O Lugar da Imitação na Vida Madura

Da orientação pessoal nos símbolos da tradição, não nas abstrações científicas

Natanael Pedro Castoldi
10 min readJun 9, 2024

Uma das tragédias de nosso tempo está mesmo na “cientifização” da vida privada. Por “cientifização”, entenda “cientificismo”, que é o deslocamento e a extrapolação de dados para territórios inapropriados ou de maneira inconsequente, atribuindo a um sentimento do que seja “ciência” um lugar que não caberia à ciência propriamente dita — a saber: o de diretriz para a existência.

Alarma-me esse tipo de distorção, porque a linguagem da alma não corresponde saudavelmente a números, estatísticas e sentenças abstratas e de popularização recente, sem referência imagética intuitiva. Operações de tipo lógico e abstrato são naturais à potencialidade e à saúde cerebrais, evidentemente, todavia têm prevalência espaço-temporalmente limitada, para a resolução de problemas teóricos e práticos imediatos. Para tal, é necessário o esforço intencional, volitivo mesmo, de dirigir a atenção ao objeto de análise, para que seja explorado nos termos inorgânicos de categoriais especiais, ou abstrações teóricas, e se possa chegar a um bom termo. Um esforço tal, que corresponda à mobilização extraordinária de recursos cognitivos, não pode ser a regra — do contrário, sucumbiríamos exaustos -, mas a exceção. Quando a vida pessoal se torna ela mesma, a partir de uma grande afetação emocional, um problema teórico e na medida em que o mundo derredor já não pode mais ser parcializado segundo crenças e símbolos convencionais, tornado uma massa arbitrária de fenômenos hostis, teremos a eclosão da neurose e a instalação de um problema energético crônico na vida psíquica.

… os cientistas falarão de o “Sol se pôr” e se verão assaltados por algumas superstições…

Fórmulas relativas a determinadas ciências especiais, cujos usos são propícios à presença do hipotético objeto de estudo (porque o objeto de estudo de uma ciência especial nunca é a coisa mesma e completa, ou algo tal como se vê na experiência ingênua), têm lugar adequado quando o problema está adequadamente posto — e isso só se dará, de fato, no lócus (metodológico e material) do estudo especializado. Mesmo os cientistas, quando fora do calibradíssimo ambiente de sua ciência e relaxados dos instrumentos cognitivos excepcionais, falarão de o “Sol se pôr” e se verão assaltados por algumas superstições — a experiência de William James no famoso Terremoto de São Francisco. Isso é o correto.

O fato é que, para a guia intuitiva da vida cotidiana, o senso comum tem validade cognitiva e em termos de verdade existencial, sendo um tipo de conhecimento, ou de modalidade cognitiva, válido para os objetos e para os problemas encontrados no campo não especializado do ordinário (Lonergan). Não há a mesma eficácia, para a resolução autônoma — cosmológica mesmo — dos problemas diários, se o sujeito se desprender do modus operandi e cognitivo apropriado, ontologicamente por eles causado (em termos de causas segundas), e recorrer a algum tipo de abstração química, física, estatística… Porque abstrações tais não têm apelo vocativo suficientemente forte para mobilizar os sentimentos e as disposições ínferas adequadas à resolução da convocação vital — disposições essas prenhes de sabedoria e de conhecimento incipientes, intuitivos, radicados no apelo dos símbolos universais. Aquele que, desligado da Tradição e espiritualmente estéril, só consegue confiar nas novidades acadêmicas para a condução dos desafios existenciais, se verá pressionado à imposição do ethos racionalista, metódico, empírico e tecnológico, de gérmen laboratorial, por sobre um objeto que lhe pede respostas outras — porque possui uma natureza profundamente psicológica e afetiva (já que é existencial) e seu modo de aparição e de existência é diverso daquele do método científico. Ele, então, estará desprovido da confiança intuitiva, daquela ‘energeia’ profunda que emana do símbolo (um análogo psíquico da coisa), o qual também irradia uma certeza a respeito da natureza do objeto, ainda que não uma certeza teórica, e não saberá o que fazer, a não ser seguir com perfectibilidade o manual técnico subtraído dos arquivos dos “especialistas”. Neurotizante, pois.

