O Lugar do Martírio

Um estudo da Igreja Apostólica

Natanael Pedro Castoldi
6 min readJul 16, 2024

A recorrência das orientações paulinas à imitação de Cristo e à imitação da conduta dos apóstolos deve testemunhar da valor das imitações enquanto prerrogativa da própria ortodoxia cristã primitiva — eram parte intrínseca da vida da Fé. Essas imitações evidentemente tinham uma conotação ética, visando a emulação de práticas compatíveis com os variados aspectos da Sã Doutrina, mas, e isso parece fora de dúvidas na leitura do Novo Testamento, se referiam mais comumente à imitação no sentido escatológico da Descida de Cristo da Glória e de Sua humilhação, como se vê em Filipenses 2:5–8. Isso significa que as medidas de sofrimento decorrentes da opção por Jesus, conforme o Salvador alertara de maneira inequívoca, deveriam ser assumidas voluntariamente e vividas sob o vulto da Encarnação e, sobretudo, da Paixão, o grande arquétipo do primeiro tempo da vida cristã. Em termos de anúncio escatológico, e isso se lê na sequência do supracitado texto aos Filipenses (vv. 9–11), se reconhecia nos sofrimentos uma confirmação da Promessa, porque Cristo fora exaltado “soberanamente” depois de ter padecido todas as dores, de maneira que a Igreja, no Tempo que Resta, não deveria se surpreender quando odiada e perseguida, não tendo ela maior legitimidade ou podendo esperar algo mais do que os homens fizeram ao Salvador (Jo 15:18–19), para ser também glorificada na Segunda Vinda.

Há um elemento carismático, necessariamente transmitido por Cristo aos apóstolos e que os apóstolos compreenderam melhor posteriormente, quando da Sua Ressurreição, e que Paulo aprendera do Senhor Jesus posteriormente. Vem de uma transmissão direta, como o Espírito Santo lhe diz a respeito de seu “espinho na carne” (2 Co 12:7–10), redundando na sentença: “Por isso sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por amor de Cristo. Porque quando estou fraco então sou forte.” E vem por meio de determinada iniciação, da experiência real e contínua das privações, pela qual o apóstolo afirma ter aprendido o “Segredo do contentamento” — leve em conta que o termo original para “segredo”, aqui, é único no Novo Testamento e era aplicado aos mistérios iniciáticos gregos. Quer dizer, pois, que a experiência de ser continuamente esbofeteado por um “mensageiro de Satanás” (2 Co 12:7) e de se ver recaindo em carestia e perseguições culminou no acesso imediato, via iluminação, de um conhecimento que não é acessível ao homem natural: iniciado pelo próprio Cristo Jesus na vereda de Sua Paixão, Paulo entendera que, estando n’Ele, “tudo podia”, porque o Poder de Deus é aperfeiçoado na fraqueza. Daí todas as marcas das violências recebidas e das privações resultantes da vocação do Evangelho serem assumidas por Paulo como as “feridas de Cristo” (Gl 6:17), evidências palpáveis da legitimidade de seu ministério e meios pelos quais, através de suas dores, se fazia digno da imitação dos demais cristãos, como ele mesmo imitava a Jesus (1 Co 1:11).

… o apóstolo associa a inconformidade com o Mundo a uma medida de sofrimento, que Deus aceita como “sacrifício vivo, santo e agradável”…

A oferta de seus sofrimentos como motivos de despertamento da Igreja para a piedade e para a transformação da mente aparece claramente em Filipenses 4, quando ele entende o valor de sua miséria na renovação do fervor piedoso dos cristãos de Filipos e aproveita a oportunidade para transmitir o Segredo, e aparece um pouco menos claramente em Romanos 12:1–2, quando o apóstolo associa a inconformidade com o Mundo a uma medida de sofrimento, o qual marca o corpo, que Deus aceita como “sacrifício vivo, santo e agradável”, o mesmo que ele dirá a respeito do sacrifício dos filipenses em favor de Paulo, porque eles se privaram de um notável montante de recursos materiais em nome do conforto do apóstolo (Fp 4:18).

