do pó, ter a Sabedoria, se assombraria ainda mais, Deus o diz, quando visse o homem gerando filhos e dando nomes a cada um deles. O ato de gerar, no contexto da tradição compilada por Bin Gorion, está associado ao papel do homem como cocriador, junto de Deus, e o ato de nomear está vinculado à Sabedoria, porque apenas ao homem, dentro da Criação, estaria dado o discernimento substancial de cada criatura e o poder de defini-la através da atribuição de um nome.
As hostes superiores são criadas à imagem de Deus, mas não são fecundas e não se multiplicam; os animais da terra se multiplicam e são fecundos, porém não são à semelhança de Deus. O Senhor falou: Quero criar o homem semelhante aos anjos, mas que seja fecundo e se multiplique como os filhos da terra. — As Lendas do Povo Judeu, p. 37
Os anjos, enquanto seres simples (espíritos ou formas puras), e não compostos (como o homem, que é formal e material), exercem domínio sobre diferentes setores da Criação, conforme as tradições judaicas. Seriam, por exemplo, duzentos os anjos que guardam as estrelas e os celeiros de neve, gelo e orvalho, no Céu Inferior; estão no Quarto Céu os anjos dos ventos, que puxam as carruagens do Sol e da Lua e as grandes estrelas que as acompanham, um com forma de fênix, outro de serafim, ou serpente de bronze — eles possuem doze asas, seus rostos são como as faces de um leão e seus corpos lembram Leviatã, e, regulares em seus horários, também cuidam do Dia e da Noite. No Sexto Céu habitam sete fênices e sete querubins, cuja função é louvar eternamente a Deus, enquanto outros anjos, perto do Trono, estudam as estrelas. Ali também estão os anjos que guardam as horas e os anos, os rios, os mares, as plantações, as pastagens e a humanidade (Robert Graves, Mitologia Hebraica). Enquanto Querubim, Lúcifer estava perenemente encarregado de guardar a Glória de Deus no Monte Santo. Não sendo eles mesmos corpóreos, mas espirituais, podem exercer domínio e influência sobre corpos e reinos da Criação e interferir nas questões humanas, a mando de Deus — por isso, assim como há anjos encarregados de cuidar dos diversos setores do Mundo, deve haver anjos encarregados de impérios, povos e regiões. De alguma maneira, pertencem à infraestrutura do cosmos, e não parecem ter acesso intelectivo ao Absoluto através da miríade das coisas particulares — o que eles sabem de Deus é-lhes conhecido desde seus próprios reinos e de suas funções. O homem, todavia, não é um componente infraestrutural, mas a culminação e a terminação da Criação, a imagem do Criador no Mundo e, por conseguinte, cocriador — ele vem fazer uso da Criação, direcionando-a para a sua finalidade geral, que é a adoração ao Deus Vivo, ou conduzindo-a de todo ao afastamento de Deus. Os anjos são tradicionalmente associados às estrelas (Ver o Reino é Ver o Trono), de maneira que o Senhor recebia louvores angelicais à noite, enquanto os homens dormiam, e louvores humanos ao dia, quando os anjos se recolhiam.
O anjo a quem dois ordenado que de manhã até o meio-dia viesse sobre esse vento que é do oriente, chama-se Michael […]. O vento ocidental sopra do meio-dia até à noite e com ele saem quatrocentos e sessenta e cinco ventos, os quais fazem florescer as gramíneas, as árvores e todas as plantas. Para esses ventos, de manhã até a noite foi ordenado um anjo que se chama Rafael. O vento sul sobre do início da noite até a meia-noite, e com ele saem do tesouro do desejo duzentos e setenta e cinco ventos […]. Um anjo está ordenado para esses ventos, Uriel é seu nome. — As Lendas do Povo Judeu
Os termos hebraicos para “cultivar” e para “guardar”, que designam o papel do homem no Jardim, significam, respectivamente, servir ou oficiar o culto ao Senhor como sumo sacerdote (abad) e conservar a instrução de Deus e a Sua vontade (shamar) — lembremo-nos que o Éden era o Santuário de Deus na Criação, um espelho do Templo Celeste, seu arquétipo. Assim como a imagem de Deus, no Templo de Salomão, era o próprio sumo sacerdote dentro do Santíssimo, que simbolizava a totalidade da Criação, Adão, na figura sumo sacerdotal, era a imagem de Deus no Éden e, portanto, na Criação. Representante do Criador na e sobre a Criação, não estava restrito a um ou a outro setor da Realidade, mas, oficiante do culto ao Senhor na Terra, enquanto os anjos O cultuavam no Céu, a totalidade do Mundo estava sob sua autoridade espiritual.