… nossos contemporâneos se perdem, ingressando em arquiteturas técnicas extremamente complexas e extenuantes…

Nós vemos isso acontecendo em diversos setores da vida, tal como vivida em nossos dias. Via de regra, para as questões mais elementares e recorrentes da jornada individual, como aquelas que se fazem rotina e podem ser impregnadas de automatismo, ninguém terá necessidade de evocar bases de orientação extraordinárias, porque não deverá estar inseguro — à exceção do neurótico. Contudo, para aquelas circunstâncias críticas, com potencial de eclosão de crise, para as quais a mente ordinária não está previamente treinada e que envolvem questões de grande apelo psicológico, com toda uma aura de ameaça, dada a sua magnitude, é invariável que seja procurada uma matriz de experiência e de orientação transpessoais. É nesses momentos, que são digníssimas etapas do desenvolvimento humano universal (às quais o Dr. Fierz chamará “experiências típicas” [porque tendem a transcorrer nas vidas da imensa maioria das pessoas de todos os tempos]), que muitos dos nossos contemporâneos se perdem, ingressando em arquiteturas técnicas extremamente complexas e extenuantes, inibidoras dos instintos e da liberdade intuitiva — como tem sido o caso da criação dos primeiros filhos, levada de uma maneira que faz parecer que o quarto e o mundo da criança se tornaram replicações de livros e cursos especializados; como tem sido, também, os casos dos casamentos, a conquista amorosa e até da vereda profissional: tudo substancialmente regido por um montante insuportável de sinais, de técnicas, de passos, de lições… Para, no final, serem capturados benefícios mínimos, apesar de todo o trabalho — quer dizer, em termos salomônicos: satisfações ínfimas frente ao custo, uma vez que a coisa foi buscada e vivida basicamente em vista da finalidade última (felicidade ou plenitude), desconsiderando sua verdadeira natureza, que pediria por uma abordagem menos técnica e mais, por assim dizer, “visceral”. Saiba-se que os fins não justificam os meios! Haverá satisfação — em ato — se certas coisas forem buscadas e vividas segundo suas realidades e possibilidades, dentro da modalidade que lhes é propícia.

As experiências típicas da humanidade, chamadas arquetípicas, que são as experiências universais, não cotidianas, mas extraordinárias e psicologicamente prenhes de energia e de impressão, foram há muito tempo apreendidas segundo o modo cognitivo do senso comum, em termos imagéticos e simbólicos, vertidas no Mito, na Literatura Universal e nas instituições consagradas (Grande Tradição), imiscuídas nas tradições e nos hábitos locais (Pequena Tradição). Foram, portanto e segundo dirá C. Jung, tornadas Espírito, ou consubstanciadas na camada ionosférica e infraestrutural da Civilização (Corção). Nelas instam, em seus símbolos e demais manifestações, sabedorias multimilenárias — a sua manifestação na consciência inflama a alma com disposições, com inclinações, com sensações e com convicções norteadoras, que dão ímpetos e intuições mobilizadoras de ações razoavelmente eficazes, ainda que racional e teoricamente não elucidáveis. Nesses símbolos tem-se a melhor expressão, que é sintética, e a linguagem mais apropriada para aquelas coisas que existem enquanto realidades autônomos, fatalísticas, altamente concretas e de presença substancial — eles são análogos das coisas mesmas, não as substituindo e nem as distorcendo, mas as contendo em sua incomensurável profundidade na medida em que são veículos, ou portais que auxiliam no acesso ontológico a elas e segundo a experiência per se do homem consigo próprias. Daí os símbolos, enquanto expressões arquetípicas, terem uma eficácia maior na formação de disposições análogas, de uma forma neuromuscular e emocional apropriada à coisa, do que fórmulas e abstrações das ciências especiais, que não são simbólicas de maneira nenhuma e só armazenam algum conhecimento cognoscível (ao homem médio) se este vier explicitado nas notas de rodapé — e este será eminentemente semântico, não episódico.

