O Inexprimível

o Nada e a experiência espiritual

Natanael Pedro Castoldi
3 min readSep 29, 2021
The Sacrifice of Isaac, Giambattista Piazzetta

“Nada […] está mais fechado para nós do que essa vida animal de que saímos. Nada é mais estranho a nossa maneira de pensar do que a Terra no seio do universo silencioso, não tendo […] o sentido que o homem dá às coisas”, Battaile, 2015

O erudito prossegue afirmando que o homem é incapaz de pensar nas coisas pré-humanas, na condição de um não-sentido pré-cultural, anterior a toda a apreensão de consciência. Esse exercício sempre pedirá pelo uso do instrumento que queremos relegar: não se pode, tendo consciência, conceber uma realidade sem ela. A consciência é a consciência de algo, e quando não penso em mim, penso noutra coisa — o objeto que ocupar meu pensamento, tomará a minha consciência. Pensar num universo sem o homem é infactível: “a vida animal, a meio da caminho de nossa consciência, nos propõe um enigma bem embaraçoso. Se representarmos o universo sem o homem, o universo onde o olhar animal seria o único a se abrir diante das coisas, o animal não sendo nem uma coisa, nem um homem, só podemos suscitar uma visão em que não vemos nada”, porque essa visão flutua entre as coisas, que não têm sentido se sozinhas, e a plenitude de sentido que atribuímos a tudo o que nos toma o olhar. O objeto dessa visão de “meio de caminho” é indefinível, e só conseguiremos nos aproximar dele de maneira indireta e, portanto, poética, “visto que a poesia não descreve nada que não deslize para o incognoscível”.

Cheios de temor e de tremor, é diante d’Ele que vamos ao Êxtase, mas também à Crise: seremos, pois, amados ou rejeitados?

Essa é uma das razões de o mundo natural, de onde brota o homem, coincidir tão facilmente com o mundo sobrenatural, de onde o homem extrai sentido para si — em termos de origem, intuímos que corpo e alma vêm da mesma forja primordial e selvagem. Por isso é na natureza, no ermo e sozinho, que o homem se deparará com os limites da vida espiritual, já que estará nos limites da vida material. Ali ele será açoitado por demônios, servido por anjos e prostrado ao numinoso, à hierofania, à sarça ardente. O espiritual é uma experiência originalmente tão incognoscível quanto aquela do natural, do inumano, e só pode ser inicialmente acessado, tal como ela, pela linguagem poética. Nesse cenário, que é o território do qual nenhum homem pode fugir e para o qual se verá empurrado quando a ortodoxia olimpiana da religião cultural e litúrgica ceder lugar à nudez sombria do drama existencial de um Jó arruinado, está o rosto fulgurante do Deus Terrível, indomável, possante como a montanha, fulminante como o raio, tectonicamente potente. Vulcânico e diluviano! Cheios de temor e de tremor, é diante d’Ele que vamos ao Êxtase, mas também à Crise: seremos, pois, amados ou rejeitados? Aqui, antes de toda a economia religiosa, estamos inundados de nossos afetos e tudo é pessoal, extremamente individual, inescapavelmente existencial.

BATTAILE, G. Teoria da Religião. São Paulo: Autêntica, 2015.

Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 28 de junho de 2021.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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