… o papel de Adão enquanto oficiador do culto ao Senhor desde a Terra — ele une a Terra, mantendo-a integrada sob Deus …
Isso fica mais claro quando entendemos que, seguindo Barker (Introdução ao Misticismo do Templo), as fórmulas “sede fecundos” (parah) e “multipliquem-se” (pa’ar), de Genesis 1:28, vinculadas aos seus semelhantes “pa’ar” e “rabah”, respectivamente, podem significar “sede belos/gloriosos”, aquela, e “sede grandes”, esta. Esse entendimento está dado na tradição judaica, que descreve um Adão belíssimo, dotado de máxima glória e de proporções cósmicas, um símbolo da abrangência de seu domínio, porque ele foi chamado para subjugar (kabash) a terra e dominar (radah) sobre todas as criaturas viventes (Gn 1:28), com subjugar (kabash) podendo significar, segundo Miqueias 7:18–19, “expiar”, no sentido de restituição e conservação do caráter originário e puro da Criação diante de Deus. “Kabash” seria, então, mais propriamente “unir”, assim asseverando o papel de Adão enquanto oficiador do culto ao Senhor desde a Terra — ele une a Terra, mantendo-a integrada sob Deus. É nesse sentido que vai o simbolismo de sua imensa estatura, podendo ligar o Ocidente ao Oriente ao esticar a mão direita e a mão esquerda e a Terra ao Céu, por conta de sua altura — “e quando ficava de pé, sua cabeça chegava ao mesmo nível do Trono Divino” (Mitologia Hebraica).
Vai nessa mesma direção uma tradição a respeito dos barros que Deus usou para moldar o corpo de Adão: Ele “a tomou de todas as quatro extremidades do mundo”, diz Bin Gorion. “Ao usar pós de todos os cantos do mundo, Deus garantiu que, em qualquer recanto que os descendentes de Adão morressem, a Terra os receberia sempre de volta. Caso contrário, se um oriental viajasse para o Ocidente, ou um ocidental para o Oriente, e adviesse a hora da sua morte, o solo daquela região poderia clamar: ‘Este pó não é meu, não o aceitarei; retorne, você, ao seu lugar de origem!” Mas enquanto o corpo de Adão foi formado de elementos terrestres, sua alma foi feita de elementos celestiais”, conclui Robert Graves. Sustenta-se, com isso, a relação totalizante do homem, dotado de corpo material, com a Criação visível como um todo.
Quanto aos demônios, devemos vê-los, então, à luz daquilo que dissemos sobre os anjos: tais como os daemons da mitologia grega, são espíritos desgarrados, que se insubordinaram contra a Têmis, ou a Ordem Cósmica, e passaram a agir autonomamente — e, portanto, anárquica e caoticamente. Os anjos, nesse sentido, se assemelham às divindades gregas, que são representações de aspectos da Realidade ou do Ser, regentes, portanto, de setores do Cosmos (e cativas desses reinos), perfeitamente concatenadas no Ser, na Totalidade, ou no Divino, porque habitam conjuntamente no Céu, Ouranós — o Olimpo. Julien Ries demonstra como, no monoteísmo judaico tardio, os anjos ocuparam as funções cosmológicas atribuídas às divindades politeístas. Não se deve ignorar, portanto, a territorialidade dos demônios, à semelhança dos anjos, dos quais são formas caídas.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 17 de maio de 2023.