… coisas assim não se aprendem exaustivamente antes de serem vividas existencialmente…

A resposta, portanto, que a Grande Tradição — e seus cotejamentos na Pequena Tradição — fornece, em lugar da resposta manualista e tecnicista, ou especializada, é a da oferta de modelos exemplares e imitáveis, ou assimiláveis, para a lida pessoal com as experiências típicas. É como se a mente humana, via Inconsciente Coletivo, tivesse armazenado junto dos instintos análogos psíquicos formais dos eventos determinantes da vida da espécie. Nessa sabedoria é reconhecido que ninguém, por exemplo, aprendeu a ser pai antes de sê-lo, e que coisas assim não se aprendem exaustivamente antes de serem vividas existencialmente, de maneira que o pai de “primeira viagem”, não sabendo sê-lo, deverá fingir que sabe — e isso está mais para a busca por emular modelos exemplares, identificáveis nas referências presentes no arcabouço da cultura e da própria biografia, e não em fragmentos e atomismos abstratos. Ele terá, então e em mente, uma imagem arquetípica de Pai (sobremaneira vinculada a figuras parentais substanciais [pai, avô…]), a qual dialogará com a imagem que ele terá se si mesmo enquanto uma imentização da imagem arquetípica, procurando correspondê-la ou imitá-la até que perceba que ele já é, de fato, aquilo que fingiu ser quando o era de jure. Note: buscando a imagem, ele saberá — um saber solar (direto), pois, doutra ordem e diverso do saber lunar (indireto).

Nós atuamos e emulamos modelos quando não sabemos o que e como fazer. Isto é o que fazemos em resposta a toda grande experiência típica que nos é imposta na jornada da vida.

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Há, portanto, uma diferença entre lidar com as viradas da vida (e com a vida mesma) em termos análogos ao ‘cientista’, como um meandro de resoluções de problemas, e em termos existenciais, enquanto momentos substanciais. Quem vê o cotidiano e as passagens vitais como problemas lógicos e logísticos, não os viverá no sentido profundo de quem os habita, mas daquele que passa por eles magnetizado pelo fim -imanente- almejado. Esta é uma vereda mecanicista, de tipo linear, desocupada com o significado e com a função dos momentos e hiperfocada na passagem de si até um ponto terminal, onde deve estar um bem almejado. Aquela, todavia, assumirá um caráter “energético”, ou finalista (C. Jung), importando não tanto a causa material e a coisa que se pretende atingir, mas o processo vital instalado no circuito e a sua função existencial — daí ela ser vivida intrínseca, não extrinsecamente, como momento da alma (é experiência humana em sentido substancial e necessário), não como um inconveniente, uma perturbação espaço-temporal a ser suprimida o mais rapidamente possível (não sendo experiência em sentido substancial e necessário, ou qualitativo, mas acidental e quantitativo). Este viverá a vida como um grande problema administrativo, alienando-se das coisas, vistas meramente como objetos para uso, e da própria existência — importa-lhe saltar para os objetos de desejo (ele se verá, então, como uma espécie de monólito psicossomático, imune à transformação interior, a ser transposto de um lugar para outro — ou seja: ele só se vê chegando “lá”). Aquele, porém, viverá a vida pessoal como participação microcósmica no Mundo, e cada coisa terá algo de subjetivo, porque fator simbólico de vislumbre do Absoluto, e, sabendo-se partícipe da comunidade do Ser, não sentirá menos as revoluções de seu espírito do que as mudanças exteriores — ele se sente permeado e impregnado do Transcendente, do Divino, e reconhece que passa pela vida como quem vive, não como quem viverá.

… reconhece que passa pela vida como quem vive, não como quem viverá.

