O Imperativo Biográfico e o Desenvolvimento da Personalidade

De Israel para Cristo, de Cristo para os cristãos

Natanael Pedro Castoldi
5 min readJan 2, 2025

Conforme se lê o livro A Bíblia e a Psique, de Edward Edinger, se assimila aquele “sentimento israelita” da Nação enquanto entidade ou organismo, em analogia direta à concepção antiga da estrutura do homem. Isso fica mais claro conforme se acompanha o desenvolvimento histórico de Israel, descrito à moda de uma grande biografia, e se pode apreender, em seus momentos de expansão e de inflexão, o movimento interno da psique e a dinâmica do desenvolvimento da personalidade. Nesse sistema, a posição de Deus, simbolizada no Santíssimo, que é o signo do Eterno dentro do espaço-tempo, no cerne da Cabeça da Nação, a Jerusalém no topo do Monte Santo, é a do princípio transcendental, do Espírito mesmo, que rege e dirige o Povo como uma espécie de compulsão externa e como a matriz da designação ou da sua vocação autoconsciente, contrastando diretamente com os princípios ínferos sempre representados pelos deuses antigos e pagãos, aos a Idolatria.

Aqui, o desenvolvimento da autoconsciência da Nação, abstraído ao longo dos séculos conforme o desenrolar de sua autobiografia (o Antigo Testamento), antecede, em termos de sofisticação, a autoconsciência do indivíduo, e é a partir da entidade transpessoal da Nação enquanto uma espécie de Homem Coletivo, que a autoimagem e a autocompreensão do homem singular se desenvolve. Isso vai ficando mais claro na medida em que aparecem os profetas, em cujas vidas pessoais são refletidas e antecipadas as tragédias da Nação, como representações ectípicas do arquetípico. Essa tendência tem uma lógica progressiva, transparecendo já nos próprios profetas e no apocalipsismo sob a égide do Messias, e na transição do uso de Isaías 53, inicialmente uma antropomorfização da Nação sob a forma do Homem Coletivo, para a sua localização profética na figura do Homem Deus, ou do Messias Redentor — em sendo essa a tendência ou a lógica interna do curso biográfico de Israel, a antecipação do Salvador no oráculo de Isaías 53 é um dado interno do próprio texto, ainda que a consciência nacional tenha primeiramente desvelado ali um símbolo da Nação. A culminação de todo o Antigo Testamento em Jesus Cristo, conforme o que se vê no Evangelho, é a epítome do desenvolvimento das premissas veterotestamentárias: a personalidade individual, supremamente despontada em Jesus, é a conquista última — neste sentido — do espelhamento do indivíduo na “personalidade coletiva” de Israel.

… é a partir da entidade transpessoal da Nação que a autoimagem e a autocompreensão do homem singular se desenvolve…

Deste ponto em diante, como dirá Edinger no início d’O Arquétipo Cristão, a Igreja se desenvolverá enquanto entidade coletiva a partir da estrutura e da biografia do indivíduo supremo, do Deus Encarnado, de Jesus Cristo. Assim, o éthos cristão será o da revisão do Povo e de sua história, ou de sua biografia, como uma replicação em macroescala do drama da personalidade individual de Jesus, e essa será a chamada “fascinação cristã” no Homem, determinante do Éon Cristão, cujos desdobramentos chegarão ao seu próprio limite lógico, sucedidos, como já transcorre, por uma paganização desumanizadora, que recai no telúrico e ctônico, na “fascinação do Abismo” e na revolta luciferiana do Homem contra Deus e, por conseguinte, contra a Consciência de Si, a ser substituída pela massificação e pela tecnocracia — assim, a posse da “personalidade” voltará a ser o que era antes de Cristo: uma exclusividade dos césares, cujas vidas se confundiam com o Estado.

Como já disse Jung (O Desenvolvimento da Personalidade), a personalidade individual é uma conquista, o fruto de um processo delongado e laborioso, e não um bem universal — quer dizer: nem todos, e cada vez menos, têm personalidade, porque a maioria, e cada vez mais, não é regida pela designação interna, por um senso inveterado de propósito e por um norte pessoal de tipo vocacional, o qual se desdobra de dentro para fora, perfazendo propriamente “biografia”. Assombra dizer que a realização biográfica, em sentido estrito, não é para qualquer um, porque biografia é drama, é narrativa, é repercussão externa de uma compulsão interna, donde o estabelecimento, dentro da História, de uma vida verdadeiramente singular, a qual se logrou da tensão com o meio e se performou na Metáxy, no desdobramento de Si abaixo da Designação — do Chamado Divino — e acima da Tentação — das Paixões da Carne e das Seduções do Mundo. A permanência em um lugar tal é a matriz da autoconsciência enquanto percepção de Si e reconhecimento da própria continuidade espaço-temporal, da qual se abstrai, cada vez com mais clareza, o significado da existência própria — porque há significado na biografia — e, por consequência, o propósito ou a finalidade norteadora de todas as decisões e de todas as ações.

… a realização biográfica não é para qualquer um…

O senso biográfico é um dos distintivos do homem individual frente ao anti-individual, ou massificado (Oakeshott). Quando o Centro de ordenamento da vida pessoal jaz internalizado, o sujeito passa a ser guiado por um ímpeto de coerência interna, ou do Si-Mesmo, e se vê coagido a corresponder à compulsão designativa, ou Noção, que impõe à vida pessoal uma tônica de Obra — o Ser-Vocação e o Ser-Ação [Meneghetti]. Enquanto o Centro jaz externalizado, o sujeito é comandado sobretudo pelas viralizações massificadoras da multidão, com seus modismos, como se regido pelo que Kierkegaard estabeleceu nos Estádios Estético e Ético, porque não pôde consolidar entre os Apetites e o Societário as instâncias da Consciência e do Eu efetivamente decisórios. A lei do anti-indivíduo, que, conquanto idolatra as “personalidades” — ou “celebridades” -, as odeia na mesma medida — eis o limiar entre a turba e o bode expiatório -, é a lei da manada, e seus repentes de autoafirmação, quando notavelmente lúcidos, raramente superam breves momentos.

Enquanto o Centro jaz externalizado, o sujeito é comandado sobretudo pelas viralizações massificadoras da multidão…

Ele será, portanto, mais pagão do que judeu ou cristão, já que se perde no presentismo e nos fervores proxêmicos do social, como se estivesse retido num ciclo de eterno presente, movido por imagens e por totalidades, inconscientemente dominado ora por forças “divinas” — “ionosféricas” ou diurnas -, ora por forças “demoníacas” — “infernais” ou noturnas -, e não por um senso narrativo, de tipo verbal, que acompanha a jornada autoconsciente do indivíduo, quando este intercepta em cada momento da jornada no Vale a presença de Deus e a presença do Diabo, e faz-se valer dentre os vultos da sombra e da morte, e faz algo novo no Mundo.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 2 de janeiro de 2025.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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