A aproximação dos sofrimentos com o entendimento aprofundado do Evangelho, no cristianismo primitivo, ou n’O Caminho, é bastante aparente na epístola dos Hebreus, aquela com o maior número de indicações da qualidade iniciática da Fé, devendo nos conduzir, por exemplo, ao entendimento de que “leite” e “carne” e “carnal” e “espiritual” eram termos precisos para designar a jornada de amadurecimento na Fé, associados diretamente às condições de “neófito” e de “perfeito”, encontradas em Paulo. As evidências de que os cristãos assumiam aspectos da mobília e da arquitetura do Templo como símbolos, sobre o que o autor de Hebreus afirma não poder discorrer em carta (Hb 9:5), indica a transmissão direta de Mistérios, nos permitindo conceber um tempo de formação, de iniciação, que talvez seja aquele de três anos, segundo o arquétipo dos Doze com Cristo, replicado em Paulo na Arábia e, por Paulo, com os Doze de João Batista, em Éfeso — uma formação marcada por ritos especiais, como o Batismo, regularmente aplicado após o período de um ano de ensino ao Neófito e de sua imersão na vida eclesiástica (Kreider). Experiências singulares de privações e sofrimentos por Jesus, não incomuns num cenário no qual a itinerância de evangelistas e pregadores, à luz do profetismo veterotestamentário, era parte substancial do organismo da Igreja, certamente apareciam como distintivos de especial significância, sinais de uma robusta imitação do Senhor Jesus e do acesso místico ao Seu Segredo — a saber, do acesso dos Perfeitos, ou Espirituais. Acrescenta-se, aqui, o aspecto santificador da carestia e das dores, demonstrativos da suficiência de Deus e motivos de mortificação dos apetites da carne — daí o fator disciplinador divisado nas privações, vistas como oportunidades, como sinais do cuidado divino e como evidências da paternidade divina (Hb 12:5–7), e a indicação do derramamento de sangue, ou seja, da oferta voluntária do próprio corpo aos sofrimentos impostos pela opção por Jesus e pela Sua imitação, como potente na santificação (Hb 12:1–4 [isso após a lista dos mártires, no capítulo 11]).

… a indicação do derramamento de sangue como potente na santificação…

O que vimos em Filipenses 4:18 pode indicar um ensino apostólico que incentivava o aproveitamento das oportunidades de autossacrifício como ofertas de sacrifício do Senhor — ou seja, a busca ativa por oportunidades de se impor uma medida de sofrimento ou de falta como ato de louvor Deus. Diferentemente dos ascetismos gentílicos que Paulo acusa na sua epístola aos Colossenses (2:23), todavia, essa busca por oportunidades de autossacrifício não vinha como um autoflagelamento autointeressado, crendo que por meio dele se obteria algum mérito especial diante de Deus.

Conquanto seja virtuoso não recair em excessos pecaminosos, motivados pelo prazer de baixo ventre (Gl 5:19–21), donde a necessidade do exercício do Fruto do Espírito (v. 22), que transparece nas práticas autossacrificiais de autocontrole para o disciplinamento dos apetites, a busca artificiosa por ferir-se e se obrigar ao definhamento ascético não era encorajada — o que indica que a visão cristã acerca do sofrimento enquanto imitação de Cristo era generalizada o suficiente para conduzir a uma série de desvios. Os sofrimentos legítimos, aperfeiçoadores de fato, espirituais em sentido profundo, são aqueles impostos pelas circunstâncias, decorrentes do ódio dos ímpios por Jesus e transparentes nas situações de privação da parte dos irmãos da Fé, prenhes de estímulo à generosidade — não sendo assim, por despertamento do amor por Cristo e pelo irmão, o ascetismo se reduz à fascinação pelo próprio ego. Daí a satisfação que os cristãos podem ter nas ocasiões de fartura, sabendo fruir e usufruir das bênçãos de Deus, mesmo quando elas vêm através de outros cristãos.

Os sofrimentos legítimos, aperfeiçoadores de fato, são aqueles impostos pelas circunstâncias…

Todas as privações, sustento, eram assumidas pelos cristãos dentro do espectro da imitação de Cristo. Nenhum sofrimento, todavia, era mais elevado do que aquele que mais se aproximava da Paixão: o martírio. E se toda a qualidade de faltas e dores por Cristo poderia ser dedicada ao Senhor como oferta de sacrifício, quanto mais a pena capital da parte dos perseguidores da Fé, a ser assumida voluntariamente para a maior glória de Deus. Por isso Paulo vê sua morte sob o gládio romano como libação, ou sacrifício para o Senhor, incentivando os filipenses a se alegrarem com ele “por isto mesmo” (2:17–18).

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 16 de julho de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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