A grande diferença estará, portanto, na distinção ontológica entre a postura racionalista, que assume as grandes questões da vida como objetos de escolha e como resultado de decisões e de ações pessoais, e a postura cosmológica, ou mística, que assume as grandes questões da vida como imperativos, como convocações da Realidade ao homem individual, como desdobramentos intrínsecos de sua natureza humana e como imposições necessárias do Mundo — às quais convém apenas aderir (sob o vulto do alto preço, em caso de rejeição, que é cobrado de quem se opõe ao que é).

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Assim, a única vereda possível para a realização pessoal no ato do transcorrer do evento existencial é aquela que reconhece o valor intrínseco, o sentido mesmo do evento, não apenas o valor que deverá ser encontrado no resultado almejado. Daí aquele que lida com o evento existencial nos termos racionalísticos de um problema a ser resolvido em vista do que se terá no ponto terminal, após padecer dos mais extraordinários esforços — porque se valerá de toda uma parafernalha de lições, de fórmulas, de passos, de sinais… -, não encontrar realização substancial proporcional ao empenho — ele não fica feliz como esperava ficar (ao menos não tempo o suficiente).

A irrealização pessoal quando da transformação do evento existencial em problema lógico e logístico deve ter relação com uma inadequação entre a coisa (o evento) e o seu modo de resolução. Todas as grandes experiências vitais (passagem da infância à adolescência e da adolescência à vida adulta; casamento; iniciação sexual; concepção e nascimento do primeiro filho…) correspondem a análogos psíquicos de matiz arquetípico. Esses análogos psíquicos funcionam segundo a energética psíquica, que é finalista, não causal — ou seja, estão integrados ao sistema psíquico e existem psicologicamente nos seus termos (em função de um todo e de um processo [vital] total). O que quer dizer que os análogos psíquicos ocupam um lugar na dinâmica de desenvolvimento psicológico, correspondendo adequadamente aos objetos ou estímulos aos quais fazem “analogia”. Em determinado momento do desenvolvimento orgânico, acompanhado de uma demanda social específica, é mobilizado este ou aquele “análogo”, donde a satisfação do estímulo orgânico e social/ambiental só ser realmente alcançada se o evento existencial for transpassado psiquicamente, segundo a estrutura arquetípica prevista, que terá contingência institucional societária. O senso de realização virá com a pacificação ou equilibração da angústia interna mobilizada pelo imperativo psíquico decorrente do desequilíbrio provocado pelo estímulo interno e/ou externo — a angústia se aliviará com o alcance existencial do objeto pretendido, após o transcurso ligeiramente estereotípico sugerido pelo esquema arquetípico. A pacificação vem como sensação de dever cumprido — o dever para consigo mesmo e para com os outros, típico de um passo que é sempre tomado nos dois níveis, o material e o espiritual/psicológico.

… angústia se aliviará com o alcance existencial do objeto pretendido, após o transcurso ligeiramente estereotípico sugerido pelo esquema arquetípico.

Isso não exclui a necessidade e o reto uso de técnicas e de recursos facilitadores que estejam disponíveis no cabedal de conhecimentos atualizado da cultura e da comunidade. O detalhe é que essas técnicas, esses passos ou lições, devem servir apenas para orientar sobre a resolução de problemas práticos ligados a partes ou etapas do evento existencial amplo, jamais substituindo-o ou ofuscando o relevo existencial que a grande experiência vital deve ter. Doutro modo: é óbvio que se deve lançar mão dos melhores recursos técnicos, o que engloba as informações mais confiáveis, para o bom manejo prático do cuidado do bebê, mas isso não é o mesmo do que transformar a parentalidade em apenas um grande e complexibilíssimo problema prático-teórico a ser vencido o mais rápida e comodamente possível, como que para se livrar de aborrecimentos e chegar rapidamente a uma recompensa aprazível.

Textos de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicados em meu perfil pessoal do facebook em 09 de junho de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em antropologia e crítica literária. Casado com Gabrielle Castoldi.